Desafios na luta pelos direitos do torcedor

Dia primeiro de abril de 2024, completou-se 60 anos da data de início da ditadura civil-militar brasileira, período sombrio da nossa história em que estávamos muito distantes dos direitos democráticos. Durante a ditadura civil-militar brasileira, o futebol foi utilizado como uma plataforma de difusão de ideias nacionalistas, principalmente, na Copa de 1970, após o AI-5 em 1968, quando houve maior repressão à sociedade e às figuras influentes que se mostravam críticas ao regime. No futebol não foi diferente. Equipe técnica e jogadores sofreram repressão e vigilância, entre eles é possível citar João Saldanha, Reinaldo, Afonsinho…

Fonte da imagem: CBF

Para além das iniciativas individuais, o período da ditadura civil-militar também foi marcado por movimentos de crítica ao autoritarismo e defendiam a valorização da democracia. Temos o famoso exemplo da Democracia Corintiana, a partir de 1982, majoritariamente fomentado pelos jogadores do clube. Também é possível citar mobilizações torcedoras, como a torcida Coligay, de 1977, que desafiava a lógica da masculinidade e eram vigiados. “Apesar de não haver menção a repressões contra a TO, o policiamento se mostrava atento a suas atividades, pronto a controlá-lxs se necessário fosse.” (Anjos, 2018, p. 183). Outro movimento de torcedores durante foi o Fla Diretas, um grupo de torcedores do Flamengo que defendiam as eleições diretas durante os anos finais da ditadura, no início da década de 1980.

Esses movimentos torcedores não são os únicos casos de relação entre futebol, política e garantias de direitos.  Durante a pandemia houve uma série de episódios em que apresentou a relação entre torcidas e política, os quais ficaram conhecidos como operação “fura bloqueio”. Apresentam uma organização política dos torcedores, “(…) o entendimento de “fazer política” de um torcedor antifascista não raro será diferente do significado atribuído por um torcedor organizado. No entanto, ambos, em seus contextos, nunca deixam de fazer política.” (CALDAS, P.; ANDRADE, M.; SOUZA JUNIOR, R., 2022, p. 77).

Essa organização política dos torcedores, por vezes chamada de ativismo torcedor (LOPES, 2023), é fundamental para a luta pela garantia dos direitos do torcedor. A vigilância e tentativa de controle dos torcedores não é um fenômeno recente, todavia, esse cenário se apresenta de modo mais complexo ao implementar a tecnologia de reconhecimento facial nos estádios.

No Brasil, a utilização de tecnologia com reconhecimento facial nos eventos esportivos começou a ser utilizada durante os grandes eventos ocorridos na década de 2010, com criações de centro integrado de comando e controle. A Lei Geral do Esporte (nº 14.597/2023) no seu artigo 148[1] estabelece que todos os estádios, com capacidade acima de 20.000 torcedores, deverão ter tecnologia de reconhecimento facial. É importante destacar que essa lei se refere a todas as arenas esportivas, não somente aos estádios de futebol.

Tecnologia de reconhecimento facial, que teve o Goiás como pioneiro, pode chegar a 45% dos times do Brasileirão
Fonte da imagem: Terra

A problemática da adoção dessa tecnologia advém de diferentes pontos, é possível citar:

  • A adoção amplia a lógica de vigilância e monitoramento, como retratado por Foucault (1997), panóptico enquanto uma ferramenta disciplinar.
  • O reconhecimento facial é divulgado como uma tecnologia neutra, porém, os dados apresentam uma alta taxa de erro com pessoas negras.

“(…) Segundo a pesquisa “Gender Shades”, conduzida por Joy Buolamwini e Timnit Gebru (2018), algoritmos de reconhecimento facial baseados em machine learning podem discriminar pessoas baseado em gênero e raça. Os resultados mostraram que a taxa de erros para mulheres negras chegou a 34,7%, enquanto o erro máximo para homens brancos foi de 0,8%.” (Nunes, 2022, p.40).

  •  Possibilidade de ter os dados pessoais vazados para empresas e o desrespeito à Lei Geral de Proteção de Dados (nº 13.709/2018).
  • Aumento da violação dos direitos do torcedor e de casos de violência institucional para com os torcedores brasileiros. Como ocorrido no sábado, dia 13 de abril de 2024, quando João Antônio, torcedor do Confiança, teve seu rosto reconhecido erroneamente pelas câmeras de reconhecimento facial no interior do estádio. Em sua rede social, relatou o constrangimento e violações sofridos em seu momento de lazer (disponível em:<https://twitter.com/joantoniotb/status/1779856876584268110>. Acesso em: 15 de abr. de 2024).

Esses são os pontos que refletem diretamente sobre o torcedor, sem contar na falta de transparência nos contratos com as empresas que atuam com dados tão sensíveis.

Esse campo da datificação dos torcedores se mostra como mais uma frente de atenção para os torcedores, torcidas (em todas suas formas de organização), que são movimentos sociais e possuem atuação política. Com o objetivo de manutenção de direitos em uma sociedade democrática.

Referências Bibliográficas:

ANJOS, Luiza Aguiar dos. De “são bichas, mas são nossas” à “diversidade da alegria”: uma história da torcida coligay. 2018. 388 f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Escola de Educação Física, Fisioterapia, Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

CALDAS, P.; ANDRADE, M.; SOUZA JUNIOR, R. Entre Torcidas Organizadas e Torcidas Antifascistas: considerações sobre as políticas do torcer e suas resistências. FuLiA/UFMG , Belo Horizonte/MG, Brasil, v. 7, n. 1, p. 52–81, 2022. DOI:10.35699/2526-4494.2022.35626. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/fulia/article/view/35626. Acesso em: 15 abr. 2024.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1997.

LOPES, F. T. P. Ativismo no futebol e estudos críticos: um ensaio sobre coletivos de torcedores. MOTRICIDADES: Revista da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana, São Carlos, v. 7, n. 1, p. 57–66, 2023. DOI: 10.29181/2594-6463-2023-v7-n1-p57-66.  Disponível em: https://www.motricidades.org/journal/index.php/journal/article/view/2594-6463-2023v7-n1-p57-66. Acesso em: 15 abr. 2024.

NUNES, Pablo. Vigilância da cor: a tecnologia de reconhecimento facial e sua utilização no Brasil. In: Tecnologia, Segurança e Direitos: Os usos e riscos de sistemas de reconhecimento facial no Brasil / organização Daniel Edler Duarte e Eleonora Mesquita Ceia. — Rio de Janeiro : Konrad Adenauer Stiftung, 2022.

Notas

[1] Art. 148. O controle e a fiscalização do acesso do público a arena esportiva com capacidade para mais de 20.000 (vinte mil) pessoas deverão contar com meio de monitoramento por imagem das catracas e com identificação biométrica dos espectadores, assim como deverá haver central técnica de informações, com infraestrutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente e o cadastramento biométrico dos espectadores. (Brasil, 2023).

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