O senso comum no jornalismo esportivo

Após a conclusão da nona rodada do Campeonato Brasileiro, com o Palmeiras liderando a competição invicto e com cinco pontos de vantagem sobre o segundo colocado, o Santos, e oito pontos sobre o terceiro, o Flamengo, o comentarista da Fox Esportes Fábio Sormani indagou, durante o programa Fox Sports: “Tem competição neste campeonato?” Para, em seguida, ele mesmo decretar: “Acho que não. Acho que o Palmeiras só perde este campeonato para ele mesmo”.

Apenas três rodadas depois, o Santos, abriu dois pontos de vantagem sobre o então campeão virtual, assumindo a liderança, condição que, quatro rodadas adiante, seria tomada pelo Flamengo. O exemplo, longe de inédito, constitui-se em caso exemplar da subjetividade no jornalismo esportivo, que tem como um dos seus pontos constituintes o senso comum que guia grande parte dos profissionais dessas editorias, como parece confirmar o silêncio e/ou a concordância dos demais integrantes daquela mesa.

Embora subjetividade e senso comum também compareçam em todas as editorias do jornalismo, eles são mais facilmente identificados ou identificáveis nas de esportes. Talvez, por serem consideradas espaços mais livres, nos quais a busca pela objetividade pode se dar ao luxo de certo relaxamento dos seus rigores habituais, as páginas de esporte da mídia são pródigas para estudos de caso. Não sobre uma exceção na engrenagem do jornalismo, mas justamente para fornecer uma visão mais transparente do processo que, em outras editorias, é mais velado.

Tal subjetivismo mais explicitado pode ser atribuído à relação estabelecida com o público, fortemente baseada em discursos mitológicos na representação de ídolos e fãs, o que, de certa forma, desculparia a existência de um texto abertamente mais opinativo e de forte caráter emocional. O senso comum de que “todo brasileiro gosta de futebol” também ajuda o jornalista a expor suas opiniões sobre o tema, sem necessidade de escudar-se na objetividade. É justamente o maior relaxamento na defesa da objetividade que ajuda a jogar luzes no processo de construção do discurso jornalístico nas editorias de esporte.

Fonte: torcedores.com

No entanto, em que se escora tal subjetivismo numa prática social que tem na objetividade sua pedra angular que garantiria sua autorreivindicada neutralidade e seu afastamento dos fatos? E o que teria autorizado o jornalista a proclamar um campeão antes mesmo que um terço do campeonato fosse disputado? Em 2018, na mesma nona rodada, o líder era o Flamengo, com um ponto de vantagem sobre o então vice-líder, São Paulo, e três sobre o então quarto colocado, o Palmeiras, vantagem que não impediu a conquista do título por este último.

A explicação não estaria ancorada, portanto, sequer no histórico recente da competição, embora aquele não seja garantia de acerto de qualquer previsão. Para a teoria construcionista do jornalismo, de  um ponto de vista sociológico, pode-se considerar os procedimentos que servem à busca pela objetividade como rituais, entendido aqui esse conceito como um procedimento de rotina que relativamente tem pouca importância ou importância tangencial para o fim procurado.

Tais procedimentos estratégicos, de acordo com a socióloga Gaye Tuchman – uma das principais representantes da corrente construcionista – seriam agrupados em cinco itens: apresentação de possibilidades conflituosas (ouvir os dois lados); a técnica do lead; provas auxiliares; uso de aspas; e a separação de fatos e opinião, o que reforçaria o caráter objetivo e neutro dos primeiros em contraponto à subjetividade e à editorialização da segunda.

Para tentar minimizar o risco de que a objetividade possa ser apropriada para justificar a produção de dois leads, igualmente objetivos, porém, com abordagens distintas em assuntos delicados para os interesses editoriais e/ou econômicos das empresas, estas recorrem as suas políticas editoriais, para reforçar o controle profissional da mídia sobre os jornalistas (SOLOSKI in Traquina, 1993). Para ser mais eficiente, no entanto, a política editorial deve estar articulada com o profissionalismo exigido de cada jornalista. Soloski considera tal método mais eficiente e econômico como forma de controle do que, por exemplo, a censura explícita. Já que esta é contrária ao profissionalismo, sendo capaz de causar estranhamentos e vazamentos, estes hoje mais prováveis e viáveis com a presença das redes sociais e mídias alternativas.

Entende-se aqui profissionalismo como o estabelecimento de normas e padrões – formato mais flexível do que o de regras gerais – e a institucionalização de sistemas de recompensa profissional, vital numa instituição piramidal como os jornais. Apesar de mitificações difundidas em contrário, jornalistas, em geral, não têm perspectivas ideológicas mais definidas e tendem a buscar fontes na estrutura do sistema político-econômico, o que facilita a naturalização de interlocutores ligados à defesa do status quo, sem que isso seja considerado antiprofissional.

Fonte: cruzeirodosul.edu.br

A construção do profissionalismo sustenta-se fortemente na defesa do senso comum. Independentemente do maior ou menor grau de consciência do jornalista, o processamento de qualquer notícia envolve conjecturas. Dessa forma, a maneira mais eficaz de um profissional defender sua matéria diante de superiores hierárquicos, fontes ou, eventualmente nos tribunais, é recorrer à objetividade. Nessa construção social fundante do jornalismo moderno, a objetividade é a norma profissional mais importante. Ela, no entanto, está fortemente ancorada no senso comum e, como este guarda fortes raízes com a defesa do status quo, a investigação sobre como o jornalismo trata times e jogadores de futebol revela muito da sociedade da qual eles são parte influente.

Por isso, ao analisar-se as razões que levaram o jornalista Fábio Sormani a decretar o Palmeiras campeão com apenas nove rodadas de antecedência, deve-se ter presente alguns dos elementos subjetivos lidos pelos profissionais como objetivos e, portanto, neutros. Com R$ 81 milhões em patrocínio de camisa, R$ 15 milhões em luvas e R$ 6,8 milhões em propriedades de marketing (inclui salários de jogadores), num total de R$ 102,8 milhões (cerca de € 24 milhões de euros, no início de 2019), o Palmeiras, alcançou, graças ao acordo com a Crefisa, a condição de um dos maiores patrocínios do mundo.

O acordo estaria atrás apenas “dos gigantes espanhóis (Barcelona e Real Madrid), da potência alemã (Bayer de Munique), do novo rico francês (Paris Saint-Germain) e do top 6 inglês (Liverpool, Manchester City, Manchester United, Arsenal, Chelsea e Tottenham).

Para reforçar a afirmação de Sormani, outro integrante da mesa redonda, citando números da Footstats – empresa que, com apoio de soluções de inteligência analítica, produz dados e estatísticas sobre esportes – projetou que, ao fim da última rodada do campeonato, a diferença seria ainda mais avassaladora a favor do clube paulista, que atingiria 82 pontos, seguido de Internacional, com 59, e Flamengo, com 52. Além disso, o senso comum, no jornalismo brasileiro, associa, automaticamente, maior capacidade financeira a títulos, e o Palmeiras fora campeão no ano anterior.

Afinal, “lá fora” – leia-se, nos principais campeonatos da Europa – é assim. Não por acaso, outro integrante do mesmo programa vislumbrava a possibilidade de o Palmeiras – clube com origens italianas – tornar-se o “Juventus do seu campeonato”. A referência era ao fato de este time ter sido campeão das últimas oito edições do Campeonato Italiano, distanciando-se, em número de títulos de Milan e Internazionale, seus perseguidores mais próximos.[1] Como nos ensina a sociologia, no entanto, toda tentativa de transplantação cultural para sociedades de realidades diferentes é, no mínimo, problemática, estando sujeita a equívocos metodológicos e de análise, como o mecanicismo.

Na Itália, antes mesmo da atual hegemonia do clube de Turim sobre seus dois adversários, a competição, como regra, limitava-se aos três clubes citados. O último campeão não pertencente ao trio fora o Roma, no distante 2001. Com variações escassas, o número reduzido de reais competidores aos títulos nacionais repete-se, como regra, em Espanha, Portugal, Holanda, Alemanha e França.

A única exceção é a Inglaterra, onde após uma maior redistribuição das cotas pagas pela televisão, em parcelas mais equânimes, passou a existir uma menor assimetria entre os clubes, permitindo que, nos últimos dez anos, quatro agremiações conquistassem o título da Premier League.[2] Os números ingleses, porém, também, são um tanto borrados pelos grandes investidores que compraram Manchester City e Chelsea, que, antes dessa mudança societária, encontravam-se distantes dos principais competidores do país.

Os dados apresentados reforçam a advertência da necessidade de cautela quando setores do jornalismo esportivo tentam transplantar mecanicamente paradigmas de centros futebolísticos marcados pelo duopólio ou pouco mais do que isso para uma realidade como a do futebol brasileiro, com diferentes e complexas identidades culturais.  Portadora de um caldeirão de possibilidades, esta permitiu que, entre 1959 e 2002 – último ano antes da era dos pontos corridos – 17 clubes fossem, ao menos uma vez, campeões brasileiros.

Mesmo a partir de 2003, quando, com a mudança para pontos corridos, o número de competidores efetivos ao título, foi afunilado, sete equipes venceram, ao menos uma vez, em 16 das edições realizadas até 2018. Tanto os números que contam o conjunto da história da competição, quanto os que se restringem ao período mais curto pós-2003 apontam para  inexistência de uma clara hegemonia, no futebol brasileiro, de um único clube ou da constituição de um duopólio, nos moldes europeus.

Brasil não é Europa

É verdade, porém, que esse maior pluralismo começa a ser desafiado a partir do aporte de recursos que ficam atrás apenas “dos gigantes europeus”, e da ampliação da assimetria na distribuição das cotas de TV, que se concentram em dois clubes.[3] Assim, nas edições entre 2015 e 2018, apenas Corinthians e Palmeiras revezaram-se no pódio. Se a análise estender-se para as primeiras posições, que asseguram classificação direta à Libertadores, se verá que a fatia de clubes de São Paulo pode, de fato, sinalizar uma concentração das equipes mais competitivas no estado mais rico da federação.

Uma exceção seria o Flamengo, um dos dois detentores – ao lado do Corinthians – da maior cota paga pela TV Globo – até 900% superior aos clubes mais tradicionais da última faixa constituída pela emissora. No entanto, pelo menos até 2018, o maior poder econômico desta equipe carioca não foi convertido em títulos no Brasileiro – apenas um na era dos pontos corridos – nem muito menos em conquistas internacionais, que não são, porém, o alvo deste artigo.

Tem-se, então, que buscar outras fontes para justificar a profecia peremptória do jornalista. Talvez, a junção de novos patamares econômicos com o antigo cacoete de comparar o futebol do Brasil com o da Europa, mas sempre, ou quase sempre, a partir do olhar europeu. Tal enviezamento já resultou em outros prognósticos,como o risco da espanholização do futebol brasileiro, que se reduziria a Flamengo e Corinthians; ou a constituição de um hegemon a partir de valores “mercantilistas”, como tamanho da torcida e do poderio econômico.

Fonte: exame.abril.com.r

Todos esses fenômenos, já examinados por mim e outros autores, embora devam ser observados com a devida atenção, no entanto, até o momento, ainda, não passaram por um processo de institucionalização que autorize uma equiparação, imediata e definitiva, com o paradigma hegemônico na Europa. O descompasso entre as profecias do jornalismo baseadas no senso comum e a realidade, no entanto, não servem de impedimento para que essas continuem sendo produzidas em série e alimentem, não raro, como dado de realidade, os debates das mesas esportivas e dos torcedores.

Um dos mais recorrentes é “Não pode deixar o Flamengo chegar, que é campeão”. Tal crença, aparentemente baseada no intervalo entre 1980 e 1983, quando o clube conquistou três dos quatro títulos em disputa, era reforçada, ainda, pela fraca performance do time nos anos em que não foi campeão, entre 1959 e 1980, com classificações que variaram entre o 24º lugar, em 1973 – pior posição no perído – e o 5º lugar, em 1976 – melhor posto no mesmo intervalo. A reivindicação de que o time se tornaria imbatível “quando chegasse” se sustentaria, assim, não apenas entre os títulos entre 1980 e 1983 – era mais vitoriosa da história do clube – como seria reforçada pelo parâmetro do “tudo ou nada”.

Após a década de 1980, porém, tal combinação não se sustentou nos fatos. Tanto o clube alcançou boas colocações quando não foi campeão – terceiro lugar (em 2016) e vice-campeão (2018) – como, em competições eliminatórias, nas quais ficaria mais acentuado o dístico “Não pode deixar chegar…”, tal profecia malogrou.

Para ficarmos apenas em exemplos mais recentes, em 2017, o clube foi derrotado pelo Cruzeiro, na disputa de pênaltis, na final da Copa do Brasil; no mesmo ano, perdeu o título da Sul-Americana para o argentino Independiente, após empate em 1 x 1, no Maracanã, que seguira à derrota, por 2 x 1, no primeiro jogo na Argentina. Em 2018, foi eliminado pelo Cruzeiro, nas quartas de final da Libertadores, após perder a primeira partida por 2 x 0, no Maracanã, e vencer o adversário por 1 x 0, no Mineirão. E, em 2019, foi a vez de o Athetico-PR eliminar o rubro-negro carioca, também, no Maracanã, na disputa de pênaltis.

Sustentar, porém, que tais descompassos entre a realidade e as convicções dos jornalistas em suas conjecturas seriam impeditivos a que o Palmeiras pudesse ser campeão do Brasileiro de 2019 e que o Flamengo possa ir adiante em jogos decisivos constituiria, em ordem inversa, um novo paradigma assentado também no senso comum.

Fonte: pretextouel.com

Uma das dificuldades de origem na crítica de outros ramos das ciências humanas ao texto jornalístico é a tendência a tratá-lo como uma espécie de sociologia mal posta ou mera propaganda ideológica. Tal abordagem peca por ignorar especificidade fundamental do jornalismo. Enquanto o texto sociológico busca dissecar os processos sociais, a notícia intenciona ajudar a familiarizar os leitores com os acontecimentos diários.

O exame dos exemplos que tratamos – e existem inúmeros outros equivalentes –  nos alertam, no entanto, para outro tipo de risco: ao elevar o senso comum à única, ou à principal, categoria de realidade, o jornalismo e os jornalistas aproximam-se, e fundem-se, com o entretenimento. Ao fazerem isso, misturam-se com papel mais talhado à jocosidade das torcidas, território a que também não deveriam filiar-se. Pois ao recusarem-se a manter a devida cautela em relação à excessiva aproximação do entretenimento, atuam, por exemplo, mais como personagens e/ou torcedores. Com isso, jornalismo e jornalistas correm o risco de contribuírem para a descontituição de um campo próprio construído longamente, ao longo dos séculos, desde a autonomização do jornalismo em relação à literatura.

Referências

GAYE, Tuchman. A objectividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objectividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1993.

SOLOSKI, John. O jornalismo e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho jornalístico In TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Veja, 1993

SOUTO, Sérgio Montero. E 1987 não acabou – penta ou hexa: diferentes memórias sobre a hegemonia no futebol brasileiros quando o “mercado” entra em campo. . Joinville: 41º Intercom, 2018.

Notas de fim

[1] Com 35 conquistas, o Juventus tem quase o dobro de títulos nacionais sobre Milan e Internazionale, ambos com 18.

[2] Entre 2010 e 2019, Manchester City (quatro vezes), Chelsea (três), Manchester United (duas) e Leicester City (uma) revezaram-se nas conquistas.

[3] Para uma comparação entre a assimetria entre audiência, números de transmissões de partidas e distribuição de cotas de TV veja SOUTO, 2018.

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