Durante a Copa do Mundo que acaba de finalizar, a televisão mostrou a presença do Rei Pelé no Maracanã. Galvão Bueno, nosso ícone do jornalismo esportivo, comentou que é necessário que os brasileiros mostrem em relação ao Pelé o tipo de atitudes que os argentinos têm em relação à Maradona. Sua afonia após a transmissão da final o fazia mais humano e simpático. O defeito, pelo qual pediu desculpas, enaltece seu desempenho aproximando-o dos comuns mortais.
Faz alguns anos, em artigo escrito a quatro mãos com Ronaldo Helal,[1] apontamos a existência de uma inversão nas relações parte/todo quando tomamos como referencia Brasil e Argentina e Pelé e Maradona. Brasil sempre foi apresentado como a nação exuberante, produto da miscigenação, inqualificável e que dança alegremente na beira do abismo. Dissemos, no artigo, que as construções sobre as imagens do Brasil estavam claramente imbuídas de um caráter dionisíaco. Em contrapartida, a Argentina aparecia como o país europeizado, talvez de forma prematura. Em vários sentidos, da geografia ao tango, aparecia, sobretudo para os brasileiros, como um país apolíneo.
Agora bem, quando nos deslocamos para a parte, e para seus maiores heróis do futebol, o Rei e o Pibe (o moleque) as caracterizações se invertiam: o Rei é apolíneo e o Pibe dionisíaco. Pelé tem o entorno, a superioridade e a distancia do Rei; Maradona a proximidade familiar do Pibe. Nas descrições jornalísticas os caracteres apolíneos ou dionisíacos sempre estão presentes. Sobre Pelé reiteradamente se destaca sua completitude física e técnica, de Maradona se marcam as incompletudes, falta de domínio bilateral, por exemplo. Pelé parece ocultar as complicações de sua vida e Maradona as enfrenta sem recusar seu caráter público.
A relação de carinho, respeito e proximidade dos argentinos com Maradona é natural, embora não necessária. A relação de distancia e respeito dos brasileiros com Pelé também é natural e talvez não fosse necessária. Quando Maradona entra, começa a festa. Quando o faz Pelé, entra a aura e o tratamento protocolar.
Além de sua carreira de atleta, Maradona marca o cotidiano argentino com suas condutas privadas e dizeres públicos. Quando Maradona adoece, os argentinos rezam e fazem vigília por ele. Recentemente Pelé teve que se submeter a uma cirurgia para colocar uma prótese e a informação saiu em pequenas notas, ninguém fez vigília ou encarregou missa pela recuperação do Rei.
Hoje, por exemplo, no jornal digital de O Globo aparecem as opiniões, vertidas em seu programa televisivo venezuelano, La Zurda, de Maradona sobre o mundial e a final. Por volta das sete horas aparecia Maradona trajado e a notícia era cabeça da página. Depois desapareceu e no inicio da tarde voltou com menos destaque e com foto dele e de Rivelino mostrando camisetas. Na segunda versão, a notícia destaca a crítica de Maradona do premio dado pela FIFA ao Messi, uma jogada de marketing, destacando os elogios à participação da seleção argentina. Suas posições, como quase sempre, são originais, tanto em relação aos times emergentes que destaca, como Costa Rica, quanto nas atuações frustrantes (Inglaterra, Itália e Espanha). Maradona ainda coloca a James, o jovem jogador colombiano, como o melhor da COPA, enquanto por aqui foram mencionados alguns alemães, Robben e Rodriguez e talvez outros que não registramos. O James deve ter ficado muito feliz e é possível que valorize mais o reconhecimento de Maradona que o premio da FIFA, dado a Messi, com muitas dúvidas sobre seu valor. Messi nem deve ter ficado confortado. Mas, Maradona, diz o que pensa e ainda defende o valor de sua verdade e também da capacidade crítica diante do desempenho do atual ídolo argentino. O Pibe é valente! O Rei, entretanto, continua ausente e distante e os jornalistas mudam os destaques das matérias. O Rei deve ser protegido.
Não vimos matérias jornalísticas ou argumentos nos debates sobre a fratura de vértebra de Neymar. Embora a crítica ao ato “maldoso” de Zuñiga fosse o eixo -e as melhores considerações foram as do próprio Neymar que surpreende positivamente com suas opiniões abertas sobre a seleção – como é possível que ninguém tenha levantado hipóteses sobre a probabilidade de seu tipo de fratura ocorrer ou sobre as condições que as tornam reais? Os especialistas foram convocados para esclarecer e discutir sobre o assunto? Neymar se protege pouco? Seus ossos são saudáveis? Qual a probabilidade de acidentes dessa natureza se repetirem? Parece que vigora um pacto entre os jornalistas esportivos: não falar do tema para proteger Neymar.
Ortega y Gasset apontou que o intelectual é uma figura que faz que sua vida privada e a suas opiniões se tornem parte do debate público. No seu caso, até as gravatas chocantes que usava podiam ser discutidas no parlamento e na imprensa de Espanha. Seu estilo, sob diferentes pontos de vista, também era dionisíaco. Talvez por isso não chegasse a formular um sistema como o faria Heidegger, embora nos legou aproximações que ainda devem ser aproveitadas.
Chegamos a nossa hipótese: Maradona, sob a base de sua atuação destacadíssima para o futebol argentino e mundial, tornou suas condutas e opiniões insumos para o debate público no campo do esporte, da política, da ética e da vida cotidiana. O Pibe é o maior intelectual popular da Argentina. O moleque pode fazer um gol com a mão, mas ganhar um mundial com tamanha malandragem apenas Maradona. O herói popular dionisíaco pratica a arte da malandragem, sabe simular e se aproveita das confusões que monta. O título familiar de Pibe o aproxima, ele senta-se à mesa do bar, se introduz nas conversas da família, dos amigos e, sobretudo, dos futeboleiros. Em uma medida talvez menor, Romário faz parte da mesma estirpe de intelectuais populares e suas condutas e opiniões entram nas conversas públicas em relações jocosas e afetuosas. Os dois tentam se distinguir do Rei e por vezes o alfinetam mediante a ironia. Pelé acaba calado em sua majestade. Romário: Pelé calado é um poeta.
A intenção de Galvão Bueno poder ter sido boa. Contudo, ela reconhece que o Rei tem significados frios e talvez impostos por repetição de outros ou pelo mantra de que ele foi e ainda é o melhor. Mantra que forma uma fita de Moebius com a cara do Brasil país de futebol. Ambos os lados se demandam para fazer uma superfície contínua. Será que estão por cair juntos?
O apolíneo está mais próximo da figura do eterno e se distancia da morte e do transitório no mármore atemporal. O dionisíaco parece estar sempre em contato com ela, desafia-la e a cutuca com o passe inesperado da dança e a ironia transitória. Pelé diz que Edson Arantes de Nascimento diz que Pelé é o melhor. Maradona diz que sua mãe afirma que ele é o melhor.
Nunca pensamos que poderíamos assistir a renúncia de um Papa nem a da de um Rei. E isto ocorreu diante de nosso olhar espantado. O Edson poderia renunciar ao papel do Rei, deixar o manto sagrado e se misturar nas conversas do povo. Seria menos enreizado, mas, talvez, mais querido. Apenas um mortal: Pelé. Sem ser o Rei poderia falar e agir com menores constrangimentos e, talvez, até fazer poesia quando fala. Reconhecer que há muitos reis e que determinar o melhor é uma tarefa ingrata, talvez impossível e, sobretudo, tonta. Talvez por ser tonta seja tema do jornalismo esportivo e de suas perguntas.
Uma moral se impõe: Pelé é um Rei com pés de barro. Maradona é um Pibe com barro até o pescoço. Nós, os do povo, podemos escolher o modelo. O custo são as diferenças no tratamento. Os argentinos escolheram Maradona por unanimidade. Os brasileiros ainda duvidam entre o apolíneo Pelé e os dionisíacos Garrincha, Romário e, talvez, Neymar.
[1] “Pelé y Maradona: el periodismo y las contradicciones entre los héroes y las sociedades.” Lecturas Educación Física y Deportes (Buenos Aires), v. 139, p. 1-7, 2009.
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