O ano era 2005: “Gilberto foi pra cima, roubou na boa. Insiste o Brasil, Ronaldinho Gaúcho. Zé Roberto, Ronaldinho Gaúcho de novo. Gilberto, pra Ronaldinho Gaúcho. Joga fácil o time brasileiro, é só inverter de lado. Zé Roberto passou o pé na bola, tocou pra Robinho, puxou mais pra trás, pra Emerson, olhou o Cicinho. Trabalhou com o Kaká, olhou pro Cicinho, prendeu a bola. Só o Brasil toca na bola. Trabalha pra Zé Roberto, pra Gilberto. Toca na bola o Brasil, a torcida alemã aplaude, gosta da exibição brasileira. Aí o Dida, botou pra frente pra Zé Roberto. O alemão já gosta do futebol brasileiro, hoje então… Lúcio, que partida amigo… olha o Lúcio, ele que é ídolo aqui na Alemanha. Botou na frente, jogou pra Robinho, chamou a marcação, fez lá a graça dele, tocou pra Ronaldinho Gaúcho. Três a zero Brasil. Inverte! Isso! Inverteu, pra Cicinho. Só o Brasil toca na bola! O torcedor aplaude, tá feliz da vida! Pra Adriano, pra fazer o gol… Adriano número nove! Um gol histórico pra Seleção Brasileira. Tocou a bola, rodou por todas as partes do campo, botou a Argentina na roda! Aí o cruzamento, Cicinho meteu pra Adriano de cabeça pro gol, o quinto dele é o artilheiro da Copa. Quatro para o Brasil, zero pra Argentina. Pode entrar pra história esse jogo!” e entrou.
Adriano comemora seu gol contra a Argentina na final da Copa das Confederações de 2005. Créditos: Getty Images.
Com a goleada no jogo que terminou 4 a 1 para o time verde e amarelo, a seleção brasileira venceu a Copa das Confederações de 2005 em atuação brilhante de Adriano, Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Robinho, Cicinho, Lúcio e Zé Roberto. Dos onze iniciais naquele jogo, quatro perderam a titularidade para a Copa do Mundo de 2006. Talvez esse seja um dos vários motivos que explicam o fracasso do Brasil no mundial disputado na Alemanha. Nos anos 2000, porém, era mais fácil torcer pra seleção canarinho do que hoje: era um time acostumado a ganhar a maioria dos jogos, no país que disputou três finais seguidas de Copa e venceu duas, e craques em ótima fase, também privilegiados por serem os atuais campeões do mundo. Começo esse texto com a narração de Galvão Bueno, pois, além de ser apaixonado por narração esportiva, praticá-la e admirar o profissional, acredito que todos nós presenciamos algo histórico e simbólico na semana passada, quando fomos goleados em Buenos Aires pelos argentinos num jogo que terminou com o mesmo placar, praticamente 20 anos depois.
Não existe uma fórmula perfeita para conquistar a Copa do Mundo, o que existe são processos, trabalhos coerentes e lineares que aumentam as chances de uma seleção triunfar ao final do torneio. Nesse sentido, apresento alguns casos de desorganização e outros de bom planejamento que resultaram no mesmo fim, dessas coisas que só o futebol nos proporciona. O Brasil venceu suas duas últimas Copas em 1994 e 2002 passando por crises internas e muitas trocas no comando técnico. Depois do Mundial na Rússia, em 2018, a Argentina contou com seu treinador interino Lionel Scaloni para levar o país ao topo na edição seguinte. Com o vice-campeonato em 2002, a Alemanha começou sua reformulação para 2006 e só foi colher os frutos três copas depois, com o tetracampeonato mundial, em dois anos sendo treinada por Jurgen Klinsmann (2004 a 2006) e oito anos comandada por Joachim Low (2006 a 2014), este último, que esteve no cargo até 2021. Entre esses episódios diferentes que levaram ao mesmo desfecho feliz, está a situação atual da Seleção Brasileira, na qual a tendência, por enquanto e infelizmente, é não repetir os feitos do tetra e penta. Hoje, duas semanas após a vitória de Ednaldo Rodrigues na eleição para presidência da CBF, nosso time é um catado de bons jogadores sem organização alguma. O dito cujo, reeleito de forma unânime, liga tanto pra camisa verde e amarela que, antes de Dorival Júnior, selecionou Ramon Menezes, vindo de um trabalho ruim na base, e Fernando Diniz, que dividia suas atenções entre o Brasil e o Fluminense na reta final de 2023, quando o clube carioca disputava as fases finais da Copa Libertadores.
Nossos vizinhos acharam o rumo no título conquistado aqui no Brasil, a Copa América de 2021 na nossa casa, quebrando um jejum de 28 anos sem um troféu relevante para eles. Atual campeã do mundo, bicampeã da Copa América e líder das Eliminatórias da América do Sul, a Argentina chegará ao próximo Mundial como uma das duas principais favoritas, junto à Espanha, para ganhar. Os hermanos veem boas perspectivas de futuro com a seleção albiceleste, ao contrário de nós. Se “o verde, o amarelo, o azul e o branco” formavam “o pavilhão do meu país” como cantava o Maestro Júnior na canção “Voa, canarinho”, hoje o verde representa a inveja, um dos piores pecados capitais. O amarelo forte se esvai e cai num tom pastel de pura apatia. O azul traz uma profunda tristeza enquanto o branco é a cor da bandeira de rendição em campo, pois era só o que faltava na mão de cada atleta brasileiro entregue no Monumental de Nuñez – e, diferente do simbolismo positivo dessa cor, tudo que o torcedor brasileiro não tem agora é paz.
Giuliano Simeone, filho do ex-jogador e atualmente treinador Diego Simeone, comemora o quarto gol contra o Brasil pelas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2026. Créditos: Miguel Pessoa/Código19/Estadão Conteúdo.
Para entendermos uma equipe tão apática e outra tão monumental, precisamos analisar o que aconteceu com o futebol brasileiro nas últimas décadas. Em termos estruturais não mudou muita coisa. Se há 20 anos tínhamos um campeonato nacional com mais equipes participantes, um calendário inchado e escândalos que colocaram em dúvida a lisura dos torneios organizados dentro do nosso futebol, como a máfia do apito, atualmente vemos os principais clubes brasileiros sufocados pela sequência pesada de partidas e jogadores envolvidos em esquemas de apostas. O maior problema, ademais, é a ausência de candidatos para uma eleição mais justa e democrática na Confederação Brasileira de Futebol (CBF). A instituição que regula o principal esporte do país não tem dois concorrentes ao cargo da presidência desde 1989, quando Ricardo Teixeira venceu Nabi Abi Chedid, assumiu o posto e por lá ficou até 2012, sendo substituído por José Maria Marin. Entre Marin e Ednaldo Rodrigues, Marco Polo Del Nero, Coronel Nunes e Rogério Caboclo foram presidentes da entidade.
Da quadrilha da morte do futebol brasileiro, Teixeira, José Maria Marin e Del Nero estavam envolvidos em esquemas de corrupção, com destaque para o segundo, preso em 2015 na Operação Fifagate [1]. Os dois antecessores de Ednaldo também foram incapazes de conduzir as coisas por aqui, Nunes teve um mandato curto e se indispôs com as outras federações sul-americanas durante o processo de escolha para a sede da Copa do Mundo de 2026 [2]. Caboclo fez parte de um episódio ainda mais grave: foi afastado do cargo, denunciado e acusado após cometer assédio moral e sexual contra uma funcionária da CBF no ano de 2020 [3]. Em 35 anos, os seis presidentes que passaram por lá se destacaram mais por escândalos do que pela competência – qualidade inexistente entre esses “gestores”. Teixeira, que aproveitou os bons tempos de troféus do Brasil, pode ser considerado um “burro com sorte”, como diria o treinador Levir Culpi.
Em mais de três décadas, nunca tivemos uma eleição presidencial na CBF com dois ou mais candidatos. A situação sempre vence, pois a oposição inexiste. O ex-jogador Ronaldo, recentemente, mostrou interesse em suceder Ednaldo Rodrigues no cargo se vencesse nas votações, mas o sistema é montado para que qualquer presidente vigente seja reeleito. O “Fenômeno” desistiu da candidatura três meses depois de anunciá-la [4]. O voto das federações tem peso três, enquanto os dos clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro possuem, na ordem, peso dois e um. Os longos e desinteressantes estaduais são uma estratégia para que a CBF consiga o apoio político das federações de futebol de cada estado, que ganham dinheiro com os torneios organizados dentro de cada unidade territorial no país.
Como dito antes, algumas seleções venceram as Copas do Mundo em ciclos conturbados, com as entidades responsáveis pelo futebol dos países mostrando todo o seu despreparo e sendo “salvas” pelos craques que tinham. A atual campeã do mundo viveu mandatos manchados por corrupção e desordem com o falecido Julio Grondona, que foi presidente da Asociación del Fútbol Argentino (AFA) entre 1979 e 2014 [5]. Atualmente, sob a gestão de Claudio Tapia, reeleito também em chapa única, tem um campeonato bagunçado, o qual nem o rebaixamento teve na última temporada [6]. O que mascara a administração de Tapia é o bom rendimento dos jogadores argentinos em campo e o ótimo trabalho de Scaloni na beira do gramado. No Brasil, quem salvava Ricardo Teixeira era Romário, Bebeto, Taffarel, Ronaldo, Rivaldo, Parreira, Felipão, entre tantos outros que brilharam com a “amarelinha”. Hoje, tá difícil pro Ednaldo arrumar um escudo humano para si, o cerco se fecha e as falhas em seu trabalho são mais expostas a cada revés que nossa seleção vive, só Jesus na causa. Para quem gostava tanto de vestir verde e amarelo por motivos estupidamente errados e bradava que seríamos uma nova Venezuela, fica aí a profecia acertada, numa instituição onde na prática não existem eleições e culpada por assistirmos a um futebol muito fraco. Aliás, não vencemos a Venezuela em nenhum dos dois jogos que fizemos nas Eliminatórias, ambos terminaram em empates insossos de 1 a 1. Com todo respeito à Savarino, Soteldo, Rondón e companhia, mas hoje é um vexame a seleção verde e amarela ser um vinho tinto que consegue a proeza de envelhecer como leite.