Jogos Olímpicos e Heróis

As narrativas de vitória em torno de nossos atletas olímpicos diferem das de nossos ídolos futebolísticos. Quando falamos de heróis do futebol, geralmente sublinhamos o êxito por meio de atributos como “genialidade” e “malandragem”. E gostamos de acreditar que os craques “nascem prontos”. Neste imaginário construído, só nós sabemos “jogar bonito”. Quando os “outros” o fazem, estariam nos imitando. Haveria nesse pensamento uma pitada de soberba?

Quando surge uma biografia como a de Zico, ídolo consagrado e exaltado até os dias de hoje, na qual ele mesmo ressalta o esforço e a disciplina para se atingir o apogeu, a narrativa midiática parece entrar em “crise”. E isto porque teria dificuldades de conceber um craque a partir, sobretudo, do “empenho”, e não somente da bênção inata de seus pés. A mídia brasileira parece ter problemas em conciliar o “empenho” ao “talento”. Onde destaca a “genialidade”, não valoriza o “esforço”. A seleção de 1970, por exemplo, é vista como expressão “genuína” do nosso talento e, equivocadamente, é exposta como uma seleção que não precisava de treinamentos e suportes táticos. O cuidadoso trabalho de pesquisa de Marco Antônio Santoro e Antônio Jorge Gonçalves Soares em A memória da Copa de 70 demonstra isso. Sabemos, contudo, que os grandes ídolos do futebol, sempre combinaram esses elementos. Da junção de suas habilidades com uma disciplina de trabalho, que lapida essas mesmas habilidades, nasceriam os craques.

Interessante observar que os veículos de comunicação tendem a suspender essa vertente predominante no universo do futebol quando se depara com os esportes olímpicos. Não há como tratar os atletas brasileiros do badminton como “nascidos para àquele esporte”, ou destacar a “malandragem” dos fundistas brasileiros ou, ainda, a “malícia” dos nadadores, por exemplo. O tratamento da imprensa sobre os êxitos dos atletas nos Jogos Olímpicos versa sobre o “esforço”, a “disciplina” e a “superação”, além do talento, para se chegar à vitória.  O que parece ser uma narrativa muito mais próxima da realidade de qualquer esporte, inclusive do futebol.

Só que esses heróis olímpicos não se tornam heróis no longo prazo. Primeiro, porque o futebol ocupa quase todo o espaço esportivo na mídia. Ou seja, a maior parte dos heróis brasileiros dos Jogos tende a ser parcialmente “esquecida”, após o seu término.

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Felipe Wu, primeiro medalhista do Brasil nos Jogos de 2016, com a prata no tiro esportivo de 10 metros, passou o último ciclo olímpico no ostracismo midiático apesar do seu potencial na modalidade. Por conta disso, seu resultado foi visto pela opinião pública, em geral, como surpreendente. Terão Felipe Wu e sua modalidade, a partir de agora, o merecido destaque na imprensa nos proximos anos? Foto: Ivan Pacheco (Veja.com)

A segunda razão, intimamente ligada à primeira, é que, infelizmente, os esportes olímpicos não fazem parte da cultura esportiva brasileira. À exceção de alguns poucos, como o basquete e o vôlei, o brasileiro não os acompanha. Talvez porque a mídia não os cubra com frequência ou porque, provavelmente, não depositamos nossos sentimentos em atletas isolados, mas sim em entidades esportivas, os clubes. Fica claro, portanto, que só existe herói, se mídia e público o reconhecerem como tal. Se o esquecerem, com o tempo perderão a aura heroica. Ficarão perdidos num passado sempre distante, até serem lembrados nos próximos Jogos. Heróis de quatro em quatro anos.

Em uma análise sobre a cobertura da imprensa nos Jogos Pan-Americanos de 2007, realizada em parceria com meus então orientandos de pós-graduação na Uerj, Alvaro do Cabo e Ronaldo Marques, demonstramos como a “construção” de ídolos no campo dos esportes olímpicos utiliza-se de uma lógica distinta da formação dos heróis futebolísticos. Nos Jogos, valoriza-se sobremaneira a “superação” e relega-se a um plano secundário a “genialidade” isolada, justamente o contrário do que se costuma fazer no universo do futebol, ainda que isto venha mudando nos últimos anos.

Que possamos a partir desta experiência única de sediar os Jogos no Rio de Janeiro “construir” narrativas mais próximas das realidades de nossos atletas, independente dos esportes que praticam. Esforço, treinamento e disciplina são aliados do talento e não antagonistas.

Para acessar este artigo, que foi publicado originalmente na edição do dia 2 de Agosto do Jornal “O Globo”, clique aqui .

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