A questão migratória no mundo é de ordem transnacional, própria de uma sociedade globalizada. Como fenômeno pós estado-nação, e, por isso mesmo, marcado pela ruptura entre questões nacionais e identitárias, é preciso que sejam levados em consideração aspectos culturais e territoriais, indo além da questão das fronteiras formais. Podemos mesmo considerar a migração um fato social, uma vez que extrapola as fronteiras do cotidiano e influencia as ações humanas, no espaço público e privado. Neste sentido, o imigrante-refugiado se apresenta como um indivíduo híbrido por excelência, símbolo do sujeito contemporâneo, ao mesmo tempo nativo e estrangeiro, cosmopolita e de lugar nenhum, se configurando como um objeto de reflexão para entender os fenômenos sociais e políticos que marcam a contemporaneidade, fazendo surgir, ainda, uma maior compreensão de si e do outro.
Uma das principais diásporas contemporâneas é a haitiana. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas parra Refugiados (ACNUR), em 2010, houve 442 solicitações de refúgio por parte dos haitianos. Em 2016, esse número chegou a 6010, configurando um expressivo aumento de aproximadamente 1.260% no número de solicitações. O país apresenta características alarmantes, o que deveria dizer respeito a todos nós. É o país mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo, ocupando o 168º lugar entre 170 países, no que se refere ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Não à toa, vive mergulhado em sucessivas crises econômicas e políticas.

Para piorar ainda mais a situação, em 2010, o Haiti sofreu um terrível terremoto que devastou o país e cujo epicentro se localizou em Porto Príncipe, sua capital. A estimativa é que cerca de três milhões de pessoas tenham sofrido as consequências desta catástrofe, ocasionando a morte de aproximadamente 250.000 pessoas, ferindo mais de 300.000 e deixando 1,5 milhão de desabrigados. É esse o cenário que leva milhares de haitianos a deixarem o país em busca de melhores condições de vida. Ao migrarem, estas pessoas deixam para trás famílias, histórias, identidades e afetos. Muitos deles vêm para o Brasil devido ao fato de o país possuir ações que facilitam a entrada de imigrantes, a chamada “Política de Portas Abertas”.
Numa situação de diáspora forçada, essas pessoas foram dispersas da sua terra natal sem perspectiva de volta, pelo menos para a maioria deles. Eles vivem, de forma simultânea, o sentimento do exílio e do desconforto, presente no enigma da chegada. Para muitas destas pessoas, a adaptação e vinculação ao novo lugar se dá pelo esporte, considerado um relevante instrumento capaz de promover a integração sociocultural.
Neste sentido, uma das principais iniciativas é a desenvolvida pelo Centro de Treinamento Pérolas Negras. A instituição existe no Haiti desde 2004, por uma iniciativa da ONG Vivo Rio. No Brasil, as atividades tiveram início em 2016, com a criação do Centro de Treinamento, localizado na cidade de Paty do Alferes, região do Vale do Café, no Estado do Rio de Janeiro. Além do Centro de Treinamento, a instituição conta ainda com uma escola, além de servir de residência para os aproximadamente 120 atletas, de ambos os sexos. Além dos haitianos, frequentam a instituição, brasileiros, sírios e venezuelanos. De acordo com a entidade, o objetivo é “empoderar estes jovens para que se tornem protagonistas de suas próprias histórias”. Ela acredita que o esporte de alto rendimento pode ser utilizado para criar condições para que essas pessoas sejam capazes de se inserir socioeconomicamente no país.

Além de ter uma equipe profissional registrada na Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, há também o desenvolvimento de um excelente trabalho nos níveis de base, sub-20 e sub-17, além de uma equipe feminina. E o projeto vem dando excelentes frutos: contrariando muitas expectativas, em 2017, a equipe doe Pérolas Negras foi campeão da série C do Campeonato Carioca e, em 2018, na série B2 do mesmo torneio, alcançou o 4º lugar. Fica claro, então, que o Pérolas Negras segue firme no caminho de proporcionar a estes jovens uma real oportunidade de se inserir no competitivo mercado mundial do futebol.
A relevância social do Pérolas Negras é inegável. Atualmente, é a única instituição das Américas que acolhe, abriga e treina um time mundial de refugiados. Com uma visão pioneira e holística, é um exemplo que a crença na aceitação e coabitação das diferenças e os consequentes mútuos e plurais aprendizados são capazes de gerar transformações positivas. Por meio da educação e capacitação profissional, ele promove a integração socioeconômica e resgate da cidadania de milhares de pessoas que chegam aqui muitas vezes em extrema situação de precariedade e vulnerabilidade. Desta forma, por meio do futebol, e de maneira paulatina, essas pessoas negociam seus espaços, físicos e simbólicos. Embora árduo, é também gratificante este caminho de construção de novas territorialidades, neste novo lugar, carregado de novos sentidos, chamado Brasil.
Referências
CASTRO, Luíz Felipe. O Haiti é aqui na Mooca. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/esporte/o-haiti-e-aqui-na-mooca/>. Acesso em: 22 set. 2019.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
Martins, Raphael. Pérolas Negras. Conheça os haitianos que jogaram a Copa SP. Exame.com.br. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/perolas-negras-conheça-os-haitianos-que-jogaram-a-copa-sp>. Acesso em: 22 set. 2019.
Da redação. Conheça o Haiti, país mais pobre das Américas. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/mundo/conheca-melhor-o-haiti-pais-mais-pobre-das-americas/>. Acesso em: 22 set. 2019.
ACNUR. Refúgio em Números. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/01/refugio-em-numeros-2010-2016.pdf>. Acesso em: 22 set. 2019.