O ano de 2020 tem se apresentado conturbado e suscitado reflexões bastante interessantes e complexas. Exemplos não faltam, tanto em âmbito nacional, quanto internacional: polarização política, negação de doenças, ampliação do movimento anti vacinas, maior visibilidade para casos de feminicídios, uso de robôs para disseminação de fake news, entre tantos outros. Para a análise que se segue, destaco três temas: maior divulgação de casos de racismo e violência policial, manifestação de atletas sobre esses casos e o conceito de marketing social.
Se você esteve no planeta Terra durante este ano e tem o mínimo contato com qualquer meio de comunicação e informação, é provável que tenha conhecimento da explosão do movimento “Black Lives Matter”, que nasceu nos Estados Unidos e se espalhou pelo mundo. A organização, Black Lives Matter Foundation Inc (BLM), foi criada em 2013, pelas ativistas norte americanas Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi como uma resposta ao assassinato do jovem negro Trayvon Martin, morto por um vigia, com um tiro no peito. A ONG tem como missão “erradicar a supremacia branca e construir o poder local para intervir contra a violência inflingida às comunidades negras, praticada pelo Estado e pela polícia[1]“.
Infelizmente, as mortes de outros jovens, deram grande visibilidade para o trabalho da organização, sendo uma das de maior repercussão a de Eric Garner, em 2014. Morto por asfixia, por policiais, o caso do jovem ficou amplamente conhecido pela frase “I can’t breath” (eu não consigo respirar) proferida por ele instantes antes de perder a vida. Noticiado no mundo todo, o caso impactou alguns jogadores da NBA (National Basketball Association), como Derrick Rose, LeBron James e Kobe Bryant, que manifestaram-se utilizando camisetas com essa mesma frase no aquecimento de jogos. A atitude dos atletas gerou grande repercussão, do apoio por parte de torcedores e celebridades, ao incômodo da Liga.
Seis anos depois, a organização BLM e os atletas da NBA ganharam novo destaque no cenário mundial por suas lutas contra o racismo e a violência policial. Maio de 2020 foi marcado pela morte de George Floyd (também morto por policiais e por asfixia), o que fez explodir manifestações pelos Estados Unidos, levando às ruas, mesmo em meio a pandemia da Covid-19, milhares de pessoas e tornando conhecida mundialmente a #blacklivesmatter. Em agosto o caso de Jacob Blake (que levou sete tiros nas costas, dados por policiais) chamou a atenção mundial e teve uma marcante consequência nas principais ligas esportivas norte-americanas. Os atletas da NBA boicotaram as partidas dos playoffs como um ato de repúdio ao caso e foram seguidos pelas atletas da WNBA (Women’s National Basketball Association), MLB (Major League Baseball) e pela tenista japonesa (radicada nos Estados Unidos) Naomi Osaka, que impulsionou a paralisação do torneio de Tênis de Cincinnati. Neste contexto, outra manifestação que precisa ser mencionada é a do piloto britânico de Fórmula 1 Lewis Hamilton, que sistematicamente utiliza camisetas com conteúdo ativista, chamando atenção para este tema nos treinos e corridas em que participa.

É imprescindível lembrar que o ativismo de atletas norte-americanos é algo histórico. Em 1968, em pleno movimento pelos direitos civis e no ano da morte de Martin Luther King Jr., Tommie Smith e John Carlos ergueram seus punhos, com luvas pretas (em uma alusão ao movimento de resistência Panteras Negras) no pódio da prova dos 200m de atletismo dos Jogos Olímpicos do México. Um ano antes, em 1967, Muhammad Ali se negou a lutar na guerra do Vietnã, alegando questões religiosas e políticas. Bem mais recente, em 2016, o jogador da NFL (liga de futebol americano) Colin Kaepernick manifestou-se contra a violência policial para com jovens negros ajoelhando-se durante a execução do hino nacional em jogos da Liga.
Todos esses casos, e muitos outros, ganharam visibilidade e tornaram-se foco de polêmicas e reflexões. Por um lado, indivíduos e grupos sociais apoiam a atitude dos atletas e entendem que como cidadãos eles possuem o direito de se manifestar e como formadores de opinião têm o dever de assim agir. Por outro lado, existem aqueles que consideram esse tipo de atitude inadequada e desnecessária visto que, para eles, os atletas devem atuar (apenas) para garantir o bom desempenho esportivo, mantendo-se afastados de questões políticas e sociais.
Com esta dualidade de interpretações, e em meio a um cenário social em que a necessidade de se posicionar sobre variados temas transformou-se em atividade cotidiana, é hora de introduzir o terceiro tema desta reflexão: o marketing social.
Todas as causas interessam ao marketing?
Bastante difundido entre os profissionais da área, o marketing social é o emprego de técnicas do marketing tradicional para promover e divulgar ações e projetos que proporcionem uma melhoria e transformação na vida social (CREDIDIO e YANAZE, 2011). Essas ações (que podem configurar-se em casos pontuais, patrocínios ou até em grandes projetos que compreendem a filosofia e a identidade empresarial) envolvem questões que buscam auxiliar na inclusão social de grupos minoritários, no aumento do acesso à educação, na proteção ao meio ambiente, entre outras iniciativas. O ponto central é a organização perceber a importância de seu papel como um elemento constituinte da sociedade e atuar em benefício da coletividade social de forma coerente com suas atividades de negócio. Esse tema é crescente no mundo todo e os assuntos que o envolvem passaram a fazer parte do conjunto de regras e medidas que formam o compliance de muitas empresas.
A expansão da comunicação digital e a explosão das redes sociais digitais possibilitaram uma maior visibilidade para essas ações e projetos, e a sua presença passou a ser percebida mais fortemente pelos públicos de interesse das organizações. As demandas que constituem o cenário social, passaram a ser também as demandas de muitas empresas, já que boa parte dos seus públicos passou a cobrar delas posicionamentos legítimos sobre os mais diferentes temas.
Essa conjuntura apresenta vantagens e desvantagens para as organizações. As vantagens são aparentes no âmbito relacionado ao gerenciamento das marcas (ou gestão de branding): trazem proximidade com seus públicos, ampliam o poder de empatia entre consumidores e produtos, aumentam o engajamento e a motivação dos colaboradores, aprimoram o valor competitivo da marca, entre outras. Já as desvantagens aparecem quando a empresa não faz suas ações corretamente ou não pratica internamente (em seus processos e nas relações com funcionários e fornecedores, por exemplo) os discursos e as atividades presentes nas ações sociais. Nesses casos os prejuízos podem ser: perda de credibilidade da marca, boicote de consumidores, ações judiciais, desmotivação por parte dos colaboradores etc.
Quando a atuação das organizações se configura em ações ou projetos em prol da ampliação da educação, da preservação do meio ambiente ou contra o trabalho infantil, por exemplo, os riscos de incoerência discursiva são menores (apesar de existirem) pois esses são temas discutidos e trabalhados abertamente nas sociedades, com regras e leis bastante estabelecidas e que quando são quebradas geram rápida reação negativa de ampla maioria. Entretanto, quando o assunto é o sexismo, a misoginia, a xenofobia e o racismo as ações sociais passam a percorrer caminhos mais nebulosos, menos definidos dos pontos de vista cultural e legal e que abrem espaço para amplo debate e polarização.

É importante destacar que todo esse universo estratégico e comunicacional do marketing social, assim como todas as práticas do marketing em geral, podem ser aplicadas por empresas de diferentes segmentos, ongs, clubes e personalidades. Em todos esses casos, se comprometer (apoiando ou não) com temas de visibilidade atual como igualdade racial e de gênero, diversidade sexual, posse de armas, violência contra mulher, descriminalização de drogas e tantos outros, tornou-se quase uma questão de necessidade mercadológica, pois a neutralidade, ou isenção, também é compreendida como uma forma de posicionamento (que normalmente desagrada a maioria).
Ao retomar o conteúdo abordado no início desta reflexão é possível perceber que, sob a ótica do marketing social ele pode ser analisado em duas vertentes: a dos atletas e a das empresas patrocinadoras e ligas.
Observando o posicionamento dos atletas sobre o racismo e a violência policial é evidente que as manifestações praticadas dizem respeito aos seus interesses individuais, aos seus modos de compreender a sociedade e que eles se utilizam de estratégias e táticas de marketing para tornar visíveis suas opiniões (publicam em redes sociais, vestem roupas com mensagens, fazem discursos em coletivas de imprensa etc). Eles praticam o marketing social em busca de equidade racial de maneira, aparentemente, coerente com suas atividades pessoais e profissionais. Tornam-se porta-vozes de milhares de pessoas sem visibilidade, chamam atenção para o problema e promovem o debate social.
Já sob a dimensão das empresas patrocinadoras, das ligas e dos dirigentes a trama se apresenta um pouco mais complexa. Ao se posicionar a favor de uma causa, uma organização precisa avaliar o quanto essa atitude será benéfica para os negócios. O quanto, realmente, a causa em questão faz parte da sua forma de ver o mercado, o quanto ela age, efetivamente, de acordo com esse tema. No caso específico do racismo, essas organizações possuem diversidade racial em suas equipes? Seus públicos apoiam essa causa e querem saber suas opiniões? Existem casos de discriminação em suas práticas mercadológicas? Essas são algumas perguntas básicas que precisam ser feitas antes de serem levantadas bandeiras.
No caso das ligas norte-americanas existe todo um envolvimento mercadológico e político com patrocinadores e governos, além do relacionamento com atletas e públicos, que precisa ser levado em conta. NBA e MLB possuem, de certa forma, “poucas” amarras nesses pontos o que possibilita um posicionamento de maior apoio aos atletas, como visto nas paralisações de agosto. Já a NFL, por exemplo, conserva grande influência política em suas relações o que fortalece posições como o boicote à Kaepernick, que permanece até hoje sem contrato com qualquer equipe.
Fora do cenário da ligas norte-americanas é interessante observar as repercussões dos casos de Naomi Osaka e Lewis Hamilton. Ele tem utilizado com frequência camisetas com frases ativistas ou com nomes de negros mortos pela polícia durante dos treinos da Fórmula 1. Ela (além da paralização no torneito de Cincinnati) utilizou máscaras de proteção com nomes de negros mortos pela polícia antes de todos os jogos do US Open. Hamilton aguarda avaliação da FIA que verifica se sua manifestação pedindo punição aos responsáveis pela morte de Breonna Taylor (morta a tiros por policiais dentro de seu apartamento) configura ato político, o que é proibido pelas regras da Federação. Já alguns patrocinadores japoneses de Osaka pediram que ela chame mais atenção pelo seu desempenho em quadra e ponderam que as manifestações feitas por ela podem não ser uma boa ação para aumentar o valor de uma marca corporativa.
No caso específico do racismo, o problema é estrutural e histórico em várias sociedades, como nos Estados Unidos e no Brasil. As práticas sociais se desenvolveram durante séculos sob a égide de que esse é um tema tabu, que não se deve comentar, que, “em verdade, não existe”. Isso criou abismos sociais e feridas (coletivas e individuais) que quando tocadas reverberam como tsunamis, tanto entre aqueles que lutam pelo seu fim, quanto pelos que negam sua existência.
A dualidade deste tema aparece até mesmo nas reações em relação ao ativismo dos atletas. Por um lado existe a revolta por saber que ainda serão vistas muitas destas manifestações, pois os casos a serem divulgados não acabarão tão cedo. Mas também existe a esperança ao perceber os holofotes virados para esse ativismo, pois ele é capaz de promover o debate e impulsionar a revisão de práticas sociais e culturais. Que esses atletas engajados possam contribuir para que seus fãs e torcedores reflitam, debatam, mudem seus pensamentos e forcem posicionamentos favoráveis à causa por parte de ligas, federações, clubes e, principalmente, patrocinadores (quem coloca o dinheiro manda!). Quem sabe assim, o marketing social possa ser ampla e verdadeiramente aplicado pelo maior número de atores e contribua para uma transformação nas mais variadas causas que interessam à sociedade em geral.
Referências
CREDIDIO, Fernando; YANAZE, Mitsuru H. Marketing Social, comunicação por ações sociais, responsabilidade empresarial. In: YANAZE, Mitsuru H. Gestão de Marketing e Comunicação: avanços e aplicações. São Paulo: Saraiva, 2011.
[1] BlackLivesMatter was founded in 2013 in response to the acquittal of Trayvon Martin’s murderer. Black Lives Matter Foundation, Inc is a global organization in the US, UK, and Canada, whose mission is to eradicate white supremacy and build local power to intervene in violence inflicted on Black communities by the state and vigilantes.
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