Determinadas características consolidam os heróis no imaginário popular
Por Anabella Léccas e Paula Freitas
Zico, Romário e Ronaldo Fenômeno são notadamente reconhecidos como heróis do futebol mundial. Ao longo das suas carreiras, os atletas receberam grande atenção da mídia e, como consequência, conquistaram o apreço popular. Um conjunto de artigos produzidos pelo professor titular da Faculdade Comunicação Social da UERJ, Ronaldo Helal, procura investigar a forma como a imprensa futebolística atuou na construção das narrativas de idolatria que envolvem os três jogadores cariocas.
Para isso, o pesquisador do CNPq utilizou como base a análise de jornais da Copa de 1994, na qual Romário se firmou como um grande herói e salvador do futebol brasileiro; de jornais da Copa de 1998, que marcou a provação de Ronaldo como mito após a derrota da seleção; e das biografias Zico: uma lição de vida e Zico conta a sua história, em que a trajetória de vida de Arthur Coimbra mostra a presença de certos requisitos para a construção da sua imagem como ídolo.
De acordo com Helal, os entraves futebolísticos, representados nas disputas em campo, proporcionam “um terreno fértil para a produção de mitos e ritos relevantes para a comunidade” (HELAL, p. 1, 2003). Em conjunto, características pré-definidas pelo público e acordadas com a mídia complementam a figura do herói, como é o caso da “genialidade”, do “improviso” e da “malandragem” (HELAL, 2003). O professor relata também que apesar da imprensa hegemônica valorizar o talento inato frente a dedicação, existem exceções, como a de Zico.
Em um aspecto mais amplo da idolatria, a infância dos ídolos tende a funcionar como uma ferramenta para a identificação do público. No caso de Zico, não é diferente. Nascido no subúrbio do Rio de Janeiro e caçula entre cinco irmãos, Arthur faz parte de uma série de atletas que tem um passado simples, sem muitas regalias. Essa questão aproxima o herói Zico do homem comum, porque demonstra um ponto de familiaridade entre a infância dos torcedores e a do consagrado mito.
Além disso, a determinação e o foco no treino são pontos que Zico considera essenciais para a consolidação de uma carreira de sucesso. Desse modo, o jogador destaca esses pontos como fatores imprescindíveis no fortalecimento da sua condição de herói, sendo este mais um passo para o desenvolvimento da sua afinidade com o público.
O intenso esforço de Zico e o constante acompanhamento médico o renderam o apelido de “craque de laboratório” (HELAL, p. 23, 1999). No entanto, “[…] à época a alcunha ‘craque de laboratório’ era utilizada, muitas vezes, de forma pejorativa, significando um craque não genuíno, fugindo das características “artísticas”, “espontâneas” e “criativas” do nosso futebol” (HELAL, p. 23, 2003).
Fervorosamente criticado pela imprensa e por seus opositores, o jogador do Flamengo, que ainda ocupava o banco de reservas, também passou por algumas decepções antes de se tornar um craque do time rubro-negro. Além das contestações dos jornalistas, a ausência da convocação para as Olimpíadas de 1972 soma-se aos percalços enfrentados pelo ídolo, que relata essa derrota pessoal e profissional como fonte de motivação para um treino ainda mais vigoroso.
Ao se elevar como jogador titular do Flamengo e, em seguida, conquistar a camisa dez rubro-negra, Zico se firma como um herói inegável pela imprensa e pelos apaixonados por futebol. Helal reflete, ainda, que a idolatria em torno de Arthur Coimbra se difere dos outros ídolos do futebol brasileiro e da visão clássica da mídia que privilegia a malandragem frente ao esforço e à dedicação.
Um exemplo de ídolo exaltado pela mídia por personificar a malandragem e o talento inato é o jogador Romário. Durante a sua carreira, o atleta se envolveu em inúmeras polêmicas e discussões, sendo caracterizado por uma matéria do jornal “O Globo” como: “quase uma bomba que tem pernas”, “parece o dono do mundo” e “abusado” (O Globo, 13/09/1993). Ao mesmo passo, o jornal o definia como um “artilheiro” e “craque” que “faz gol como quem brinca” (O Globo, 13/09/1993).
Essa dualidade, por mais paradoxal que seja, acaba definindo Romário como o “marrento” favorito do Brasil. A construção da narrativa do jogador carioca é “muito mais próxima do modelo “Malasartes” e “Macunaíma”, exaustivamente analisado por Roberto Da Matta (1979) que, inclusive, traz para o discurso acadêmico a narrativa do “malandro” como uma vertente tipicamente brasileira, corroborando, assim, a postura adotada por parte da mídia” (HELAL, p. 22, 2003).

A Copa de 1994, sediada nos Estados Unidos, reforçou ainda mais o paradoxo que envolve a carreira de Romário. O atleta era visto como uma figura “difícil”, mas, ao mesmo tempo, necessária para que a seleção brasileira vencesse o grande torneio de futebol da FIFA. Durante as eliminatórias da competição, Romário já era visto como uma ferramenta imprescindível e extremamente decisiva para que o Brasil pudesse, de fato, chegar até a Copa do Mundo. Na partida contra o Uruguai, o jogador “abusado” fez dois gols e levou o time a vitória, reafirmando os seus discursos prévios de que iria, certamente, fazer uma boa atuação e ganhar a partida. Em um dos artigos, ao analisar essa questão, o pesquisador Ronaldo Helal relaciona o jogador à jornada do herói de Joseph Campbell.
A ciência que Romário tem de seu papel assemelha-se ao início da saga clássica do herói que atende ao chamado e parte em busca da missão redentora (Campbell, 1995 e Brandão, 1993). Porém, Romário age com uma boa dose de picardia ao tratar da missão como algo fácil e encarar os adversários com ar de deboche (…) (HELAL, p. 29, 2003).
Ao longo da Copa do Mundo, o atleta segue com essa “picardia” e “deboche”, mas, ao mesmo tempo, cumpre com as suas declarações e se mantém como um grande mito durante toda a competição, garantindo a conquista do tetracampeonato para o Brasil e compondo o quadro da galeria dos heróis.
Outro fator-chave para fortificar a construção da idolatria é a necessidade da sociedade em encontrar no herói qualidades para se inspirar e defeitos para se identificar. Ronaldo, alcunhado de Fenômeno, incorpora esses dois polos. Às vésperas da Copa de 1998, o jovem de 21 anos e jogador do Grêmio já enfrentava duras críticas da mídia. O peso, problemas no joelho e crise no relacionamento eram os pontos principais apontados pela imprensa. Ao mesmo tempo, Ronaldo era também definido por suas qualidades: era humilde, maduro e tranquilo. O herói parecia estar pronto para todo e qualquer desafio que fosse imposto.
O seu desempenho na final do torneio acabou decepcionando o público. Na disputa contra a França pelo título, a seleção foi derrotada e a atuação do Fenômeno foi malvista pelos fãs de futebol. No entanto, a grande mídia, rapidamente, aproveitou o descontentamento para justificar as falhas do ídolo. Em uma edição do Jornal do Brasil, Ronaldo era visto como humano e, portanto, passível de erros.
A batalha contra questões neurovegetativas, o fator emocional e o período de reclusão criam um contraponto com a sua imagem de herói perfeito. O jogador não é imbatível e “(…) na “queda” do ídolo, presenciamos a sua “humanização”. Ao invés do super-homem Ronaldinho, “descobrimos” Ronaldo, o homem, o mortal. Os fãs se familiarizam com ele e muitos querem lhe dar colo” (HELAL, p. 5-6, 1999).

Todos eram homens, mas, não necessariamente, todos seriam ídolos e, mesmo assim, os três conseguiram alcançar esse posto, evidenciando que, em determinados casos, a construção dos mitos apresenta especificidades que são perpetuadas através do uso da mídia. O projeto “Meios de Comunicação, Idolatria e Cultura Popular no Brasil”, desenvolvido nos artigos do professor Ronaldo Helal, propõe uma série de reflexões sobre a construção das narrativas de idolatria e contribui para o campo da comunicação, o que mostra que a formação da figura dos heróis acontece de modos distintos.
O cuidado ao analisar essa questão deve ser imprescindível, pois, nem toda característica tornaria um indivíduo comum em um herói, não existe uma “forma” certeira para essa mitificação, apenas suposições recorrentes. Por exemplo, se Zico fosse “malandro”, Romário fosse um jogador “humilde” e Ronaldo “imaturo”, será que teriam conquistado tanto sucesso? Para Helal, as características de cada um desses atletas adicionadas ao contexto midiático, social e futebolístico da época criaram um terreno fértil para a consolidação do heroísmo que compôs as suas carreiras. Ou seja, eles tinham a personalidade certa no momento certo.
Assim, Helal atua como um precursor no debate acerca da idolatria no futebol nacional e reforça o poder da mídia enquanto criadora de histórias mesmo que apenas parcialmente verdadeiras. Entende também o papel dos meios de comunicação, em consenso com a população, no estabelecimento dos pré-requisitos necessários para a gênese de um novo herói. Por fim, o pesquisador compreende a existência de múltiplas narrativas que permeiam o imaginário do público, seja através da ética anglo-saxônica na trajetória de Zico, seja por meio do ideal de “Macunaíma” na de Romário.
A última é privilegiada pela imprensa brasileira, que tem um apreço peculiar pela malandragem e pelo talento inato, como indica o professor. Ronaldo Fenômeno pode ser interpretado como o melhor dos dois mundos, uma união entre a ludicidade, a sagacidade e a maturidade. Helal acende uma faísca para calcular o que, no futuro, será necessário para a formação de novos mitos no futebol. É possível concluir, portanto, que a presença de ídolos perpassa a sociedade e “(…) de uma forma ou de outra, todos os grupos humanos “fabricam” os seus heróis” (HELAL, p. 5, 1998).
Artigos científicos
HELAL, Ronaldo. A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro. Revista Alceu 4.7, p. 19-36, 2003.
HELAL, Ronaldo. Cultura e idolatria: ilusão, consumo e fantasia. Cultura e Imaginário. 1ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
HELAL, Ronaldo. Mídia, ídolos e heróis do futebol. Revista Comunicação, Movimento e Mídia na Educação Física, v. 2, n. 03, p. 32-52, 1999.