Polo, clonagem e ética

Por César R. Torres** e Francisco Javier López Frías***

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Adolfo Cambiaso, em sua égua clonada Cuarterera 01. Imagen: AFP

De acordo com o antropólogo cultural Eduardo P. Archetti, o polo gradualmente se tornou na Argentina, desde sua introdução no século XIX, “um dos símbolos do país em um contexto de internacionalização”. A validade desta afirmação foi evidenciada recentemente em um segmento de “60 Minutes”, um reconhecido programa de televisão norte-americano transmitido desde 1968. O segmento explora a clonagem de cavalos de polo com foco nos esforços bem-sucedidos de Adolfo Cambiaso, estrela mundial do esporte, para produzir cavalos através dessa biotecnologia e usá-los na competição.

Apesar de sua crescente expansão, como observa Lesley Stahl, a condutora do segmento, a clonagem de cavalos de polo e seu uso na competição levantam questões importantes. Tanto Cambiaso quanto Alan Meeker, seu sócio no negócio da clonagem de cavalos, abordam essas questões de uma maneira que, segundo o segmento, é atípica. Nosso objetivo aqui é refletir sobre os argumentos que ambos propõem no segmento para justificar a clonagem de cavalos e seu uso no polo, que são típicos do grupo que promove tais práticas.

Cambiaso responde à pergunta de Stahl sobre a ética da clonagem animal a partir de uma posição “utilitarista”, uma vez que justifica o uso dessa biotecnologia com base nos objetivos que ela permite alcançar. Ele afirma: “Eu não vejo isso como errado”, aduzindo que “estou apenas fazendo algo para melhorar o meu jogo” e esclarece que os clones de Cuartetera, sua égua favorita, permitiram que ele cumprisse sua missão e “não iria além disso”.

Essa posição é problemática, pois é redutora em pelo menos dois sentidos. Por um lado, limita a ética à avaliação das consequências. Por outro lado, as consequências são circunscritas àquelas relacionadas ao jogo de Cambiaso. Por sua vez, essas reduções geram as seguintes perguntas: o polo deve aceitar tudo o que produz certas consequências vantajosas? Existem outras consequências a considerar que nos obrigam a repensar a ética da clonagem de cavalos de polo e seu uso na competição?

Considere o seguinte exemplo nada relacionado ao polo. Tanto o descascador de batatas quanto a energia nuclear são tecnologias que melhoram as habilidades humanas com consequências benéficas para o bem-estar. O primeiro nos poupa tempo para cozinhar de forma mais eficiente. O segundo fornece energia elétrica barata que podemos consumir para levar uma vida mais confortável. No entanto, a energia nuclear é problemática devido a outras consequências derivadas de seu uso, especialmente aquelas de natureza ambiental. O que é mais parecido com a clonagem de cavalos no polo, um descascador de batata ou energia nuclear? Para examiná-lo, temos que considerar as consequências que Cambiaso não leva em conta em sua resposta. Assim, vamos nos concentrar em alguns aspectos que dizem respeito à ética esportiva, deixando de lado a ética animal, não porque a consideremos pouco relevante, mas por questões de espaço.

A primeira e mais óbvia consequência tem a ver com o equilíbrio competitivo. Para começar, vale ressaltar que no polo não existe uma regra que impeça a clonagem de cavalos ou a utilização deles na competição. Portanto, como Meeker aponta, quem faz isso não está trapaceando porque não contraria nenhuma regra do jogo. No entanto, esse argumento tem dois problemas. Primeiro, ainda que não exista uma regra que proíba a ação, isso não implica que ela seja aceitável. As regras podem estar incorretas ou omitir certas ações, dando lugar a um vácuo legal. Nesse sentido, vale ressaltar que o Código Mundial Antidoping proíbe o doping genético. Em segundo lugar, o conceito de “trapaça” pode assumir um significado mais profundo associado ao espírito esportivo. Como Stahl sugere no segmento, aqueles que clonam cavalos de polo e os usam em competição podem estar perturbando a natureza do jogo ou, pelo menos, desprotegendo aspectos que são considerados valiosos. Entre esses aspectos, incluem-se a justiça competitiva e as habilidades do polo.

No que diz respeito à justiça competitiva, o próprio Cambiaso afirma que não está comprometido, já que “todos podem clonar” e “ele está tentando começar a clonar”. Isso não parece ser inteiramente verdade. Nem todo mundo, como mostrado no segmento, está tentando clonar cavalos para competir. Alguns se opõem à clonagem de cavalos em termos morais ou religiosos e outros o fazem de acordo com a tradição do polo, porque consideram que a criação de cavalos deve ser “natural”. Além disso, ainda que todo mundo estivesse tentando clonar cavalos e no futuro todos o fizessem, poucos possuiriam o capital necessário para clonar mais de 100 cavalos como tem feito Cambiaso, e mesmo muitos menos seriam capazes de clonar Cuartetera, o qual vários especialistas o consideram o melhor cavalo de polo da história. De fato, a empresa Cambiaso admite que nunca vende clones para “manter a chave da genética”. Se, como diz Cambiaso, Cuartetera “nasceu para jogar (e é único) como Messi”, aquele que conta com ela tem tanto a “chave” de sua genética como uma vantagem competitiva perceptível. Ainda mais se você tiver 34 réplicas da famosa égua, tal e qual Cambiaso aspira em 2019.

Deixando de lado a justiça competitiva, e entrando no campo das habilidades do jogo, o uso de cavalos clonados na competição gera muitas incertezas. Por exemplo, se, como afirma Cambiaso, os clones se comportam como o original, têm “a mesma personalidade calma e autossuficiente” e são fáceis de montar, sendo capazes de manobrar em um espaço reduzido com eles, o que acontece com a capacidade do ginete de se adaptar a um cavalo novo ou a cavalos diferentes durante um jogo ou com a capacidade do ginete de decidir estrategicamente o melhor cavalo para as diferentes fases e momentos-chave de uma partida? Se essas habilidades são centrais para o jogo, a clonagem apresentaria riscos para a excelência característica do polo e possivelmente para o seu desenvolvimento.

Por sua vez, ao longo do segmento, repete-se que o cavalo desempenha um papel preponderante no polo, tanto que alguns alegam que tem uma incidência de 80% no jogo. Que a clonagem de cavalos se torne um elemento essencial na competição daria ainda mais peso aos cientistas e técnicos especializados no assunto do que aos próprios jogadores de polo, supostos protagonistas do esporte. A comunidade polo quer que seu esporte seja “decidido” principalmente nos laboratórios? Isto é, deseja que ele se torne uma espécie de Fórmula 1 em que os “clonadores” e os “projetistas genéticos” também serão reconhecidos como concorrentes? Não é desconcertante que a perícia do jogador seja cada vez mais mitigada, ou de fato substituída, por “avanços” tecnocientíficos?

A clonagem de cavalos de polo e seu uso na competição aprofunda a racionalidade instrumental que tem permeado a criação de cavalos neste esporte. Nada do que foi colocado aqui deveria ser construído para respaldar o resto das biotecnologias usadas no pólo. Nem como um ataque aos adeptos do uso da biotecnologia nesse esporte. Ao contrário, ao refletir sobre os argumentos que são propostos no segmento para justificar a clonagem de cavalos e seu uso no pólo, esta nota sugere que a comunidade deste esporte deveria considerar profundamente a dimensão ética de suas práticas, a fim de que nenhum dos aspectos considerados valiosos que transformaram o polo, como disse Archetti, em um dos símbolos do país, não se vejam desprotegidos ou sejam eliminados. Isso também requer uma reflexão e uma justificativa ética focada no tipo de esporte e na sociedade que aspiramos construir. Estamos interessados ??em um mundo em que a racionalidade técnico-científica ameace ou elimine aquilo que é significativo em nossas práticas sociais simplesmente porque melhora a eficiência?

* Texto originalmente publicado no site do jornal argentino Página 12 em 23 de abril de 2018.

**Doutor em filosofia e história do esporte. Docente na State University of New York (Brockport).

***Doutor em filosofia. Docente na Universidade do Estado da Pensilvânia (University Park).

Tradução livre de Clara Quintaneira – LEME/UERJ

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