O Maracanã é de todos

“Cabe repisar, ainda, que o réu detém apenas o direito de permissão do uso do bem público de forma precária. O local pretendido é bem público do Estado do Rio de Janeiro, sendo o réu mero permissionário do complexo, e não, proprietário, restando evidente que o Termo de Permissão vincula obrigatoriamente as partes.

O referido Termo determina que ‘observada a disponibilidade de datas, será permitido aos demais clubes do Estado do Rio de Janeiro realizar partidas oficiais no Maracanã’, bem como que ‘a permissionária deverá possibilitar a utilização do Estádio em condições de igualdade pelos demais clubes do futebol profissional’ […] e que o réu deve gerir a operação de modo a sediar a maior quantidade de partidas de futebol de primeira linha no Estádio.”

Parágrafo Quinto, letra B do edital de concessão temporária: “fica vedado… favorecimento a uma ou mais de uma agremiação clube… por meio de oferta de utilização exclusiva ou preferencial do Complexo, em especial, do Estádio Jornalista Mário Filho”.

O texto acima é parte da decisão do juiz Alessandro Oliveira Félix, da 51ª Vara Cível do Rio de Janeiro, de 2022, a respeito de reconhecer o direito de todos os clubes jogarem no Maracanã, inaugurado em 1950 para atender o futebol carioca e brasileiro. Na ocasião, a justiça do Rio deu ganho de causa ao Club de Regatas Vasco da Gama, que tentava mandar a partida contra o Sport, válida pela Série B, mas que não teve a solicitação atendida pela dupla Clube de Regatas do Flamengo e Fluminense Football Club. Como aconteceu em outras vezes, inclusive ao longo de 2023, o Vasco da Gama precisou entrar na justiça para fazer valer o seu direito de também jogar no Maraca. Também há o parágrafo quinto, letra B do edital de concessão temporária, que garante aos clubes jogarem no Maracanã, desde que não haja conflito de datas com jogos de Flamengo e Fluminense.

Como bem reiterou a sentença do juiz Alessandro Oliveira Félix, Flamengo e Fluminense são apenas permissionários – não proprietários – do Maracanã, reforçando que o estádio é “bem público do Estado do Rio de Janeiro”. Mas por que tratar disso agora? Porque o debate joga ou não joga no Maracanã voltou à tona neste mês de março para a partida de volta entre Nova Iguaçu x Vasco, válida pela semifinal do Campeonato Carioca. A Laranja Mecânica da Baixada, de acordo com os interesses próprios, tentou mandar a partida no Maracanã, mas a administração conjunta da dupla Fla-Flu nem sequer respondeu a solicitação. Em nota ao ge.com, os dois clubes se eximiram de quaisquer responsabilidades, afirmando uma possível pressa do Nova Iguaçu em marcar a partida. 

“O Nova Iguaçu precisava de uma resposta até o meio-dia de hoje (13/03). Como o consórcio ainda estava analisando a solicitação feita, o clube optou por marcar logo o jogo no Estádio da Cidadania, em Volta Redonda”.

Além da má vontade expressa desde 2022 a respeito do tema, o “consórcio ainda estava analisando a solicitação”. Quem conhece como funciona uma partida de futebol, a celeridade necessária em resolver a burocracia, como o mando de campo, é urgente, especialmente quando o tempo, para a organização e preparação de um estádio para um jogo de grande público, é curto.

Desta vez, o maior prejudicado foi o Nova Iguaçu, que poderia obter uma renda que ajudaria a incrementar o ano de 2024 do clube da Baixada Fluminense, uma vez que a partida de ida, empatada em 1 a 1 no Maracanã, gerou mais de R$ 3 milhões de renda para o Vasco. Para um clube como o Nova Iguaçu, seria fundamental ter esse reforço nos cofres em ano de disputa da Série D do Campeonato Brasileiro. Inicialmente sem a resposta de Fla-Flu, o jogo foi marcado pela federação do Rio de Janeiro para Volta Redonda. Após toda a repercussão negativa nas redes sociais e na imprensa e do posicionamento do governador Cláudio Castro, colocando o estádio à disposição de Nova Iguaçu x Vasco, a partida finalmente foi marcada para o Maracanã. Com todo o respeito ao povo da Cidade do Aço, não seria o mesmo glamour você jogar no Raulino de Oliveira em vez do Maracanã.

Foto: Erica Ramalho

Existe a discussão de o futebol paulista ser mais desenvolvido que o carioca, para além dos quatro grandes de cada estado. Quantos clubes do Rio de Janeiro estão na Série B? Sim, nenhum. Agora, quantos de São Paulo estão na Segundona? Seis equipes, além do grande Santos: Botafogo-SP, Guarani, Ituano, Mirassol, Novorizontino e Ponte Preta. Não é nem necessário contar as demais séries do futebol brasileiro. Por que existe essa divergência? Um debate que não deve ser reduzido a regionalismo. Entre as causas, certamente estão as picuinhas clubistas no Rio de Janeiro. O que os grandes clubes cariocas (Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco) fazem para o futebol do estado ser forte? Um estado forte e pujante atrai mais investimentos, revela mais jogadores de qualidade, fortalece o Campeonato Carioca e, consequentemente, o time dessas quatro equipes para disputas mais importantes, como o Brasileirão e a Copa Libertadores.

Na realidade, o que existe são batalhas judiciais e descompromisso de dirigentes para um fortalecimento geral do futebol do Rio de Janeiro, fincando qualquer decisão baseada única e exclusivamente apenas no próprio umbigo. A individualidade acima de tudo. Esse cenário desalentador tem grande participação da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj), que não possui posicionamentos que possam desagradar a clube ou A clube B, independente da discussão da vez. Omissa e responsável por essa realidade. Soma-se a isso, qual é a imagem que a Ferj quer construir do futebol carioca e de seu estadual? Existem conflitos diversos que envolvem cotas dos direitos de TV, a péssima arbitragem, o Maracanã etc. A imagem do produto Campeonato Carioca tem sido pulverizada por quem deveria zelar e promover (clubes e federação).

O governo do estado, quem deveria coordenar o Maracanã para que atendesse a todos, é outro responsável por uma briga sem solução. Enquanto a concessão final não seja selada. A dupla Flamengo e Fluminense administra o estádio por meio de concessões temporárias desde 2019, com chancela do governador Cláudio Castro, que tem usado a imagem do rubro-negro, clube de maior torcida do Brasil, para legitimar sua popularidade. Assim como fez Jair Bolsonaro com o mesmo Flamengo1.

A atual disputa por estádio no Rio de Janeiro automaticamente nos faz lembrar do que ocorreu nos anos 1920, quando a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos, também representada por Flamengo, Fluminense, América e outros, decidiu excluir o Vasco da disputa do Campeonato Carioca pelo Cruzmaltino possuir negros e operários em sua equipe. Além disso, outra exigência ao Vasco foi a construção de um estádio para poder fazer parte da elite do futebol do Rio – o que o clube conseguiu com a ajuda da torcida, inaugurando São Januário em 1927. Curiosamente, exigências que surgiram após o Gigante da Colina conquistar o seu primeiro título estadual em 1923. 

Agora, 100 anos depois, a briga volta à tona cristalizada no Maracanã, um bem público da sociedade fluminense. De um lado, o Vasco, do outro, Flamengo e Fluminense. Os dois clubes da zona sul confundem os interesses públicos e privados. O antropólogo Roberto DaMatta, no texto Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, discute a expressão “Você sabe com quem está falando?”, que, em linhas gerais, representa alguém que deseja se diferenciar de um terceiro diante de um conflito social, ativando tal expressão para se colocar como superior e reduzir o outro a nada, marcando uma “separação radical e autoritária de duas posições sociais real ou teoricamente diferenciadas” (DAMATTA, 1997, p. 181) dentro de uma lógica de poder estabelecida historicamente.

DaMatta (1997) também afirma que a sociedade brasileira é avessa ao conflito, justamente pelo contexto da expressão ser uma característica indesejada e passível de ser escondida da cultura brasileira. Apesar de ser generalista, porque há diversos conflitos sociais importantes na história do Brasil2, podemos aproveitar a ideia de aversão ao conflito de DaMatta para exemplificar o conservadorismo de quem sempre obteve todos os benefícios na história do Brasil, para tentar perpetuar os seus privilégios. Por que Flamengo e Fluminense se acham no direito de escolher quem deve ou não deve atuar no Maracanã, mesmo que o edital de permissão temporária de administrar o estádio diga que outros, como Nova Iguaçu e Vasco, também podem usufruir do bem público?

O Maracanã é do estado do Rio de Janeiro, patrimônio nacional do futebol brasileiro, palco de momentos memoráveis e de jogos marcantes para milhões de torcedores. Não são os clubes, seja ele quem for, quem deve ter o poder de decidir quem joga ou não no estádio, já que são incapazes de fazerem isso, como já demonstrado. Para a concessão definitiva, é fundamental que haja uma disputa correta e transparente entre aqueles que desejam administrar o Maracanã. Seja lá quem for o vencedor, só irá administrar para permitir que também outras equipes possam usufruir do estádio setentão. Afinal, o Maracanã é de todos!


Índice

 1 O GLOBO: Aliado de Bolsonaro, Landim escancara uso político do Flamengo. Disponível em: > https://oglobo.globo.com/blogs/bernardo-mello-franco/noticia/2022/10/aliado-de-bolsonaro-landim-escancara-uso-politico-do-flamengo.ghtml <. Acesso em: 12 jan. 2024.

 2 SÓ HISTÓRIA: Revoltas, Guerras, conflitos e movimentos sociais no Brasil. Disponível em: > https://www.sohistoria.com.br/ef2/revoltas/ <. Acesso em: 09 jan. 2024.


Referência

DAMATTA, Roberto; BRASIL, Sabem Com Quem Está Falando? Um Ensaio Sobre A Distinção Entre Individuo e Pessoa no Brasil. In: DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 179-248.

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