“Os homens explicam tudo pra mim”: como narrar futebol

No compilado de ensaios chamado “Os homens explicam tudo pra mim”, a jornalista e escritora Rebecca Solnit conta um episódio no qual um homem tentava explicar a ela o livro que a própria Solnit havia escrito. 

A princípio, pode parecer inofensivo e até engraçado, mas como a escritora diz, isso dificulta as coisas para qualquer mulher em qualquer área, impedindo que as mulheres falem e indicando que esse mundo não pertence a elas. “É algo que nos deixa bem treinadas em duvidar de nós mesmas e a limitar nossas próprias possibilidades – assim como treina os homens a ter essa atitude de autoconfiança total sem nenhuma base na realidade” (Solnit, 2017, p.15). 

No ambiente do esporte essa tentativa de ensinar às mulheres o que elas devem fazer não foge à regra. Recentemente, o Portal Leo Dias publicou um artigo assinado por dois homens que dizia que “as mulheres têm que encontrar um jeito mais delas de transmitir futebol”. 

Primeiro, que esse tipo de comentário não é nada de novo no front. O tempo todo nas redes sociais tem pessoas escrevendo exatamente a mesma coisa. Pode até ser de forma bem-intencionada, mas não há como analisar a  intenção. O que podemos analisar é o machismo estrutural que se apresenta neste tipo de opinião.

O texto, de fato, não traz um discurso de ódio explícito contra as mulheres, fala até em “medo de errar e cometer injustiças”, mas Solnit explica que essa é uma das maneiras de manifestar poder com o discurso educado. E esse mesmo tipo de poder é o que aparece nos discursos não educados e nos atos físicos de intimidação e violência. E, com muita frequência, na forma como o mundo é organizado, traz a autora esse tipo de comentário “consegue silenciar, apagar, e aniquilar as mulheres, como pares, como participantes, como seres humanos com direitos – e, tantas vezes, como seres vivos” (Solnit, 2017, p. 27).

Ao falar da publicação, a comentarista Renata Mendonça diz que quando se trata de homens esse debate de um “estilo geral” não existe, no máximo algum elogio ou crítica a um narrador específico, mas para as mulheres há uma categoria. A diferença, para ela, é que os homens sempre tiveram liberdade de ocupar todos os espaços e as mulheres foram proibidas de pisar fora de casa por muitas décadas. Assim, quando finalmente ocupam um lugar, como as cabines de transmissão, “as mulheres precisam de muito mais do que executar aquela função. Elas precisam ter um estilo inovador, um tom de voz diferente, um conhecimento exemplar” (Mendonça, 2025, online). 

Renata Mendonça, comentarista do Grupo Globo. Créditos: Reprodução/Globo

A ideia defendida pelos autores do texto ainda diz que o jeito “delas” de narrar seria com “suavidade”, usando “natural autenticidade”, “sem querer se parecer com homens” (Ricco; Nery, 2025). O que seria algo natural para uma mulher?

A ideia só reforça os papéis de gênero, justo aqueles que querem expulsar as mulheres de certos locais considerados ambientes masculinos. Bell hooks (2004) compreende que os papéis de gênero são reforçados em todas as instituições, bem como no campo esportivo e são ensinados como uma maneira natural de organizar a vida. Assim, para a mulher, o natural seria cozinhar, cuidar da família e da casa, e ser “feminina”, porque sempre se considerou que cabia à mulher “o espaço doméstico da dona de casa obediente, delicada e dócil” (Moraes; Bonfim, 2017, p. 4).

Quando não se encaixam nesse padrão de feminilidade, em geral, são insultadas e têm sua sexualidade questionada no mundo do esporte. Portanto, para Fornari e et al. (2019), é necessário um enfrentamento às desigualdades de gênero na mídia esportiva.

No fim das contas, essa “opinião educada” na mídia, que na verdade reflete a misoginia presente na sociedade, acaba dando força para ideias muito piores. Ao pesquisar no Google “narração feminina”, os primeiros resultados que aparecem são: “a narração feminina tem que acabar”, “a narração feminina é uma droga” e “o cara ficou maluco com a narração feminina”. 

A Globo, maior emissora de TV aberta do país, contratou em 2020 a sua primeira narradora (Passos, 2021). A primeira transmissão dela na TV aberta foi em 2022. Conforme Jacobovski (2022), que analisou as postagens no Twitter sobre a estreia da narradora, apesar do aumento da participação das mulheres na área, isso não rompeu com as estruturas androcêntricas, justamente porque elas não são vistas como autoridade no tema.

Algumas das postagens analisadas pela autora mostram homens propondo mudanças no jeito de narrar, sem utilizar qualquer embasamento teórico ou técnico, apenas baseados em suas experiências como telespectadores (mesmo caso do texto citado acima).

Mas ainda de acordo com a pesquisa, 75% das manifestações encontradas sobre o episódio são de aceitação de telespectadores que receberam de forma positiva a primeira narração feminina da TV aberta. 

Esse é um ponto interessante a ser colocado, pois mostra que a opinião negativa, embora ainda seja forte e influencie muito as pessoas, não é universal, e tem muita gente disposta a ouvir e apoiar as mulheres no jornalismo esportivo.

Por fim, destaco um momento muito interessante das transmissões de futebol e que mostram que, sim, as mulheres vêm fazendo um trabalho diferente dos homens no esporte. Em uma partida de futebol feminino, a narradora Natália Lara, também do grupo Globo, ao se referir a Quinn, meio-campista da seleção canadense, utilizou pronome o neutro “elu”. Quinn relevou ser uma pessoa transgênero não binária, ou seja, que não se identifica com o gênero feminino, nem com o masculino (UOL, 2021). 

As narradoras e jornalistas têm trazido esses e outros debates relevantes envolvendo gênero, violência contra a mulher, diversidade, racismo, entre outros assuntos que, até então, estavam passando despercebidos pelos colegas homens. 

Talvez, quem tenha algo para ensinar sejam as mulheres. 


Referências

FORNARI, Lucimara Fabiana et al. Perspectiva de gênero nas reportagens sobre mulheres atletas nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Texto & Contexto Enfermagem, v. 28, p. 1-14, 2019.

JACOBOVSKI, Bruna dos Passos. A voz das mulheres: uma análise da percepção dos torcedores de futebol no Twitter em relação a narração feminina na Globo. Trabalho de conclusão de curso (graduação)- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Porto Alegre, 2022. 

MENDONÇA, Renata. O que vocês acham da narração masculina? 24 de março de 2025. Instagram: @renatamendonça_tv. Disponível em: https://www.instagram.com/p/DHlpYzHO40R/. Acesso em: 26 mar. 2025.

MORAES, Carolina Farias; BONFIM, Aira Fernandes. Mulher no futebol – no campo e nas arquibancadas. In: v seminário internacional enlaçando sexualidades, 2017, Salvador. Anais. Salvador: Realize, v. 1, p. 1-10, 2017.

NARRADORA usa pronome neutro e dá aula sobre gênero no futebol feminino. UOL, 21 de julho de 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/olimpiadas/ultimas-noticias/2021/07/21/narradora-usa-pronome-neutro-e-da-aula-sobre-genero-no-futebol-feminino.htm. Acesso em: 27 mar. 2025

PASSOS, Úrsula. Futebol narrado e comentado por mulheres ganha espaço na TV aberta. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2021/02/futebol-narrado-e-comentado-por-mulheres ganha-espaco-na-tv-aberta.shtml. Acesso em: 25 jan. 2022.

RICCO, Flávio; NERY, José Carlos. As mulheres têm que encontrar um jeito mais delas de transmitir futebol. Portal Leo Dias, 24 de março de 2025. Disponível em: https://portalleodias.com/colunas/as-mulheres-tem-que-encontrar-um-jeito-mais-delas-de-transmitir-futebol. Acesso em: 26 mar. 2025.

SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo pra mim. São Paulo: Cultrix, 2017. 

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