O samba do grande Nei Lopes imortalizou Antonio de Paula Filho, o Dondon, zagueiro do Andarahy Athletico Club, já extinto time de futebol da zona norte do Rio de Janeiro. Na canção, o jogador é o símbolo de um tempo em que a vida era mais simples de viver. “Não tinha tanto miserê nem tinha tanto ti ti ti. No tempo que Dondon jogava no Andaraí”.
Dondon, para mim, também acabou virando um símbolo daquele futebol das primeiras décadas do Século XX. Um tempo de sportsmen apaixonados, amadores, que jogavam pela honra de defender a camisa e a bandeira de seus clubes. Tudo bem que nem sempre era exatamente assim, pelo menos nos idos da década de 1930, quando o profissionalismo, mesmo ainda velado, em muitos casos, já se mostrava inevitável na prática do bom e velho esporte bretão em nossas canchas.
Mas o que um defensor, que atuava no modesto field da antiga Rua Prefeito Serzedello Correa, no bairro do Andaraí, tem a ver com a distante Irlanda? Na prática, nada, mas na cabeça deste autor, trata-se de uma relação inevitável. É que na viagem que fiz recentemente a Dublin, capital daquele país, tive o prazer de ser apresentado ao futebol gaélico, um esporte que, de acordo com um guia do estádio Croke Park, é uma mistura de futebol, rúgbi, handebol e basquete. Ficou confuso? Eu explico.
A modalidade teria sido originada por um jogo popular na região ainda no século XVI, o caid, mas só teria chegado ao formato atual nas primeiras décadas de 1800. Hoje são quinze jogadores de cada lado, num gramado um pouco maior do que um campo de futebol normal (130m x 90m). As traves são do mesmo tamanho que as do futebol comum, só que os postes laterais se estendem, lembrando uma trave de rúgbi ou futebol americano. Se a bola ultrapassar a linha final entre as traves, o time pontua. Passando por cima do travessão, é assinalado um ponto, mas se passar por baixo, onde há um goleiro, aí são três pontos.
As partidas têm menor duração (dois tempos de 30 minutos) e, se terminar empatada, há prorrogações de 20 minutos até que saia um vencedor. A bola parece com a de vôlei, porém, é mais pesada do que a de futebol e pode ser conduzida de várias formas: carregada, através de pequenos chutes, quicada e passada com as mãos para companheiros. Os arremates a gol são através de chutes, mas a bola também pode ser socada em direção à meta. Sei que parece meio complicado de imaginar, mas, se você der uma olhada nesse vídeo (uma coletânea dos melhores momentos de 2022), vai poder entender melhor.

A modalidade também tem um campeonato nacional disputado por mulheres. As regras são exatamente as mesmas. Em dois domingos de setembro acontecem as finais masculina e feminina (nos outros dois domingos é a vez das finais do hurling, esporte nacional da Irlanda, jogado com tacos e uma pequena bola e que mereceria um outro artigo apenas para ele). O palco é o Croke Stadium, com capacidade para quase 90 mil espectadores. E o mais bacana de tudo é que nessas finais não há ingressos pagos. A lotação é dividida, meio a meio, entre os moradores das cidades dos times finalistas.

E é aqui que se dá o link entre a Irlanda e Dondon (finalmente…). Todos os atletas que disputam o futebol gaélico são amadores. Têm outras profissões e se dedicam ao esporte por paixão, pela honra de defenderem suas cidades. Um sentimento bem parecido com aquele dos primórdios do futebol em terras tupiniquins.
Um detalhe muito interessante da visita guiada pelo estádio é que além de conhecermos vestiários, tribunas, cabines de transmissão, arquibancadas, fomos levados a um salão onde acontecem, após cada uma das finais, uma recepção para o congraçamento dos atletas dos dois times. Ali eles se confraternizam, bebem juntos, como colegas que praticam o mesmo esporte. Diante de nosso espanto com esse tipo de circunstância, o guia nos explicou que todos eles jogam entre si desde as categorias de base e que, apesar da disputa árdua em campo (e algumas delas são, fisicamente, bem duras), o que reina, após o apito final, é a camaradagem.
Aqui já foi assim. Quando clubes visitavam outras cidades, as delegações eram recebidas nos portos ou estações de trem pelos jogadores adversários e sempre havia uma festa programada para reunir os atletas na véspera da partida. Algo inimaginável nos dias de hoje, quando vemos a animosidade tomar conta do futebol e não apenas entre os torcedores.
Palco de glórias e de uma tragédia
O Croke Park é, definitivamente, um belo passeio para os amantes do esporte. Na entrada estão estampados os escudos das equipes que integram GAA (Gaelic Athletic Association). Ao todos são 2.200 times de futebol gaélico, nos 32 condados irlandeses.
O estádio tem um belo museu, não só voltado para o futebol gaélico, mas também para o hurling. Um ambiente interativo com peças históricas e lembranças de campeonatos e jogadores que marcaram época. O espaço também mostra que, graças aos imigrantes irlandeses, os esportes gaélicos se espalharam pelo mundo e, hoje, são praticados em mais de 70 países ao redor do mundo (no Brasil não há registro da prática dessas modalidades).
Contudo, a parte mais emocionante é a que relata os acontecimentos do chamado Domingo Sangrento. Era dia de jogo entre o Dublin Team e o Tipperary Team, mas a capital irlandesa se encontrava em pé de guerra. O IRA (Exército Republicano Irlandês), que lutava pela independência do país, então parte do Império Britânico, havia emboscado e matado nove oficiais ingleses. A represália foi violenta e teve como cenário justamente o estádio, onde se encontravam cerca de dez mil pessoas. Pouco antes do jogo começar, um avião fez dois rasantes sobre a plateia. Era a senha para que atiradores começassem a disparar contra a multidão. O pânico, obviamente, se instalou no local. Foram cerca de dois minutos de muitos tiros e o que se viu depois foi desolador: 14 pessoas mortas, incluindo um jogador do Tipperary e cerca de 100 feridos. Um episódio marcante que os irlandeses decidiram nunca mais esquecer.
Para os apaixonados por esporte, o passeio a esse local tão emblemático de Dublin se torna obrigatório. Eu, um sentimental “juramentado em cartório e com firma reconhecida” me emocionei várias vezes: ao ver o vídeo sobre as finais disputadas ali, ao entrar no gramado ao som de uma gravação que reproduzia o som do estádio lotado e ao ver a cumplicidade de um pai com sua jovem filha vivendo aquela experiência única em um local de tanto significado para o povo irlandês.
Fica bem claro para qualquer visitante que o futebol gaélico e o hurling são mais do que meros esportes. Basta ler os painéis que se encontram nos vestiários. Mensagens aos jogadores sobre importância de estar ali e que pregam valores como disciplina, comprometimento, despojamento da vaidade, foco, prazer, trabalho duro e, principalmente, jogar em paz.
Nada é mais tocante, porém, do que um cartaz na área de acesso dos torcedores. Um lembrete a todos que ali passam sobre o lema da GAA. Palavras que me tocaram fundo e me fizeram ter a nostalgia de um tempo que nem vivi. Uma utopia do esporte apenas pelo valor da competição. Um sonho que, em boa parte do mundo, não tem mais lugar e que, no entanto, resiste bravamente numa pequena ilha do Mar do Norte.
“Todos nós pertencemos a este lugar. Não por causa de quem somos ou de onde viemos. Estar aqui significa pertencer. Pertencer significa saber que você faz parte de uma comunidade. Uma comunidade que tem um lugar para todos. Onde o potencial é nutrido, onde os indivíduos se tornam equipes que honram aqueles que vieram antes e se esforçaram para construir um legado. Alguns de nós jogam. Alguns costumavam jogar. Alguns de nós nunca jogaram. Todos nós pertencemos. Pertencer significa que temos voz, significa poder dizer o que você acha certo. Ser ouvido. Pertencer significa respeitar um ao outro, significa estar lá, um para o outro, em campo; fora do campo. Pertencer é arregaçar as mangas e fazer o que tem que ser feito. Todos nós pertencemos, seja no nosso primeiro dia ou no nosso centésimo ano. Todos nós pertencemos a isso aqui, porque este lugar pertence a todos nós. Nosso GAA. Onde todos nós pertencemos” (tradução livre do autor).
Como não se emocionar?