Os argentinos Mauricio Pochettino e Eduardo Coudet são, respectivamente, os treinadores do Tottenham Hotspur Football Club em Londres e do Racing Club de Avellaneda. Além de colegas, eles compartilham algumas ideias básicas em sua concepção do futebol. Não é por acaso que ambos sejam elogiados por promover um estilo de jogo vistoso e ofensivo. No entanto, ambos também defendem um conceito problemático, embora aparentemente bastante difundido na comunidade de praticantes, do papel que o engano (engaño, no original) deveria ter no futebol.
Rejeitando o uso do sistema de árbitro de vídeo, conhecido como VAR por sua sigla em inglês (vídeo assistant referee), Pochettino declarou, em fevereiro deste ano, que décadas atrás “se felicitava o jogador que tinha trapaceado o árbitro” e confessou melancolicamente que “esse é o futebol pelo qual me apaixonei quando criança”. Reafirmando sua posição, afirmou: “No futebol, devemos tentar enganar o adversário. Sim ou não?”. No mês seguinte, em outra crítica ao VAR, Coudet se manifestou no mesmo sentido. Ele disse que “o futebol é um esporte em que você vive do engano”.

Sem dúvida, o engano, entendido como o ato de fazer crer que algo falso é verdadeiro, é uma faceta importante do futebol. Já dizia o jornalista argentino Dante Panzeri em 1967 que o futebol “exige dominar a arte de enganar” e que sua lei básica estabelece que “ganha quem melhor engana”. Panzeri não elucidou que forma de engano é aceitável, embora ele tenha dado uma pista sobre isso, esclarecendo que ele se referia ao mesmo “em um sentido positivo, em uma forma prazerosa, engenhosa, mas que não altera o próprio sentido da atitude de enganar”.

Escrevendo alguns anos depois de Panzeri, a filósofa americana Kathleen M. Pearson esclareceu a questão. Embora coincidisse em sua importância, sustentava que o engano do rival não é um fenômeno simples e unitário. Pearson distinguiu entre “engano estratégico” e o “engano conclusivo”. Aquele envolve o ato de fazer crer que uma falsa intenção é verdadeira dentro do estipulado pelas regras do esporte. Nesse tipo de engano, se tenta iludir o adversário para obter uma vantagem competitiva lícita através das habilidades do esporte em questão. Como Pearson ilustrou, se insinua ao rival que se irá para a direita quando o objetivo é ir pela esquerda. No futebol, o drible constitui um exemplo claro de engano estratégico ou “intralúdico”. Pode-se argumentar que esse é o tipo de engano que Panzeri tinha em mente quando propôs que “o futebol bem jogado é o imprevisível“. De fato, no futebol, para ser imprevisivelmente bom, deve-se cultivar constantemente as diferentes formas de engano estratégico que o definem.
Pelo contrário, o segundo tipo de engano identificado por Pearson, o conclusivo, envolve o ato de parecer estar em conformidade com o estipulado pelas regras do esporte para se isentar das mesmas quando fazê-lo é considerado conveniente em termos do resultado. Nesse tipo de engano, pretende-se despistar o árbitro principalmente para obter uma vantagem competitiva ilícita através de habilidades que são estranhas ao esporte em questão. Seu caráter é conclusivo precisamente porque encerra ou impede, ainda que temporariamente, a competição de habilidades próprias de tal esporte. No futebol, fingir ter sido vítima de uma infração na área adversária para obter uma penalidade imerecida ou fingir uma lesão para parar o jogo são exemplos claros de engano conclusivo ou “extra-lúdico”. As regras do futebol caracterizam esses atos como comportamento antidesportivo e especificam que são puníveis com uma advertência. O futebol não se propõe a verificar, nem precisa desenvolver a perícia em deixar-se cair simulando infrações, fingindo ferimentos ou em outras formas de fraude conclusiva. Inclusive, se costuma considerar todas essas atitudes como casos de trapaça.
“A mão de Deus”, o gol de Maradona contra os ingleses em 1986
A distinção entre engano estratégico e engano conclusivo, bem como suas implicações para o esporte, é útil para abordar a posição representada por Pochettino e Coudet. Por um lado, confirmam que no futebol tem-se que enganar o adversário, mas eles especificam que só é admissível fazê-lo por meio do engano estratégico. Por outro, eles sugerem que no futebol se deveria viver por e desse tipo de engano. Caso contrário, a tarefa distintiva dos jogadores é prejudicada, ou pelo menos contradita. Da mesma forma, parabenizar o jogador que engana o árbitro denota uma defesa do engano conclusivo, uma faceta imprópria e espúria do jogo. Deve-se evitar esse tipo de engano e apaixonar-se do futebol no qual florescem as habilidades específicas que são a base de seus modelos de excelência e o caracterizam. Nesse futebol, a trapaça é reprovada e a arte do engano estratégico é reforçada. Esse futebol necessita que se gerem espaços, como reivindicava o escritor uruguaio Eduardo Galeano, que facilitem “a improvisação e a espontaneidade criativa”, aspectos intimamente ligados a esse tipo de engano. Empenhar-se nisso seria um caminho esplêndido para renovar o amor pelo futebol.
* Texto originalmente publicado em El Furgón no dia 22 de abril de 2018.
** Cesar Torres é doutor em filosofia e história do esporte. Docente na State University of New York (Brockport).
Foto de capa: http://www.as.com
Tradução livre de Clara Quintaneira – LEME/UERJ