Os esportes de alto rendimento dialogam bem com as emoções?

Introdução

 

Este texto trata do sonho de muitas meninas que são esquecidas quando o assunto é futebol. Na verdade, mais do que esquecidas elas têm seus sonhos negligenciados. O ambiente do alto rendimento esportivo ainda não é um espaço que dialoga bem com as emoções e, muitas vezes, estas são anuladas, repudiadas e subaproveitadas. Em geral, nos esportes, quando se expressa o que no senso comum se entende por emoção está se demonstrando fragilidade. Mas neste texto, busca-se ver a dualidade das emoções, tanto o lado negativo quanto a positividade delas, afinal, tais emoções podem levar a resultados expressivos de elevado desempenho.

Para isso, foi utilizado um referencial teórico relativo a uma visão contextualista das emoções, por se entender que a expressão das emoções não é algo natural ou inata e nem que vem de dentro da atleta. A expressão das emoções é construída nas pessoas por interferência da sua cultura, do seu contexto social, dos papéis de gênero que lhe são impostos. Com isso, desde nosso nascimento somos ensinados a como expressar nossas emoções. A perspectiva contextualista visa entender a produção e o discurso das emoções generificadas no mundo ocidental.

Este é um pedaço dos resultados de uma etnografia sobre um time de futebol de mulheres fundado no Rio de Janeiro. Em 2019, com a obrigatoriedade da categoria feminina em clubes de série A e B do futebol de homens, nasceu uma nova era do futebol de mulheres. Acompanhei as Guerreiras do Fluzão[1] por 8 meses, entre o início de setembro de 2022 até abril de 2023, em Xerém, no município de Duque de Caxias, onde fica localizado o Centro de Treinamento Vale das Laranjeiras (CTVL), que comporta tanto as categorias de base masculina e feminina quanto a equipe profissional de mulheres do Fluminense Futebol Clube (FFC). Elas realizavam diversas atividades de segunda-feira a sábado, no horário das 7h às 12h no ano de 2022 e das 7h às 12h e 16h às 18h em 2023.

 

Migué e emocional

 

A Guerreira Indecisa é muito miguezenta, tudo que ela erra vem com um motivo bobinho, nunca é algo sério de verdade (Guerreira 1)

A Guerreira Europa é uma manteiga derretida chora por tudo, é sempre um migué diferente, sofre por nada. (Guerreira Capitã)

Hoje eu tô muito emocional, to abalada, recebi a notícia ontem a noite que minha avó morreu. (Guerreira 1)

A avó da Guerreira 1 morreu, ela ta bem emocionada mesmo, vamos dar muita força para ela. (Guerreira Foz)

 

Durante o trabalho de campo passei por um dilema na definição de um par de termos êmicos das interlocutoras da pesquisa: o “migué” e o “emocional”. Emocional era uma categoria nativa amplamente utilizada pelas atletas do Fluminense, que abarca todos os sentimentos e emoções que são da vida pessoal delas. Eles podem interferir no desempenho dos treinos e jogos ou sobre emoções que são criadas no ambiente esportivo. As atletas se sentiam à vontade para falar sobre o emocional entre elas e para mim, mas não se sentiam à vontade, em quase nenhuma hipótese, de falar sobre isso com a comissão técnica, pois, segundo elas, tudo vira “migué”. Elas constroem uma relação de oposição ou de semelhança entre o emocional e o “migué”, dependendo se validam ou não a emoção que a sua companheira expressa. O “migué” seria todas as emoções expressas e não validadas por quem as observa.

O paradoxo é que ninguém admite que estaria dando “migué” mesmo que estivesse. Por isso, acontece algo semelhante ao que ocorreu com Guedes em um dilema na delimitação do espaço de uma rua por parte dos seus interlocutores: ninguém queria ocupar o espaço da Coruja. Guedes (1997) estudou os trabalhadores de São Gonçalo e o conflito de delimitação entre a Covanca e a Coruja, tendo por base os jovens, que estão iniciando a sua jornada de trabalho, e os aposentados, que já cumpriram com os seus deveres. A Covanca e a Coruja são nomenclaturas utilizadas para designar quem mora em cada pedaço de uma rua. Porém, essa não é uma simples delimitação de espaço, a localização é parte essencial para distinguir os homens trabalhadores dos vagabundos. 

A autora ao tentar delimitar onde termina a Covanca e começava a Coruja esbarrou em um dilema político, pois por mais próximo que as pessoas morassem da Coruja ninguém se pôs como parte desse espaço e a definição de onde termina a Covanca já é uma posição política nessa comunidade. Ou seja, segundo a percepção dos trabalhadores mais velhos, a

Coruja remetia à vagabundagem, que não era compatível com um bom trabalhador. Com isso, quem mora na Coruja aborda aquele espaço de forma tentar unificá-lo, pois ninguém quer se localizar no pedaço da rua recoberta por preconceitos e superstições:

 

Assim, para os que não moram no local mais perigosamente identificável com a Coruja (para mim, o local da festa), é possível tanto negar o nome e seu poder de contaminação quanto estabelecer limites físicos que a colocam além. Nesse processo, seu João utiliza-se quase exclusivamente do termo Neves para cobrir todo o local, elidindo Covanca e Coruja, enquanto Márcio, neto do seu Jair, diz que é tudo Covanca (GUEDES, 1997, p. 99).

 

Nesse sentido, na equipe do Fluminense nenhuma atleta aceitava a caracterização de migué a alguma ação que é desempenhada e, por isso, nomear alguém como “miguezenta” é algo com significado pejorativo e depreciativo. O migué para elas pode ser usado em várias situações: para o “corpo mole” nos treinos, o medo de diferentes situações dentro e fora das quatro linhas, as inseguranças em relação à performance em campo, à preguiça da rotina desgastante e na “falta de vontade” nos jogos. Minhas interlocutoras só falavam sobre migué quando não validavam as emoções e comportamentos expressos por suas companheiras de equipe. Porém, um ponto importante para elas é que a palavra migué só é expressa entre elas e a comissão, nunca quando a equipe masculina está presente ou quando tem pais por perto. Além disso, o “migué” está normalmente associado a outra pessoa, assim, não é comum para elas assumirem para si que estão dando migué.

É importante trazer para o debate Catherine Lutz (1990) que afirma que o discurso sobre emoções é também um discurso sobre gênero e que a natureza socialmente construída pelo Ocidente das categorias emocionais é associada ao feminino. Por isso, são utilizadas para definir mulheres que seriam subordinadas, já que a expressão das emoções seria algo perigoso. Então, o controle e o gerenciamento das emoções estão ligados ao poder da dominação masculina sobre algo que não está ligado ao feminino e vem das pessoas mais fracas, irracionais, emotivas e perigosas: as mulheres. As emoções são paradoxais para Lutz, pois podem representar fragilidade quando tidas como um defeito – logo negativadas – ou como força, quando positivadas e ajudarem na realização de algo.

 De acordo com o que assinalou Lutz e conforme aquilo que se percebe no Ocidente, pode-se entender o conceito de migué, das atletas do Fluminense, inserindo-o na lógica paradoxal das emoções. Ou seja, o emocional são todas as emoções que são expressas e que foram aprovadas pelo crivo social, cultural e linguístico das atletas, são validadas por quem as observa. Quando as emoções são vistas como um defeito, negativadas e não validadas são nomeadas de migué e, então, vemos o emocional representando emoções que expressam força ou fragilidade. Neste caso, ele é representado como algo negativo e, ao mesmo tempo, como uma coisa que é necessária de se sentir e expressar, como o sofrimento após uma lesão grave, e isto é validado pelas demais atletas do time.

Pude perceber que existe a construção das emoções das atletas de alto rendimento nos clubes em que houve a interlocução. Estas emoções foram expressas, controladas e reprimidas segundo a lógica cultural do futebol de mulheres e de gênero. A partir desse repertório, as atletas manejam suas emoções dentro e fora de campo pelo que é esperado como emoção socialmente pertinente e aceita para cada tipo de situação, seja por suas companheiras de equipe, seja pela torcida ou comissão técnica. A emoção é construída no exterior de cada um dos sujeitos e será diferente dependendo para quem se expresse. 

Com isso, as atletas do Fluminense demonstraram possuir dois termos nativos que para elas amparavam o discurso sobre emoções desse grupo: o “migué” e o “emocional”. Estes termos foram construídos pela lógica sociocultural do futebol de mulheres e por elas. Com eles, as atletas conseguiam compreender as emoções produzidas neste espaço delimitado. Elas são expressas em momentos do jogo em que tiveram boa atuação ou foram reprimidas quando perderam o campeonato e não podiam chorar, pois isso demonstraria fraqueza para a torcida, na visão delas. É por meio do paradoxo entre os termos emocional e “migué” que as atletas localizam as suas emoções e das suas companheiras dentro do universo esportivo. A localização é um um termo analítico essencial para ordenar, classificar e hierarquizar diversas representações nos mais diferentes grupos sociais, como pode ser percebido entre as atletas de alto rendimento e os moradores de São Gonçalo.

 

Considerações finais

 

A emoção é um assunto entendido como tabu negativo dentro do campo, ao redor do Centro de Treinamento (CT) e em conversas entre as diferentes hierarquias existentes nos clubes. Ela aparece normalmente como a vilã, como a culpada pelas derrotas, pelos gols levados ou não feitos. Ademais, quando nos referimos às mulheres atletas, suas emoções são vistas pelo olhar dos outros como fragilidade e “coisa de menina mesmo”. As Guerreiras do Fluzão eram apontadas pela comissão técnica, inteiramente composta por homens na época, como tendo um maior desequilíbrio emocional e isso fez com que em algum momento elas começassem a acreditar nisso. Ter autoconfiança, controle das emoções e não cair na “pilha” é algo com o que elas precisam lidar diariamente. 

As interlocutoras desta pesquisa mostraram que as emoções apontam para os dois lados da moeda. Elas podem realmente ser algo negativo, mas também podem remeter a algo muito positivo. A saudade, a disciplina, a vontade e a garra podem ser a diferença entre dois times de técnica e tática equivalente, por isso as emoções podem ser a pitada que faz um time campeão. Estas podem ganhar um espaço de protagonismo no esporte e ser o herói. Longe dos estereótipos de mulheres descontroladas, as Guerreiras do Fluzão mostraram que ser mais emocionada ou chorona não as faz menos capazes ou frágeis, pois existe poder de permitir o expressar das emoções. O senso comum que constrói o discurso das emoções das mulheres como naturalmente mais desequilibradas foi desconstruído pelas Guerreiras do Fluzão ao longo da pesquisa, dando espaço ao discurso nativo de que suas emoções estão em equilíbrio com o que elas querem, já que sentir e expressar as emoções as torna mais forte e melhores jogadoras. 

 

[1] Guerreira é como todas as atletas do Fluminense são chamadas pela comissão técnica e torcida. Como minha pesquisa é anônima, todos os nomes das minhas interlocutoras são “Guerreira”, seguido de alguma característica que elas escolheram para ser seu nome.

 

Referências bibliográficas 

 

ABU-LUGHOD, Lila. Shifting politics in Bedouin love poetry. In: ABU-LUGHOD, Lila e LUTZ, Catherine (ed.) Language and the politics of emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

GUEDES, Simoni Lahud. Jogo de Corpo: um estudo de construção social de trabalhadores. Niterói: EDUFF, 1997.

LUTZ, Catherine. Engendered emotions: gender, power, and the rhetoric of emotional control in American discourse. In: LUTZ, Catherine; ABU-LUGHOD, Lila (ed.) Language and the politics of emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 

MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa e a de “eu”. In:

Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosacnaify, 2003. p. 367-397

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