Linguagem, ser e futebol

Por César R. Torres* y Francisco Javier López Frías**/El Furgón

Há alguns meses o escritor e jornalista Mempo Giardinelli publicou uma nota no jornal matutino portenho Página 12 na qual lamentava o “empobrecimento e desnaturalização” da nossa língua. Tal deterioração – que inclui a crescente utilização de angliscismos desnecessários –, argumenta Giardinelli, é perigosa porque a língua de um povo é “sua mais poderosa marca de identidade”. Ou seja, a linguagem não somente nos permite pensar, comunicarmos e entendermos, mas, como também indica Giardinelli, é a maneira mais genuína de ser. Portanto, perder a língua – seja consentindo, ou pior ainda, atiçando sua distorção – equivale a perder a identidade (ou perder-se) como povo.

Coincidentemente, poucas semanas depois, o poeta e ensaísta Rodolfo Alonso publicou no mesmo matutino outra nota refletindo sobre a “desoladora prostituição da linguagem”. Alonso lamenta que na sociedade de consumo em que vivemos a linguagem se desvaloriza como eixo civilizacional, como “limiar irrevogável da condição humana”. Alonso ressalta a importância da linguagem afirmando que “não usamos a linguagem, somos a linguagem”. Dessa maneira, a língua cotidiana de uma comunidade constitui e define essa comunidade e seus membros. Tanto para Alonso como para Giardinelli, cultivar a língua implica em cultivar uma identidade, ser o que somos.

A ideia de que a linguagem e o ser estão intimamente entrelaçados tem ilustres defensores dos quais provavelmente se nutrem Giardinelli e Alonso. Um deles é o filósofo Martin Heidegger. Segunda uma famosa formulação da “Carta sobre o Humanismo”, escrita por Heidegger, “A linguagem é a casa do ser. Em sua morada habita o homem. Os pensadores e poetas são os guardiões dessa morada”. Sob essa posição, a linguagem permite a manifestação do ser. Existimos dizendo (fazendo uso da linguagem). Como diria Aristóteles, o ser humano é o ser com razão, com linguagem. Heidegger indicaria que ao utilizar a palavra, o ser acontece, aparece, e, portanto, reside na linguagem. Daí, a preocupação de Giardinelli e Alonso por sua deterioração, pois isto causa deterioração ou ao menos o impedimento, da manifestação plena do ser. Neste sentido, Heidegger adverte que a “devastação da linguagem, que se estende por todas as partes, […] nasce de uma ameaça contra a essência do [ser humano]”, que consiste em perguntar sobre o significado do mundo que habita e seu lugar nele.

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Beckenbauer e Cruyff. Fonte: Wikipedia Commons.

A preocupação de Heidegger com a linguagem e com o questionamento do significado do mundo e de nosso lugar nele próprio enquanto seres humanos (ou, parafraseando-o, para permitir que sejamos livremente dispostos na clareza do ser), é uma das dimensões mais populares do seu pensamento. Não tão conhecido é seu amor pelo futebol. Segundo Rüdiger Safranski, um de seus biógrafos mais importantes, durante sua infância em Messkirch, Heidegger foi um bom ponta esquerda. De volta à sua cidade natal, e entre os anos, Heidegger ia a casa de um vizinho para ver pela televisão partidas da Copa Europa (atualmente conhecida como Liga dos Campões). Sanfranski relata uma anedota que demonstra a importância do futebol para Heidegger. Um dia ele se encontrou em um trem com o diretor de teatro de Friburgo, em cuja universidade Heidegger havia estudado e ensinado. Ele estava determinado a falar sobre literatura e teatro, mas Heidegger, impactado com uma partida internacional recente, preferia falar sobre Franz Beckenbauer. Heidegger, inclusive, tentou demonstrar a delicadeza do jovem defensor diante de seu espantado interlocutor. De fato, para Heidegger, Beckenbauer era um jogador inspirado e invulnerável.

 

Heidegger não considerou se o ser pode habitar no futebol. No entanto, a partir da análise heideggeriana da relação entre linguagem e ser, assim como de sua paixão pelo futebol, é possível sugerir que esse é o caso. A chave está em conceber o futebol como linguagem, como meio pelo qual tentamos responder à pergunta sobre o significado de nossa existência no mundo. O escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini se posiciona entre os que afirmam que o futebol “é um idioma com seus poetas e prosadores”. Se uma língua é um sistema de sinais – assinala Pasolini – o futebol é um sistema de sinais não-verbais. Para ele, a pessoa que desconhece “o código do futebol [seus sinais não-verbais] não entende o ‘significado’ de suas palavras (os passes) nem o sentido de seu discurso (um conjunto de passes)”. Pasolini ressalta que as “palavras futebolísticas” são potencialmente infinitas, porque assim são as possibilidades de combinação de passes em um jogo. A sintaxe, continua, “se expressa na ‘partida’, que é um autêntico discurso dramático”. À sintaxe, deve ser acrescentada a pragmática, pois o discurso incorporado no futebol recebe sentido apenas levando em consideração o relacionamento com os demais participantes, os espectadores e suas circunstâncias.

Muitas personalidades proeminentes consideram o futebol não apenas como um idioma, mas como um idioma ecumênico. O jornalista Jean Eskenasi sustenta que “O único denominador comum a todo o mudo, o único esperanto universal, é o futebol. É uma linguagem universal, cuja gramática não muda do Polo Norte ao Equador; que é falado em cada esquina com seu sotaque particular”. Tambén o escritor Fredrik Ekelund denomina o futebol como o “esperanto do pé”, e seu colega Mario Vargas Llosa acredita que é “o esperanto de nosso tempo”. Por sua vez, Eduardo Galeano, amante das letras e do esporte, afirma que “o futebol é um idioma universal”. Ainda que possa ser exagerado afirmar que o futebol é o único idioma universal, considerando a extensão de sua prática e o imenso apego pela mesma, não parece exagerado considerá-lo como uma linguagem ecumênica.

Como linguagem ecumênica, o futebol responde à pergunta sobre o sentido do ser e pode ser entendido como morada do ser. Damos conta de quem somos praticando futebol. Ao fazê-lo, o ser acontece, aparece e, portanto, vive no futebol. Seus poetas e prosistas – na realidade, todos os seus cultivadores e seguidores – são os guardiões dessa morada. Assim, deveríamos nos preocupar com a degradação do futebol tanto como Giardinelli e Alonso se preocupam com a deterioração da linguagem. Um futebol deteriorado e mal jogado ameaça uma maneira fabulosa de entendermos e comunicarmos, de identificarmos e de ser.

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Fonte: Flickr

Essa perspectiva permite compreender completamente uma confissão de Galeano feita há mais de duas décadas em razão do jogo triste, simples e medroso que ele acreditava ter sido incentivado pela tecnocracia do futebol profissional. “Passados os anos, e em longo prazo, acabei assumindo minha identidade: Eu não sou nada mais que um mendigo do bom futebol”. Mendigava pela plena manifestação do ser por meio do futebol; reivindicava o futebol para ser plenamente. Pode-se aduzir, parafraseando Heidegger, que, para Galeano, os jogadores, através de suas (boas) jogadas, levam a manifestação de ser ao futebol e o guardam lá. Por isso, celebramos, e esperamos, o futebol de jogadores excepcionais como Lionel Messi e Marta Vieira, Kylian Mbappé e Megan Rapinoe, entre muitos outros. Eles nos lembram, com seu alto desempenho, que, novamente segundo Heidegger, a verdade de ser também se manifesta no e através do futebol. E isso sugere, ou até indica, que temos uma responsabilidade ética e estética de enriquecer a linguagem que o futebol é.

* Texto originalmente publicado em El Fúrgon no dia 3 de novembro de 2019.

**Doutor em filosofia e história do esporte. Professor na Universidade do Estado de Nova York (Brockport)

**Doutor em filosofia. Professor na Universidade do Estado da Pensilvânia (University Park)

Tradução livre: Fausto Amaro e Marina Mantuano (LEME/UERJ)

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