Formação de mitos no futebol brasileiro
A formulação de mitos e seus ritos são operações simbólicas da linguagem. A narrativa mitológica é amparada na constituição de características e modelos exemplares que estão em consonância com a representação e coesão de determinada história. Isto posto, há um pressuposto de esforço de comunicação através da formulação e consolidação de mitos e seus rituais como “tentativas simbólicas de solucionar problemas da vida social”¹.
Com o objetivo de analisar a imagem de Edson Arantes do Nascimento, Pelé, maior ídolo do futebol brasileiro, à época de sua despedida do selecionado nacional nesse ritual de passagem, José Carlos Rodrigues expõe três operações básicas para identificar os objetivos da construção de mitos. Na figura de herói ou de vilão, a formulação de mitos e ritos na sociedade está em diálogo com a construção de representações que pretendem comunicar determinadas expectativas e valores. Portanto, é necessário se questionar quanto à problemática que o rito pretende resolver, quanto aos objetivos de uma fala em sentido figurado e quanto à esfera coletiva do mesmo². Isto é, a construção de mitos e ritos é atravessada por interesses sobre determinados problemas sociais e coletivos e, assim, constrói um modelo exemplar dos valores a serem expressos por meio desta imagem, seja ela como modelo ideal ou execrável inserida num padrão de oposição dialético.
Alicerçada no conceito de “transfiguração” manejado por Hans Ulrich Gumbrecht, Leda Costa³ mobiliza as figuras dos jogadores de futebol sob a perspectiva da distinção entre os demais, tanto a partir da glória quanto da desfortuna. A transfiguração do atleta se dá na medida em que o personagem ordinário ganha protagonismo com a representação cimentada na complexa elaboração de heroísmo e vilania.
A produção de dicotomias a partir da elaboração de mitos sociais atravessa a construção de heróis e vilões, que operam como personagens modelos de comportamento e valores, sob o signo da recusa ou da idealização. No âmbito do futebol, dado o intrínseco encadeamento do esporte com os distintos domínios que compõem a sociedade, as tipologias dos personagens elencados como heróis e vilões extrapolam o limiar das quatro linhas, almejando expor valores em uma perspectiva arrojada.
O formato e a veiculação das narrativas de figuras de idolatria no futebol brasileiro associam a figura do ídolo ao do herói4, que é concebido sob perspectivas consonantes com as peculiaridades do referido esporte no Brasil. Ao analisar duas biografias de ídolos do futebol brasileiro, Helal comparou as diferentes caracterizações dos jogadores, bem como suas recepções e significações na relação com um suposto estilo brasileiro de jogar. Elencados como personagens de trajetórias opostas, Romário e Zico, dois grandes jogadores do futebol brasileiro, têm suas imagens de ídolos construídas sob distintos vieses, em que Zico é qualificado através da dedicação e do esforço, enquanto Romário pela malandragem, talento e irreverência, qualificações que se aproximam mais com um ideal de jogo no país.

Na comparação entre as narrativas, a imagem de Zico é atrelada à dedicação e, por isso, a caracterização de Romário, alicerçada na habilidade inata e em um jogar malandro, é tida como a representação da nação e, mais que isso, como modelo de resgate “da “brasilidade” da seleção”5. As projeções feitas a partir dos debates do heroísmo operam na medida em que se propõem a estimular valores e modelos comportamentais desejados não apenas para a esfera futebolística, como para a sociedade mais ampla. Do mesmo modo ocorre a formação de vilões: são projetadas sobre eles características reprováveis no meio social, relegando-os a uma alteridade negativa.
A formação da imagem dos vilões é atravessada pela construção de uma lógica homogeneizadora composta por estereótipos. Sua caracterização é baseada na exposição do desarranjo entre suas características com as expectativas e valores sociais, constituindo uma presença ilegítima diante da comunidade. Desse modo, os vilões representam a oposição em relação aos elementos constitutivos dos heróis, expondo uma relação dialética cimentada na rejeição de seus atributos. Tornam-se, portanto, modelos daquilo que não deve ser seguido, tem que se trabalhar não apenas idealizações, mas narrativas de combate à sua figura e suas pulverizações.
Apesar das caracterizações pejorativas atribuídas aos vilões, tais personagens representam potencialidades de exploração melodramática, que encontram na mídia terreno fértil para a exposição de suas narrativas. A relação dos meios de comunicação com as figuras vilânicas se dá de forma dual: ao mesmo tempo em que estas oferecem possibilidades de benefício em função de seu rendimento dramático, a mídia criou espaço fecundo na esfera futebolística para a emergência de heróis e vilões com a processual espetacularização do futebol.
Em setembro de 2006 foi ao ar, por meio do Globo Esporte, programa de jornalismo esportivo que pertence à Rede Globo, a série de reportagens “Futebol em Paz”. Composta por quatro episódios, a série buscou tratar da problemática da violência no futebol, seus impactos e possibilidades de resolução. “Clubes estão pagando pelo mal que ajudam a criar: as torcidas organizadas”, “As providências que a CBF está tomando para acabar com a violência no futebol”, “As medidas que estão sendo tomadas para impedir a ação de torcedores violentos” e “Como a Europa conseguiu deixar a violência em níveis minimamente toleráveis”6 são os títulos de cada capítulo, que já anunciam a atribuição da autoria da violência no futebol às torcidas organizadas. Das quatro partes da série, apenas três estão disponíveis no sítio eletrônico do Globo Esporte. Por isso, a análise se restringiu ao material disponível.
Na descrição da reportagem, a definição dos objetivos da matéria se dá da seguinte forma:
As reportagens alertaram para o crescimento da violência nos estádios brasileiros. Nos últimos anos, o cenário onde os craques da bola deveriam dar show, virou lugar de confronto entre torcidas rivais. Muitas dessas confusões violentas contam com a cumplicidade e com a omissão dos clubes. Ingressos que não são vendidos, acabam sendo distribuídos para as torcidas e vão parar nas mãos de vândalos. Outro ponto abordado na série Futebol em Paz apontou para as dificuldades de punir os agressores e restringir a frequência destes conflitos.
No primeiro episódio da série, foram entrevistados sociólogos e presidentes de clubes, que analisaram a relação entre clube e torcida organizada. Outra questão que os repórteres abordaram foi o afastamento dos brasileiros dos estádios, naquela época, por causa das brigas que impossibilitavam a presença de crianças, famílias e todos que gostam de futebol7.
O primeiro episódio é iniciado com a exposição de imagens de confrontos entre torcedores acompanhada da fala do repórter George Guilherme: “ônibus da torcida palmeirense depredado. 8 feridos, 1 preso. Assustadora rotina”8. Com a participação de convidados, a lógica da criminalização das torcidas organizadas é reforçada sob a justificativa do impacto financeiro que a violência produz, além do afastamento de torcedores dos estádios. Termos como “criminosos” e “delinquentes” são utilizados para caracterizar os componentes das agremiações torcedoras, que são somados à conclusão do repórter: “Uma deformação que nasceu com a ajuda dos próprios clubes”.
O decorrer da reportagem se compromete com a exposição da demonstração do prejuízo financeiro que as torcidas organizadas oferecem aos seus clubes, seja pela distribuição de ingressos ou pelo afastamento do público pagante, atrelada ao efeito a longo prazo: “além do impacto aqui nas bilheterias, e por tabela nos cofres dos clubes, a violência também atinge o futuro do esporte. Por causa dela, o futebol pode estar perdendo uma geração de torcedores”. A cena seguinte é uma entrevista a um jovem torcedor de 15 anos que estava pela primeira vez no estádio Mário Filho, o Maracanã, sob a justificativa de nunca ter ido por ser algo perigoso.
O segundo episódio versa sobre as medidas tomadas pelas autoridades futebolísticas no combate à violência. Sem mencionar nominalmente as torcidas organizadas, todo o pano de fundo da reportagem é construído com a exposição de imagens de torcedores em confrontos. Com as falas de nomes como Ricardo Teixeira, à época presidente da Confederação Brasileira de Futebol, e Dunga, treinador do selecionado nacional, as torcidas organizadas são tidas como grande ameaça à tentativa de sediar a Copa do Mundo no Brasil no ano de 2014. O repórter responsável pelo episódio expõe a problemática: “E o pesadelo pode custar um sonho. Copa do Mundo. O Brasil planeja sediar a de 2014, mas o futebol brasileiro sabe. Antes que a festa aconteça, será preciso combater a violência no futebol”. A frase, seguida de imagens de confrontamentos, é reforçada por Teixeira e Dunga, respectivamente: “Acho que é importante na medida em que se você raciocinar que no mundo todo tem havido esse tipo de problema (fazendo menção às brigas entre torcedores) que tem sido corrigido aos poucos. A gente tem que atacar o problema, porque é um problema” e “Essa coisa atinge níveis exorbitantes, níveis incontroláveis, claro que isso pode até dificultar a nossa candidatura. Para que ela seja homologada pela FIFA”.
O encadeamento da reportagem se propõe a oferecer possibilidades de resolução da problemática a partir de exemplos europeus, especialmente da Alemanha, como o cadastramento de torcedores. No entanto, o cadastro seria restrito aos torcedores organizados, que são os considerados violentos. O episódio é concluído com a fala do jornalista, após exibir o valor de 3,2 bilhões de reais que a Alemanha investiu em segurança nos estádios: “Um investimento que traz paz e torcedores aos estádios. Que pode render frutos que durarão muito mais que uma Copa do Mundo”.
O terceiro episódio segue com a temática de medidas a serem tomadas para tratar do problema da violência no futebol. O cadastramento de torcedores permanece como pauta, somado à ideia de um público desejável. Como forma de reduzir as práticas de violência, o jornalista aponta “a volta das famílias aos estádios”, discurso acompanhado pelo seu entrevistado, que complementa: “Quem vai acompanhado ao Maracanã de criança ou com a namorada ou com a esposa não briga. É raro brigar. Ainda mais com criança. Porque o cara quer paz. Pra mostrar que aquilo ali é legal”. A matéria é concluída com a exibição da imagem de uma mulher acompanhada de uma criança.
A série “Futebol em Paz”, desse modo, instiga, a partir da veiculação, a circunscrição da violência no futebol às práticas das torcidas organizadas. A exposição encadeada da problemática, dos possíveis impactos e de medidas de solução estão ancoradas em uma estrutura narrativa de construção de um problema social. Ao mesmo tempo em que demonstra a imagem das torcidas organizadas restritas à contenda, a série evidencia um oposto desejado: a família, principalmente composta de mulheres e crianças, dando a tonalidade da pacificação a partir de tais figuras.
Mais que isso, a série posiciona as agremiações torcedoras enquanto descaracterizadas como torcedores. Ao mencionar que houve “afastamento dos brasileiros dos estádios”9, bem como a impossibilidade da presença de famílias e crianças, os torcedores organizados são imbuídos pelo estereótipo da violência e de terminologias criminalizantes, em que até mesmo sua nacionalidade é esvaída em função do estigma. A construção da legitimidade e da urgência de tal narrativa é fortalecida com a ideia de que todo o corpo social pode ser negativamente impactado, ou seja, todos são “vítimas potenciais”¹º das agências de torcedores organizados: “As torcidas organizadas seriam, portanto, para o jornal, as grandes “vilãs” nos incidentes de violência. Estes incidentes “vitimizariam” principalmente à família brasileira, que seria o público legítimo do futebol e também um instrumento de pacificação dos estádios”¹¹.
¹ RODRIGUES, José Carlos. O rei e o rito. Revista Comum, v. 1, p. 16-29, 1982, p. 78.
² Ibidem, p. 80.
³ DA COSTA, Leda Maria. Os Vilões do Futebol: Jornalismo Esportivo e Imaginação Melodramática. Editora Appris, 2021, p. 70.
4 HELAL, Ronaldo. A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro. Revista Alceu, v. 4, n. 7, p. 19-36, 2003, p. 19.
5 Ibidem, p. 30.
6 Futebol em paz. (página não encontrada)
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.
¹º LOPES, Felipe Tavares Paes. Discursos sobre violência envolvendo torcedores de futebol: ideologia e crítica na construção de um problema social. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2012, p. 55.
¹¹ Ibidem, p. 149.
Referências Bibliográficas:
DA COSTA, Leda Maria. Os Vilões do Futebol: Jornalismo Esportivo e Imaginação Melodramática. Editora Appris, 2021.
HELAL, Ronaldo. A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro. Revista Alceu, v. 4, n. 7, p. 19-36, 2003.
LOPES, Felipe Tavares Paes. Discursos sobre violência envolvendo torcedores de futebol: ideologia e crítica na construção de um problema social. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2012.
RODRIGUES, José Carlos. O rei e o rito. Revista Comum, v. 1, p. 16-29, 1982.