Ataques racistas ao craque brasileiro não são fatos isolados causados por “rivalidade”, mas prática recorrente nos estádios espanhóis, há décadas contaminados por grupos neofascistas
O novo ataque racista contra Vinícius Jr. expôs mais uma vez a questão dos ultras, tipo de grupo organizado de torcedores mais comum na Europa, com raízes na Itália – politicamente identificado com correntes ideológicas ultranacionalistas, racistas e xenófobas. Mas como surgiram esses grupos? E por que é difícil combatê-los?
Embora o problema do racismo seja muito mais profundo e disseminado na sociedade espanhola do que apenas o futebol permite compreender – o que não nos permite resumir esses ataques racistas a esses segmentos organizados de torcedores –, é fundamental reforçar a existência desses elementos por dois motivos.
- Primeiro, porque são grupos organizados, com pautas políticas claras (dentro e fora dos estádios) que não deixam de se reproduzir e de ocupar esses espaços. O protagonismo desses grupos nas arquibancadas se dá pela base da força física e muitas vezes contou no passado com a conivência ou vista grossa dos próprios clubes.
- Segundo, porque são responsáveis há muito tempo pela naturalização de expressões discriminatórias e discursos de ódio dentro do ambiente do futebol. Sob a pretensa participação na desestabilização mental de adversários, esses grupos extremistas incitam torcedores comuns a também perderem o pudor e medo da justiça.
Já são nove casos de racismo contra o brasileiro Vinicius Jr. investigados por La Liga nessa temporada. Dos mais explícitos, graves e violentos, estavam os ataques nos estádios do Atlético de Madrid, do Real Betis, do Real Valladolid e, o mais recente do Valencia CF, ocorrido no domingo (21).
No estádio do Mestalla, Vini Jr. se dirigiu ao fundo de um dos gols e apontou para um torcedor do time local, que estava imitado um macaco para lhe agredir. Imagens publicadas de momentos antes e depois desse fato mostraram o uso repetitivo de ofensas racistas de todo o tipo partindo daquela mesma “grada”, dos ultras, muito comuns no futebol espanhol há um bom tempo. As quatro agremiações listadas estão em diferentes comunidades autônomas do país, o que já permite conceber a dimensão nacional do problema.
Embora a cultura de violência seja generalizada, registrando casos recorrentes de agressão, confronto e distúrbios, há alguns coletivos ultras mais identificados à esquerda e muitos outros que, no sentido contrário, reivindicam ser apenas “grupos de animação apolíticos”. Entretanto, o volume, presença e fatos protagonizados pelos ultras de extrema-direita são mais significativos e aparentam estar em processo de retomada.
‘Organizadas’ do ódio político
Antes de tudo, é preciso compreender e reconhecer que o futebol é apenas um dos variados espaços da vida cotidiana onde essas correntes políticas extremistas atuam para impor suas “ideias”, atiçar ignorantes, provocar sentimento de ódio em desalentados e capitalizar essa animosidade para fins eleitorais – enquanto colocam em risco a vida de inúmeros cidadãos.
No futebol, especialmente nos estádios, esse extremismo encontra um terreno fértil para a agitação política. Trata-se de um espaço privilegiado para se alcançar um público de homens jovens sedentos por emoção, rivalidade e violência e com a constante necessidade de afirmação da masculinidade. Uma porta aberta para a introjeção de uma ideologia baseada na intolerância.
Essa questão não é nem um pouco nova. Desde os anos 1970 a Europa testemunha a relação íntima entre grupos de torcedores violentos com movimentos e lideranças políticas ultra-nacionalistas, supremacistas e/ou abertamente fascistas. Apesar de observado em todo o continente, é em países como Itália e Espanha que esse fenômeno demonstra uma preocupante insistência (e consistência).
Há questões históricas que favorecem a reprodução dessas ideias, quando são países onde o próprio entendimento sobre o que é racismo é raso, onde o debate não atinge força midiática e onde o tema não ganha o devido suporte das principais organizações políticas. Contudo, o problema mais grave é a condescendência de quem poderia tomar atitudes mais enérgicas.
Atualmente se registram mais de uma dezena de “coletivos ultras” que declaram abertamente um alinhamento a ideologias de extrema-direita, ligados a clubes de todo o país. Formam um variado espectro: tradicionalistas, ultraconservadores, ultranacionalistas, franquistas/neofascistas, neonazistas, regionalistas, centralistas… Diferentes em alguns aspectos, mas todos centralmente conectados pelo ódio a imigrantes, pelo racismo explícito, pela islamofobia, pela xenofobia e pela paranóia “anti-modernidade”.

No caso do Valencia, estamos falando do grupo “Yomus”, famoso por registros de manifestações neonazistas e por entoar cânticos franquistas (o regime fascista que dominou a Espanha entre 1936 e 1975). Características políticas parecidas vistas com “Frente Atlético”, “Supporters Gol Sur” (Betis) e no antigo “Ultras Violeta” (Valladolid), coletivos ultras dos outros casos mais graves de racismo contra o brasileiro, anteriormente mencionados.
A Yomus esteve enfraquecida nos últimos anos, como ocorreu a diversos grupos do tipo – após aumento da exposição, da criação de políticas públicas e quando alguns clubes resolveram tomar vergonha na cara e agir –, mas há alguns anos começaram a retomar o controle da “grada de animación” – o setor ao qual se dirigiu Vinicius Jr.
Por isso é importante observar que quando esses agrupamentos vão ao estádio e cantam músicas racistas, eles não agem (apenas) por rivalidade clubística. Mais do que agredir, eles buscam “exercer o direito” de ser racista e convencer os demais “espanhóis originais” – brancos, cristãos e conservadores – de que isso é normal, parte do modo de vida local e que essa é uma forma de “defender a Europa”.
Segundo Carles Viñas, historiador que é professor da Universidade de Barcelona e autor do livro “El Mundo Ultra: los radicales del fútbol español”, lançado em 2005, a relação atual desses grupos com partidos institucionalizados ainda é desconhecida ou de difícil comprovação, mas são incontáveis as ocasiões de manifestações públicas, protestos ou contraprotestos onde esses grupos de extremistas estiveram presentes, inclusive promovendo ataques violentos.
Nos anos 2000, dada a proporção e força que esses grupos ganharam nas “gradas de animación”, Barcelona e Real Madrid tomaram medidas mais agressivas de banimento contra as suas versões internas de extremistas de arquibancada (Boixos Nois e Ultras Sur, respectivamente).
É certo que esse processo também visava e se inseria na transformação dos estádios e a substituição do público dessa “grada”, para priorização de um público turista, mas também servem de exemplo de como os clubes podem atuar por conta própria, de modo a alterar a correlação de forças nas suas arquibancadas – considerando que são diversos e plurais os grupos que compartilham esses setores, dentre os quais podem conviver grupos alheios a essas correntes extremistas.
Aparentemente, os proprietários de alguns desses clubes temem atrair para si a responsabilidade e as consequências de identificar e combater esses agrupamentos extremistas. Razão pela qual é tão comum ver esses sujeitos desfilando suas bandeiras, símbolos, gestos e cânticos ofensivos, como locais ou visitantes, como mostram exemplos recentes da Ligallo (Zaragoza) em visita ao estádio do Osasuna; ou da Frente Atlético entoando canções franquistas no estádio do Rayo Vallecano.
A própria Yomus é famosa por fazer ataques xenófobos e racistas contra Peter Lim, o proprietário singapuriano do Valencia, quando comparecem aos recorrentes protestos da torcida exigindo a sua saída. Por conta disso, de modo a tentar se afastar desses elementos, os diversos outros grupos de torcedores realizam manifestações separadas, alterando as palavras de ordem, como, por exemplo, na troca do lema “Lim Go Home” por “Meriton Out”, nome da sua empresa.
Por outro lado, em que pesem as notas e medidas sempre anunciadas pela Real Federação Espanhola, por La Liga ou por distintos órgãos do poder público, há uma curiosa dificuldade em tratar o assunto com a seriedade que merece: não se trata de um punhado de moleques racistas irresponsáveis, mas de agrupamentos politicamente coesos, organizados, estimulados e por vezes financiados para atuar como milícias capazes de exercer a violência física, munidos de ideias muito claras sobre o que almejam por modelo de sociedade – e quais segmentos desejam ver excluídos dela.
Também é recorrente (e talvez conveniente) da parte desses órgãos a teimosa e contraproducente tentativa de estabelecer equivalências entre as ações desses grupos caracterizados pelo racismo e pela xenofobia, com o envolvimento de outros grupos em confrontos violentos sem objetiva motivação política.
Javier Tebas combate… a vítima
Uma parte dessa história não precisaria ser destacada, não fosse a lamentável postura de Javier Tebas, presidente de La Liga, em reagir aos acontecimentos no Mestalla atacando exatamente Vinicius Jr. De forma inconsequente, jogou gasolina na fogueira ao sugerir que o brasileiro exagera e que as medidas tomadas até aqui já bastam.
Artigo publicado originalmente no site do GE, em 22/05. O texto na íntegra pode ser acessado aqui.