Depois de quase 20 anos sem pisar as arquibancadas do estádio de futebol do meu clube de coração – que durante toda minha infância foi o quintal da minha casa – o sábado 16 de março fui assistir a um jogo inesquecível, que me transbordou o coração de orgulho futebolístico e nacionalista. Antes mesmo de eu existir legalmente como cidadão no Registro Civil, já o era sócio Nº 900 do clube.
Como torcedor vi meu Danubio (time pequeno, para alguns) vencer o Nacional de Montevidéu (time grande) por 2 tentos a 0, no modesto e acolhedor Estádio Jardines del Hipodromo Maria Minchef de Lazaroff [1], palco que vi ser construído.
Como torcedor / pesquisador, testemunhei meu clube do “paisinho” dar mais uma lição de civilidade, desta vez, utilizando o futebol como ferramenta de alerta e denúncia social, em busca de um esporte mais justo e consequentemente uma sociedade mais igualitária, inclusive entre gêneros.
Digo mais uma lição, porque como uruguaio, sei que fomos pioneiros em democratização e direitos civis na América Latina; e em determinados assuntos, vanguarda no mundo.
Em 1907 fomos o primeiro país na região a legalizar o divorcio, em 1915 implantamos a jornada de trabalho de 8 horas; em 1932, nos transformamos no segundo país da América a conceder as mulheres o direito ao voto (em 1929, o Equador foi o pioneiro).
Em 1930, fomos sede da primeira Copa do Mundo organizada pela FIFA e também os primeiros Campeões do Mundo. Antes, em 1924 e 1928, fomos Campeões Olímpicos de Futebol, torneio considerado até 1929 como o torneio mais importante entre seleções nacionais do futebol mundial e organizado pela FIFA, o que nos tornaria o primeiro tricampeão do mundo.
Em 2007, fomos o primeiro país sul-americano a legalizar a união civil entre pessoas do mesmo gênero e permitir a adoção homoparental; e em 2012, aprobamos a descriminalização da pratica do aborto, e fomos, em 2013, os primeiros no mundo a legalizar o cultivo, venda e consumo de cannabis.
O palco que acima me refiro, foi inaugurado em 25 de agosto de 1957, – justamente num amistoso contra o Club Nacional de Football – com o nome de Estádio Jardines del Hipodromo. Hoje tem capacidade para 18.000 espectadores e foi construído no sistema de mutirão pelos sócios, vizinhos e simpatizantes.

É o primeiro estádio no Uruguai, e um dos poucos no mundo a levar o nome em homenagem a uma mulher. O nome de Maria Minchef de Lazaroff foi incluído ao nome original em 2017, após votação dos sócios. A inciativa da Diretoria aconteceu ao dar inicio as atividades do futebol feminino do Danubio Fútbol Club, ao perceber e entender que o futebol requeria um olhar diferente:
“Sempre se falou que o futebol é coisa de homens, sempre esteve nas mãos deles e isso nos trouxe até aqui. Um futebol que foi invadido pela violência, a corrupção e o medo, um espetáculo que era familiar acabou distanciando as famílias por medo”
Nesse sábado 16, assisti a mais um ato de vanguarda uruguaia; o Danubio Fútbol Club iniciou a campanha “Los números a los que les damos la espalda” e decretou que durante todo o mês de março, as camisas dos jogadores do time principal teriam seu número de identificação nas costas da camisa atrelado aos números de indicadores sociais aos que sempre damos-lhes as costas, especificamente aqueles referentes ao sofrimento infringido as mulheres pelo simples fatos de serem mulheres. A campanha tem como fim a tentativa de chamar a atenção e reverter esta realidade e com isto quiçá lograr que, num futuro próximo, possamos ostentar orgulhosamente outros números, agora no peito.[2]

Por exemplo, o número 1 do goleiro refere-se a: “1 denuncia de violência de gênero a cada 14 minutos”; número 5: “Somente 5% da cobertura mediática corresponde a esportes femininos” ; número 9: “Mais de 9% das mulheres sofreram violência laboral”, número 10, “Cada 10 postos de comando, somente 2 são ocupados por mulheres” ; número 19, “Somente 19 dólares de cada 1900, destinam-se ao patrocínio de esportes femininos”


Se o “modesto” placar do jogo deu a vitória esportiva ao Danubio por 2 tantos a 0, pelo viés social foi uma expressiva goleada, digna de deixar eufórico qualquer individuo engajado, mesmo não sendo fá de futebol, mesmo não sendo “hincha” de Danubio ou mesmo não sendo uruguaio.
[1] Maria Minchef de Lazaroff, mãe de Miguel e Juan Lazaroff, dois jovens cofundadores do clube. De origem búlgara, deu o nome ao clube em homenagem ao rio do seu pais.
[2] http://www.danubio.org.uy/uc14_2573_1.html