Em busca da onda perfeita: experiência, imaginário e representação do surfe no contexto das piscinas de ondas

A uma semana de embarcar para a minha primeira surftrip1 internacional, me vejo prestes a realizar cada momento idealizado e sonhado há pelos menos vinte anos. Nado e surfo desde os cinco anos de idade2 e da década de oitenta até os dias de hoje muita coisa na cultura do surfe3 mudou: a evolução da previsão das ondas, que estão cada vez mais assertivas; os equipamentos como as roupas de neoprene para surfar em águas mais frias; coletes infláveis, como itens de segurança, e a inclusão de jet-skis, que possibilitaram o surfe de ondas gigantes; a ascensão e “queda” da surf music, majoritariamente produzida na Austrália; a invasão dos surfistas da geração da “Tempestade Brasileira” no circuito mundial. Porém, destaco sobretudo o surgimento da terceira geração de piscinas de ondas que, diferentemente das tecnologias anteriores, que não conseguiam reproduzir ondas consideradas de qualidade pelos surfistas, tem o potencial de deslocar essa cultura de um ambiente natural e imprevisível para espaços artificiais, privados e controlados.      

Para a maior parte dos surfistas, surfar está ligado à conexão com a natureza, à leitura do tempo, das ondas, das correntes, saber entrar e sair do mar. Algumas das minhas experiências mais memoráveis surfando têm mais a ver com o contexto vivido dentro e fora d’água do que com o ato de deslizar sobre uma onda. Por exemplo, quando tive a oportunidade de surfar próximo a cardume de golfinhos em Ilha Grande, ou quando surfei no Canadá, em um lugar improvável e distante das representações do surfe em praias tropicais. Nessas duas ocasiões, as ondas estavam no máximo razoáveis, mas, mesmo assim, são momentos inesquecíveis para mim. No entanto, como surfista apaixonado pelo mar, que cresceu lendo revistas que mostravam paraísos perdidos no mundo onde ondas perfeitas quebravam sem ninguém, sempre mantive esse sonho de fazer uma viagem internacional para um destino conhecido mundialmente pela qualidade das ondas. No meu caso, a Indonésia. Ponting e McDonald (2013), criaram uma teoria relacionada a esses espaços de surfe que são idealizados e mitificados no turismo de surfe internacional: a chamada Nirvanificação. Para eles, a construção social do Nirvana é baseada em quatro elementos simbólicos: “ondas perfeitas; condições sem aglomeração; aventura amortecida (uma sensação de aventura apesar dos consideráveis níveis de conforto e segurança proporcionados pela indústria do turismo); e um ambiente tropical intocado.4” (PONTING; MCDONALD, 2018, p. 9). Atualmente as tecnologias utilizadas nas piscinas de ondas têm a capacidade de reproduzir o Nirvana a partir de alguns aspectos, como a onda perfeita, condições sem crowd e até a ideia de aventura, afinal, surfar, mesmo em um espaço controlado, envolve riscos de acidentes. Porém, elas suprimem a referência das ondas do oceano (natureza) da cultura costeira do surfe, o que para muitos sufistas é o cerne da construção social de autenticidade do esporte.

Além de considerável investimento financeiro, as viagens de surfe envolvem a possibilidade de não haver condições para o surfe em si. Isso acontece porque para que ondas de qualidade se formem, há uma conjunção de fatores que devem se alinhar, como tamanho do swell, período e direção das ondas, maré, direção e força do vento e batimetria. Portanto, no período de estadia do surfista nestes destinos de surfe naturais a onda sonhada, idealizada, pode ficar apenas na imaginação, sem a confirmação se ela de fato existe e preenche todas as expectativas criadas previamente pelo esportista, podendo inclusive gerar frustrações. Como ainda não realizei esse sonho e nunca surfei em uma piscina de ondas, continuo vislumbrando as possibilidades e prazeres que essas opções de surfe podem me proporcionar. Confesso que era meio cético em relação à experiência de surfar em uma piscina de ondas, mas após dissertar sobre o assunto e conversar com pessoas que já tiveram essa experiência, creio que, quando chegar a minha vez, ficarei satisfeito, apesar de achar que a aura em torno do esporte praticado no mar seja abalada pela falta de contato com a natureza.


1 Viagem com a intenção de surfar ondas de qualidade internacional.

2 Aqui vale um adendo sobre o meu lugar de fala. Sou negro, de classe média, não me enquadro no estereótipo de surfista representado pela mídia e, apesar de morar relativamente longe da praia, tive acesso muito cedo a piscinas, praias com ondas e equipamentos que não são facilmente acessados pela maior parte da população brasileira.

3 Aqui incluo de um modo geral os esportes praticados com prancha e sem prancha, no mar. Exemplo: Surfe de Peito (Jacaré), Body Board, Skin Board e o próprio Surfe.

4 O trecho em inglês é: “perfect waves; uncrowded conditions; cushioned adventure (a sense of adventure despite considerable levels of comfort and safety provided by the tourism industry); and a pristine tropical environment.”

Referências

ROBERTS, Michael e PONTING, Jess. Waves of simulation: Arguing authenticity in an era of surfing the hyperreal. International Review for the Sociology of Sport, 2018.

PONTING, Jess. Simulating Nirvana: surf parks, surfing Spaces, and Sustainability. In: Sustainable Surfing, Routledge, 2017.

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