Assim como os muitos futebóis (DAMO, 2007), existem muitos significados para o surfe. De acordo com a International Surfing Association (ISA), o surfe engloba: “Shortboard, Longboard e Bodyboard, StandUp Paddle (SUP) Racing e Surfing, Para-Surf, Bodysurf, Wakesurfing e todas as outras atividades de surfe em qualquer tipo de onda e em águas planas usando equipamento de surfe de ondas”[1], ou segundo Bitencourt a “arte e destreza de deslizar sobre a arrebentação das ondas no mar” (BITENCOURT et al, 2006, p. 11.3).
Esta última se aproxima mais da definição havaiana do He-e Nalu, que significa deslizar sobre uma onda (MENEGHELLO, 2020). Mas dentro da cultura do surfe ainda há espaço para os surfistas de ondas grandes, de pororoca, o surfe de competição, o freesurf[2], e os surfistas amadores, categoria na qual me incluo. Cada surfista tem a sua própria experiência e ideia do que significa o surfe ou surfar[3], mas na maioria dos casos o elemento natureza é uma constante quando se pensa na essência do esporte. E aí podemos acrescentar todo o imaginário de praia e de paisagens (CORBIN, 1989; CAUQUELIN, 2007; TUAN, 1974), a mitologia da relação do homem com a imensidão do mar e as suas criaturas, de comunhão e às vezes até mesmo de dominação da natureza (FORD; BROWN, 2006).
Porém, hoje o esporte vive um momento de escalada do surfe em piscinas, com a inauguração de dezenas de empreendimentos com as novas tecnologias de geração de ondas[4] e neles, o elemento natureza, como é dado pela maior parte dos surfistas, desaparece. Não tem mais água salgada, animais marinhos, leitura de condições do mar e previsão das ondas, imprevisibilidade. É ligar a máquina e voilà, surge uma sequência de ondas perfeitas e otimizadas para a experiência de cada grupo de surfistas com potência e extensão para uma sequência de manobras, que podem ser repetidas à exaustão. Afinal, em uma sessão de surfe nessas piscinas, todas as ondas são idênticas.
No Brasil, atualmente temos três piscinas que utilizam esse tipo de tecnologia em funcionamento: duas no interior de São Paulo, a Praia da Grama, em Itupeva, e o Boa Vista Village, em Porto Feliz, e uma em Santa Catarina, a Surfland, que está localizada na cidade de Garopaba. O fenômeno ainda é recente, sobretudo no Brasil, onde a primeira piscina desse tipo foi inaugurada em 2021, e a última, em novembro de 2023. O primeiro campeonato oficial feito pela World Surf League (WSL)[5] em uma piscina aqui foi realizado no final de outubro de 2023.
Portanto, a construção de sentido sobre o significado de surfar está ganhando novos contornos: de um esporte dos reis, como remonta a história no Havaí, ou dos povos litorâneos do Peru ou da costa atlântica africana (MENEGHELLO, 2020; WARSHAW, 2005; DAWSON, 2018), passando pelo início da midiatização com os californianos e a profissionalização com os australianos (WARSHAW, 2005; DIAS, 2008), em paralelo à expansão da ideia de exploração de ondas desconhecidas (FORTES, 2011) a um esporte que subverte a lógica de prática no ambiente natural e se dobra a um advento tecnológico pautado pelo controle mercadológico.
Neste sentido, há um acirramento da disputa entre o esporte-aventura e o surfe espetáculo a partir do movimento de legitimação desse novo espaço de prática, que nos remete ao mesmo processo histórico que aconteceu com a natação no início do século XX, que era praticada em rios e mares, e passou a ser praticada em piscinas (CARQUEIJEIRO; MONTENEGRO, 2020). E concomitantemente, há um afastamento do passatempo hedonista (DIAS; FORTES; MELO, 2012) com o aumento da racionalização do esporte a partir de técnicas de treinamento esportivo relativas à performance e aprimoramento físico dos atletas (SOUZA, 2019).
Dentro do contexto das piscinas de ondas, recentemente foi lançado um técnico virtual, baseado em inteligência artificial, que faz o reconhecimento facial do surfista na onda e assim que ele termina de surfá-la é exibido, em um telão ao lado da piscina, um replay com detalhes da última onda, o tempo restante para vir a próxima, além de conteúdos patrocinados[6]. Ou seja, existe a possibilidade de um adestramento em função do rendimento ente o corpo-máquina (MAUSS, 2017) e a onda em um processo disciplinar que se distancia dos discursos de liberdade e espontaneidade do surfe veiculados na mídia (FORTES, 2011). Nesses ambientes previsíveis, a esportivização é exacerbada a partir de regras claras, equidade[7], controle sobre o tempo, quantidade de manobras e de ondas, e velocidade. Tudo para que o espetáculo seja racional e passível de comparações (HELAL, 1990).
Hoje, a natação praticada em piscinas é naturalizada, mas Carqueijeiro e Montenegro (2020) nos mostraram que houve uma disputa de narrativas nos jornais e revistas da época para chegarmos a este suposto consenso. Atributos como enfrentamento das adversidades da natureza e coragem deram espaço gradativamente à excelência técnica dos atletas. Portanto, o acompanhamento sobre o que significa surfar a partir dos produtos midiáticos e oralidade relacionados às piscinas de ondas pode nos dar pistas sobre a produção de sentido em torno da cultura do surfe.
Referências
BITENCOURT, Valéria, AMORIM, Simone, VIGNE, Joana Angélica e NAVARRO, Patrícia. Surfe: esportes radicais. In: DA COSTA, Lamartine (org.). Atlas do Esporte no Brasil, Rio de Janeiro: CONFEF, 2006.
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007
CORBIN, Alain. Território do vazio. A praia e o imaginário ocidental / Alain Corbin; tradução Paulo Neves – São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
DAMO, Arlei. Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. 1. ed. São Paulo: HUCITEC, 2007. v. 1. 359p.
DAWSON, Kevin. Undercurrents of power. Aquatic culture in the african diaspora. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2018.
DIAS, Cleber, FORTES, Rafael, MELO, Victor. Sobre as ondas: surfe, juventude e cultura no Rio de Janeiro dos anos 1960. Revista Estudos Históricos, 25(49), 112-128, 2012.
FORD, Nick; BROWM, David. Surfing and social theory. New York: Routledge, 2006.
FORTES, Rafael. O Surfe nas ondas da mídia: esporte, juventude e cultura. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.
HELAL, Ronaldo. O que é sociologia do esporte. São Paulo: Brasiliense, 1990.
MAUSS, M.. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
MEDEIROS, D. C. C.; MONTENEGRO, N. R. . Entre rios, mares e piscinas a natação nas cidades de São Paulo e Fortaleza (décadas de 1920 a 1940). Revista Conexões, v. 18, p. e020039, 2020.
MENEGHELLO, Luciano. Raiz. Uma viagem pelas origens do surfe, canoa polinésia, stand up paddle e prone paddleboard. Itajaí: Tabebuia, 2020.
SOUZA, T. S.; RIGO, L. C. . A construção do Surfe como Esporte Moderno. In: 13º Congreso Argentino y 8º Latinoamericano de Educación Física y Ciencias, 2019, La Plata. Ciencia y Profesión, 2019.
TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. New Jersey: Prentice-Hall, 1974.
WARSHAW, Matt. The encyclopedia of surfing. Florida: Harcourt, 2005.
[1] O trecho em Inglês é: “The ISA governs and defines Surfing as Shortboard, Longboard & Bodyboarding, StandUp Paddle (SUP) Racing and Surfing, Para-Surfing, Bodysurfing, Wakesurfing, and all other wave riding activities on any type of waves, and on flat water using wave riding equipment.” Disponível em: <https://isasurf.org/about-isa/> Acesso em: 21 abr. 2022
[2] Que não é de competição, mas também pode ser profissional.
[3] Poderíamos considerar os surfistas de trem, por exemplo.
[4] Ver guia mundial de piscinas de ondas. Disponível em: <https://wavepoolmag.com/2023-price-guide-to-the-worlds-surfable-wave-pools-and-surf-parks/> Acesso em: 25 nov 23
[5] Disponível em: <http://wsllatinamerica.com/out05-circuito-banco-do-brasil-de-surfe-na-praia-da-grama/> Acesso em: 25 nov 23
[6] Disponível em:<https://wavepoolmag.com/wave-technology-company-launches-ai-video-capture-system/> Acesso em: 25 nov 23
[7] Mesma quantidade de ondas iguais para todos os competidores.