Quantos “Flamengos” o Flamengo tem?

Um dos assuntos mais comentados durante o período de quarentena pelos amantes e profissionais do esporte ao redor do mundo era a volta do futebol. Nos países da Europa o assunto foi tratado com cautela e responsabilidade, tendo as competições voltado apenas setenta dias após o pico da pandemia. Aqui no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, a modalidade retornou com fortes contornos políticos e econômicos, demarcando claros jogos de poder. Um dos pilares do apressado retorno foi um clube que figura entre os mais populares e, sem dúvidas, o mais rico do país: o Flamengo.

Não é de hoje que futebol e política caminham lado a lado. Um dos marcos dessa relação é a Copa de 70, na década denominada pelo cineasta Silvio Tendler como “trágica”, pois vivenciava-se o auge da Ditadura. Cinquenta anos depois, volta-se a flertar com o golpe militar no Brasil e o futebol continua a ser usado como símbolo político. Em um ano marcado por um presidente que nega a pandemia, um governador mais preocupado com o impeachment e um prefeito que tenta a reeleição, o esporte mais popular do país surge como um elemento que poderia salvar essa equação de um resultado negativo.

Os encontros, cada vez mais frequentes, entre o presidente do Flamengo com o presidente do Brasil, mostram os jogos políticos e de poder bem marcados no futebol. As inúmeras vezes em que Bolsonaro já apareceu com a camisa do Flamengo, ou que o clube foi usado como forma de popularizar o governo, quando, por exemplo, Moro vestiu o “manto sagrado” três dias após o vazamento de mensagens que colocavam em xeque a imparcialidade do ex-juiz na Lava Jato, põem também em xeque a suposta postura apolítica que o clube alega ter.

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lance.com.br

É interessante notar a transformação política e imagética que o Flamengo sofreu ao longo dos anos. Tradicionalmente conhecido como um “clube das massas”, o Flamengo hoje é um típico time da elite. Além dos ingressos a preços altíssimos, a comunicação do clube com seu torcedor mais fiel é marcada por falhas. No ano passado, após a sede do clube ser pichada por torcedores, um dirigente do Flamengo questionou: “Do jeito que foi escrito, Mickey todo certinho, não foi a torcida”. Outro episódio foi o veto à famosa expressão “festa na favela”, com a alegação de que favela é “algo associado à violência”.

Assim, o Flamengo guarda cada vez mais semelhanças com os personagens “Enrico” e “Rico” do livro A Corrosão do Caráter, de Richard Sennett. Com uma curiosa peculiaridade: o Flamengo representa os dois personagens. Enrico, o homem que retrata a massa, mas que almejava um futuro melhor para o seu filho. Rico, o filho que ascendeu socialmente, mas sente vergonha da origem do pai. Duas faces de um mesmo personagem, que alterna entre uma e outra quando lhe convém. O Flamengo herdado por Rodolfo Landim, fruto de uma gestão que proporcionou que o clube tivesse o poderio financeiro que possui hoje, não quer mais sua imagem associada ao que não lhe garanta um status elevado. Ao mesmo tempo, usa dessa fidelidade das massas para continuar com o posto de time mais querido do Brasil.

Posto esse, aliás, ratificado com a conquista da Taça Libertadores da América de 2019 quando levou milhares de apaixonados às ruas do centro do Rio de Janeiro. O ano, porém, começou de modo mais melancólico, com o incêndio dos “meninos do Ninho”. Em um intervalo de onze meses, o Flamengo foi capaz de fazer sua nação chorar e sorrir com a mesma intensidade. O assunto foi conduzido de maneira muito mais burocrática e rígida do que é a postura do time em campo. Devemos reconhecer, por outro lado, a coerência com a postural atual da diretoria. Mais de um ano depois dessa tragédia, os jogos políticos e de poder reaparecem na pressão política pela volta do futebol em um estado que ainda consta com um alto número de mortes.

Essas duas situações guardam mais similaridades quando analisamos que, na época do incêndio, o Flamengo estava em negociação com o meia-atacante uruguaio De Arrascaeta, comprado por 80 milhões de reais pelo clube, que decidiu barganhar na justiça o valor da vida de meninos que foram entregues aos seus cuidados. Agora, no mesmo dia do retorno do Campeonato Carioca, com o jogo “Flamengo x Bangu”, foi editada, pelo presidente Jair Bolsonaro, uma medida provisória sobre os direitos de transmissão dos jogos. Enquanto morriam duas pessoas no hospital de campanha ao lado do estádio onde o time do Flamengo comemorava seus gols, o presidente do clube comemorava também essa outra vitória, já que, como o Flamengo não tem contrato com a Globo, seria o único clube imediatamente beneficiado.

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Jornal de Brasília

A suspensão da divisão da premiação em dinheiro do Campeonato Brasileiro e da Libertadores com os funcionários foi outro evento que contrasta com a alegria que o time proporciona à torcida, gerando, inclusive, um mal estar dentro do clube. O acordo de 70% para os jogadores e 30% para os funcionários não foi aprovado por Landim. Um episódio que não ganhou muito espaço na mídia, mas que denota a clara transformação do Flamengo em um clube de modelo empresarial, comandado por gestores que se preocupam única e exclusivamente com o lucro. Escolha que leva o clube a ter um elenco milionário e, sem dúvida, o melhor do país, mas que o faz esquecer seu papel social – e talvez até sua essência.

O clube, que passou por um processo de democratização em 1988, na gestão do ex-presidente Márcio Braga, dando aos sócios o direito de votar nas eleições do clube – direito que antes era apenas restrito aos conselheiros -, hoje quer fazer valer apenas a sua própria voz no cenário nacional. Como Narciso, que de tanto admirar sua própria beleza, se afogou em sua própria imagem, o Flamengo ruma para um caminho semelhante. Com uma postura tão vaidosa, o clube parece não ter olhos para os outros, a não ser a si mesmo.

O clube não é o primeiro, e nem será o último, a se associar a um governo autoritário. Até hoje o Benfica, de Portugal, é marcado por suspeitas de favorecimento estatal na conquista de campeonatos durante a Ditadura de Salazar. Na Espanha, a história do Real Madrid guarda uma relação intrínseca com a Ditadura franquista, retratada no documentário “O Madrid Real. A lenda negra da glória branca”, de Carles Torras. A aproximação do Flamengo com um governo que é marcado por falas e atos dúbios, pode até trazer benefícios a curto prazo, mas certamente deixará uma marca na história do clube.

A cada dia o Flamengo apresenta à sociedade uma nova faceta. Consegue ser considerado arrogante, sem perder o título de “mais querido”; envergonha parcela da torcida, mas orgulha a maior parte dela com a conquista de títulos; surge como mau exemplo caçando brechas no decreto da prefeitura, mas tem jogadores que são modelos para milhares de crianças. Nesse transtorno de personalidade “multipolar”, fica a questão: quantos “Flamengos” o Flamengo tem?

One thought on “Quantos “Flamengos” o Flamengo tem?

  1. Excelentes reflexões! Fico pensando em como Landim coloca em cena a repetição do movimento do governo federal: popular em alguns discursos, mas ativamente anti-povo. Quando é chamado à ação concreta, suas posições são elitistas e excludentes.

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