Neste texto, retorno à minha dissertação de mestrado (Rios, 2014), que completou dez anos de sua defesa em março deste ano. Na referida pesquisa, abordei a relação entre futebol, masculinidade e emoção, a partir da análise de “memórias apaixonadas” de torcedores dos principais clubes do futebol carioca (Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco), colhidas por meio de entrevistas qualitativas semiestruturadas. Essa foi minha primeira incursão acadêmica ao universo das emoções no contexto do futebol, um grande desafio para um pesquisador iniciante, às voltas com a tarefa de legitimar uma arriscada combinação de temas tradicionalmente
menosprezados no âmbito das ciências sociais.
Na época de realização da pesquisa, a articulação entre futebol e masculinidade era quase uma obviedade, dada a longeva hegemonia masculina neste universo cultural. De lá para cá, as mulheres vêm conquistando mais espaços, seja como torcedoras, atletas, jornalistas, e até mesmo como dirigentes, mas o futebol segue sendo dominado por uma maioria numérica e simbolicamente masculina, apoiada em uma estrutura de poder e um conjunto de valores comprometidos com o reforço da masculinidade.

Mas se futebol é “coisa de homem”, como então explicar a flagrante valorização das emoções num universo tão masculino? Se “homem não chora”, como então dar conta dos arroubos de alegria ou tristeza de torcedores homens diante das conquistas e derrotas de seus “clubes do coração”?
Segundo Catherine Lutz (1988), a cultura ocidental é marcada por uma forte oposição entre razão e emoção, valorizando-se a primeira em detrimento da segunda. Assim, as emoções são negativamente definidas como o avesso da razão, associando-se às noções de descontrole, excesso e perigo. Essa hierarquia entre razão e emoção articula-se ainda a outras clivagens sociais, de modo a alimentar discursos que buscam justificar ideologicamente o domínio de determinados grupos sobre outros. Nesse sentido, homens, brancos e ocidentais, em geral, seriam naturalmente mais racionais do que mulheres, não brancas e não ocidentais, residindo aí a base de sua dominação.
Por outro lado, a cultura ocidental comportaria também uma espécie de contradiscurso romântico, pelo qual as emoções são valorizadas como sinônimos de humanidade, autenticidade e envolvimento. Assim, a complexidade emocional seria um traço distintivo da espécie humana tão ou mais importante quanto a superioridade de suas capacidades cognitivas. Além disso, as emoções seriam o que há de mais autêntico no plano das ações individuais, conferindo originalidade e singularidade às experiências subjetivas. Por fim, ao denotarem envolvimento, as emoções se apresentam como base para a construção e manutenção das relações sociais, em oposição ao caráter antissocial de uma racionalidade “fria e calculista”, mais afeita à competição de todos contra todos.

O antropólogo Arlei Damo (2002) enfatiza justamente a influência desse ideário romântico sobre o universo cultural do futebol, sobretudo no que diz respeito à experiência dos torcedores. Segundo ele, a relação dos torcedores com seus “clubes do coração” se daria na forma de um “engajamento emocional”, ensejando sentimentos de amor, paixão e fidelidade. Em contraste com os profissionais atuantes no meio, que precisam racionalizar suas emoções visando ao bom desempenho de suas funções, a experiência dos torcedores seria intrinsecamente baseada em seus afetos clubísticos, que permeiam todas as suas visões e sensações. Nesse sentido, os torcedores não só podem, como devem se comportar de modo apaixonado, mostrando-se capazes de cometer loucuras e sacrifícios em nome do clube de sua predileção. Essa performance emocional baseada no exagero e no descontrole é justamente o que se espera do “verdadeiro torcedor”, tal como tipificado neste universo.
Ainda com base no ideário romântico, os clubes de futebol são frequentemente comparados a nações, com símbolos, tradições e valores próprios. Os torcedores formariam, assim, uma “comunidade imaginada de sentimentos”, compartilhando um conjunto de memórias que lhes conferem um senso de unidade e pertencimento ao longo do tempo, conectando diferentes gerações.

No âmbito das ciências sociais, costuma-se atribuir a Maurice Halbwachs (1990) a fundação do campo de estudos dedicados à memória. O autor francês defende o caráter coletivo da memória, em contraste com a noção de que as lembranças consistiriam num fenômeno puramente subjetivo. Em suma, as memórias seriam construções sociais, erigindo-se com base em marcos e padrões definidos coletivamente. Assim, são os quadros sociais da memória que determinam o que deve ser lembrado ou esquecido, as dores e alegrias a serem celebradas ou não, conferindo ordem e coerência às experiências individuais e coletivas no plano diacrônico.
No caso das memórias coletivas no universo do futebol, merecem destaque as lembranças ligadas às grandes conquistas e derrotas, aos gols marcantes e “inesquecíveis”, seja por sua importância na história dos clubes, por sua plasticidade, ou ainda, pela relevância afetiva que assumem para os torcedores. Torcedores do Botafogo, por exemplo, costumam mencionar a conquista do campeonato carioca de 1989 como uma memória marcante na formação de sua identidade alvinegra. Trata-se de uma vitória conquistada em uma final disputada contra o Flamengo, seu maior rival, dando fim a um jejum de 21 anos sem títulos. O famoso “gol do Maurício” pode ser rememorado em detalhes mesmo por aqueles que não eram nem nascidos à época, dada a profusão de relatos e imagens relativos ao evento, consumidos no processo de formação do ethos botafoguense.

No caso dos torcedores do Fluminense, para além das memórias felizes ligadas a conquistas do passado, destaca-se a densidade emocional conferida ao período em que o clube disputou a Série C do campeonato brasileiro. Apontada como o pior momento da história do clube, essa fase sombria também é lembrada como um momento de demonstração de amor e fidelidade por parte daqueles torcedores que seguiram apoiando o clube em seu calvário. A derrota na final da Copa Libertadores de 2008 no Maracanã também é rememorada como um trauma coletivo e pessoal pelos torcedores – espectro exorcizado pela conquista deste título em 2023, ensejando sentimentos de superação e libertação.
Entre os torcedores do Vasco, uma das memórias mais celebradas é a conquista do título da Libertadores em 1998, ano de centenário do clube, com destaque especial para o gol de falta marcado por Juninho (Pernambucano) na semifinal disputada contra o River Plate – tão marcante que virou tema de um dos cânticos entoados pela torcida nos estádios até hoje. O próprio modelo peculiar do uniforme trajado pela equipe naquela competição é cultivado como algo especial pelos cruzmaltinos, assim como a camisa com patrocínio da Seven Up remete ao título brasileiro de 1995 e à artilharia de Túlio Maravilha para os torcedores do Botafogo.

No caso dos torcedores do Flamengo, as diversas conquistas da chamada “Era Zico” são as mais celebradas, com destaque para os títulos da Libertadores e do Mundial no ano de 1981. Em tempos um pouco mais recentes, os torcedores destacaram também a conquista do tricampeonato estadual em 2001 e do campeonato brasileiro de 2009, ambas protagonizadas pelo sérvio Petkovic. Já entre as maiores tristezas ou vergonhas vivenciadas pelos torcedores, a mais mencionada foi a eliminação para o América do México nas quartas de final da Libertadores de 2008 – uma derrota tão inesperada e acachapante que parecia não ser real, tamanha a certeza da classificação antes do jogo.
Entre 2014 e 2024, muita coisa aconteceu, novas memórias se formaram e as antigas lembranças também estão sempre sujeitas a mutações, na medida em que nossas visões sobre o passado são fortemente condicionadas por nossas vivências no presente – assim como nossas experiências no presente são também influenciadas pelas imagens do passado que carregamos em nossas memórias individuais e coletivas. Nesse intervalo, alguns clubes passaram por experiências traumáticas de “rebaixamentos”, um dos grandes fantasmas temidos pelos torcedores. Por outro lado, algumas conquistas importantes vieram se somar ao conjunto de glórias a serem eternamente rememoradas e transmitidas às futuras gerações. Afinal, essas “memórias apaixonadas” são uma parte importante daquilo que faz do futebol algo mais que apenas um jogo.
REFERÊNCIAS
DAMO, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
HALBWACHS, M. A Memória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
LUTZ, Catherine. Unnatural Emotions: Everyday Sentiments on a Micronesian Atoll and Their Challenge to Western Theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1988.
RIOS, Fábio Daniel. Futebol, masculinidade e emoção: memórias apaixonadas de torcedores. 2014. 142f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.