Quando a aristocracia passou a viver quase diariamente dentro de palácios reais e adquiriu hábitos cortesãos, um novo modo de conviver e portar-se em público, considerado civilizado, passou a ser uma das características mais marcantes da elite. Ser elegante era coisa dos “de cima”. Ser rude era coisa dos “de baixo”. Essa mudança teve como símbolo maior a “etiqueta” de Versalhes, imposta pelo rei Luís XIV, da França, nos séculos XVII e XVIII.
O tempo passou, a realidade mudou, mas os princípios de elegância e civilidade se adaptaram às novas épocas e permanecem sendo marcas relevantes de virtude e distinção até hoje.
Uma dessas adaptações teve a ver com o futebol. Afinal, o jogo ganhou o apelido de “rude esporte bretão” e parte da elite achava que não era possível conciliar elegância e civilidade com aquela atividade de muita correria, muito suor e muitas pancadas. Diziam que futebol era força bruta: muito uso do corpo, mas quase nenhum da mente. Desavenças e violência, portanto, seriam as consequências naturais. Era uma prática um tanto irracional, cheia de ímpeto, de vontade e nada mais.
Acontece que a aristocracia, historicamente, apreciava a prática de jogos e esportes. Na Idade Média, eram os torneios, as justas, as touradas, as atividades de cavalaria e de arco e flecha, entre outras. Depois, surgiram os esportes da aristocracia cortesã: golfe (desde o século XIV), jogo de palma (desde o século XVI), críquete (desde o século XVII). De uma variação do jogo de palma (jeu de paume), surgiu o tênis no século XIX. O futebol, neste mesmo século XIX, também despertou o interesse de membros da aristocracia e da burguesia que a imitava. O maior entusiasmo era o dos mais jovens, ávidos por se mostrarem fortes e ágeis, como é comum na juventude. E assim a elite se posicionou de modo dúbio diante daquele esporte: uns muito interessados na novidade e outros desconfiados de sua truculência.
No Brasil, o futebol se disseminou no fim do século XIX e no início do século seguinte já tinha inimigos e defensores. Para uns, futebol era algazarra. A ponto de uma lei da cidade de São Paulo, em 1904, declarar que seu intuito era o de resguardar “as pessoas e propriedades de quaisquer ofensas ou danos” provocadas por jogos de futebol (Lei n. 702, São Paulo, 1904). A lei não reprimiu os futebolistas, mas determinou os locais onde eles podiam disputar as partidas.
Havia os resmungões, de fato, mas eram minoria. Logo se percebeu que o futebol tinha muito mais apoiadores do que detratores no início do século XX. Os jovens apreciavam, vários jornalistas perceberam que o assunto era interessante e as autoridades aceitaram bem o novo esporte. Além disso, ganhou força a tese de que as atividades esportivas eram benéficas tanto no aspecto físico (corporal) quanto no aspecto moral, o que parecia ser muito útil para o aperfeiçoamento geral da sociedade. No fim da década de 1910, já havia competições de clubes de futebol em São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro e Belém. Na década seguinte, surgiram várias outras. Mas os clubes de elite, que foram os primeiros a praticar de modo organizado o futebol no Brasil, não pensavam apenas em fazê-lo crescer. Havia também a preocupação em mantê-lo civilizado. As críticas acerca de sua truculência não podiam ser ignoradas. Era preciso que o novo esporte se desenvolvesse de modo digno e alinhado com tradicionais costumes cavalheirescos. Normas e hábitos da época revelam o quanto isso era importante para os dirigentes do futebol de elite.
COMO FAZER DO FUTEBOL UM JOGO DE CAVALHEIROS:
NÃO VAIAR: A vaia era uma atitude deselegante e insultuosa. Feria os princípios do futebol de elite. Quando um torcedor vaiava, era comum que outros reprovassem o gesto. O árbitro devia ter a sua autoridade respeitada e os jogadores não podiam ser submetidos a vexações, já que eram “homens dignos que pertenciam às principais famílias” (Lance, 13.10.2016). Em São Paulo, nas arquibancadas do Velódromo, uma placa advertia: “É expressamente proibido vaiar” (idem).
NÃO XINGAR: Vaiar era uma atitude reprovável e xingar ainda mais. O xingamento era considerado imoral e antidesportivo. Mas acontecia cada vez mais e provocava reações como esta, do jornal O Estado de São Paulo, em 1914: “Reprovamos sempre o procedimento dos ‘torcedores’ extremados, que se julgam no direito de dirigir a um juiz os mais descabidos doestos, esquecendo, às vezes, os comezinhos princípios de boa educação e a posição social dos foot-ballers da Associação Paulista e dos frequentadores do Velódromo, pertencentes todos à melhor sociedade paulista” (apud Storti e Fontenelle, 1997).
NÃO EMBRIAGAR-SE: Torcedores embriagados não eram bem-vindos nas partidas de futebol. Suas atitudes exaltadas incomodavam os outros torcedores e contrariavam a tese de que o esporte estimulava melhoramentos físicos e morais em toda a sociedade. A Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA), no ano de 1923, decidiu proibir a venda de bebidas alcoólicas nos campos de futebol. Além disso, determinou aos clubes que não vendessem ingressos para pessoas embriagadas.
VESTIR-SE BEM: A elite considerava a partida de futebol um evento social de respeito e exigia um vestuário à altura. Os torcedores chegavam ao local usando chapéu, paletó e gravata. As torcedoras se enfeitavam com jóias. Entre os atletas também havia o cuidado de se vestir bem. Os uniformes, de uso obrigatório, deviam estar sempre em boas condições. No Campeonato Paulista, os jogadores do Mackenzie usavam um uniforme que incluía até gravata.
RESPEITAR O ADVERSÁRIO: O respeito entre atletas e dirigentes adversários era considerado importantíssimo. Era a demonstração enfática de que o futebol não era algo irracional e rude, mas sim um esporte de cavalheiros. O estatuto da Liga Paulista de Futebol (LPF) determinava, em 1906, que um dos objetivos da entidade era “manter a harmonia entre os clubes coligados” (Storti e Fontenelle, 1997). Quando um clube viajava a outra cidade, esperava-se que fosse recepcionado do melhor modo possível por seus adversários. Banquetes com discursos eram comuns. Em 1911, por exemplo, a Associação Atlética das Palmeiras (de São Paulo) foi ao Rio de Janeiro enfrentar o Botafogo Futebol Clube (precursor do atual Botafogo de Futebol e Regatas) pela disputa da Taça Salutaris. A recepção, na estação ferroviária, foi feita amistosamente por vários botafoguenses e houve, depois, um “lauto almoço de 40 talheres” (Correio Paulistano, 13.06.1911, p. 5). Os dirigentes também consideravam que os jogadores estrangeiros (principalmente os ingleses), por serem hóspedes do país, mereciam ser tratados com todo o respeito. Caso contrário, seria uma terrível demonstração de incivilidade, que mancharia toda a nação brasileira.
SER UM SPORTSMAN: Para a elite e a imprensa, o “sportsman” era o modelo ideal de atleta. Devia ser um “bom moço” que inspirava confiança e admiração. Não reclamava do árbitro, não jogava de modo violento e não trapaceava. Quando vencia, não humilhava os adversários. Quando perdia, aceitava a derrota e reconhecia a superioridade do oponente. Para o sportsman, futebol tinha a ver com recreação, respeito e camaradagem. Em 1928, os jogadores do Paulistano (o clube que melhor representava a elite da cidade de São Paulo) deram uma demonstração de como se portava esse tal de sportsman. Após serem derrotados na partida decisiva do Campeonato Paulista, contra o Internacional, decidiram ir ao mesmo bar onde os campeões festejavam a vitória. Lá, todos se confraternizaram.
O ideal do sportsman, porém, não foi o que predominou. O futebol cresceu e ganhou torcedores de todos os tipos. Tornaram-se frequentes as vaias, os xingamentos, as jogadas violentas, as reclamações exaltadas contra os árbitros, as brigas e outras atitudes que o futebol de elite repudiava. Logo identificaram os culpados: os clubes populares e os seus jogadores.
“Achamos muito justo que os operários, os humildes, participem das refregas, mas os operários e os humildes que compreendem os seus deveres de ‘sportsmen'” (Antônio Figueiredo, O Estado de São Paulo, 1918. Storti e Fontenelle, 1997).
Os críticos do futebol não perdoavam. Em 1918, foi fundada uma “liga contra o futebol” no Rio de Janeiro, mas de existência breve. O jurista e escritor Carlos Sussekind de Mendonça afirmou, em 1922, que o futebol estava “deseducando a mocidade brasileira”. Em Vitória, capital do Espírito Santo, o Diário da Manhã dizia que futebol, cabarés e “dancings” eram vícios que prejudicavam igualmente a juventude. Mas estes críticos eram vozes isoladas e não podiam impedir o crescimento do novo futebol brasileiro, que não era o futebol dos sportsmen.
A profissionalização foi o golpe final. Enquanto o futebol amador, que era o futebol da elite, se baseava em recreação e camaradagem, o futebol profissional era uma prática marcada por competitividade intensa, rivalidade crescente entre clubes e pagamento de salários aos atletas. Na década de 1930, o futebol brasileiro se converteu paulatinamente ao profissionalismo, até ser oficializado por dois decretos-lei: o de número 3.199 (1941) e o de número 5.342 (1943). Era o início do futebol das grandes multidões de torcedores no Brasil. Início também de um futebol com atletas como Heleno de Freitas, Almir Pernambuquinho, Serginho Chulapa e Edílson Capetinha, exemplos notáveis de anti-sportsmen.
Pois é. O que hoje chamamos de “fair play” já foi a característica central do futebol brasileiro, lá no início do século XX. Era coisa de jogadores que prezavam muito a elegância e o cavalheirismo. Alguns, imagine só, chegavam a disputar os jogos usando gravata.
Equipe do Mackenzie (de gravata), 1901.

Banquete oferecido pela APEA à equipe do Brasil de Pelotas (RS) em 1920.

Referências
Correio Paulistano, São Paulo-SP, 13.06.1911.
Diário da Manhã, Vitória-ES, nov.1928.
Lance. www.lance.com.br . “‘É proibido vaiar’: Lance resgata memórias do 1º estádio de futebol do Brasil, demolido há 100 anos”. 13.10.2016 [acessado em 04.05.2024]
Lei n. 702, São Paulo-SP, 1904.
Revista “Vida Moderna”, São Paulo, 22.04.1920.
STORTI, Valmir e FONTENELLE, André. A História do Campeonato Paulista. São Paulo: Publifolha, 1997.