Por César R. Torres [1] e Francisco Javier López Frías [2]
A Federação Internacional deste esporte proibiu as mulheres transgênero de participarem na categoria feminina. Se em outras modalidades a justificativa foi o contato físico, neste caso o motivo é inviável. A via sociocultural também parece ser a única explicação para a segregação das competições de xadrez por sexo.
No dia 14 de agosto, a Federação Internacional de Xadrez (FIDE) anunciou publicamente as decisões que o seu conselho executivo havia tomado em reuniões realizadas em Baku, no Azerbaijão, duas semanas antes. A que mais se destacou foi a aprovação do regulamento que proíbe mulheres transexuais de participarem da categoria feminina das competições organizadas pela FIDE até que seu conselho analise e emita opinião sobre essas enxadristas/xadrezistas. Segundo a FIDE, cujo lema é Gens una Sumus (Somos uma família), “esta decisão deve basear-se numa análise mais detalhada e será tomada o mais rapidamente possível, num prazo não superior a dois anos”.
Com a sua recente regulação, a FIDE alinha-se com federações internacionais de esportes como atletismo, natação e rúgbi, entre outras, que proíbem atletas transexuais, nadadores e jogadores de rúgbi de participarem em competições femininas. Essas instituições têm justificado os seus regulamentos apelando para as vantagens anatômicas e fisiológicas residuais que as atletas transgênero teriam sobre os seus pares cisgênero. Estas ditas vantagens se traduziriam num desempenho esportivo inacessível para atletas cisgênero e, em esportes de contato físico intenso, como o rúgbi, implicariam um aumento incomum no risco de lesões. Por sua vez, tudo isto reduziria as oportunidades competitivas para as atletas cisgênero.
Ao contrário das instituições mencionadas no parágrafo anterior, e independentemente da razão das suas justificativas para proibir a participação de atletas transexuais na categoria feminina, a FIDE não fundamentou a sua decisão a respeito. Levando em conta as características do xadrez, é inviável apoiá-la nessas justificativas. Afinal, como disse o escritor Abelardo Castillo, o xadrez é um jogo que implica “a abstração total dos corpos” e manifesta “um universo abstrato”. Da mesma forma, as Nações Unidas proclamam que o xadrez tem um “caráter intelectual”.
Isto diferencia-o dos esportes, que testam principalmente um conjunto de capacidades físicas e, portanto, invalida os argumentos utilizados no xadrez. Se o físico for indiferente no xadrez, as jogadoras transgênero não se beneficiariam do suposto desempenho superior possibilitado por suas vantagens anatômicas e fisiológicas residuais. Por outro lado, não há risco de lesões porque o xadrez não requer contato físico. Assim, o apelo a critérios anatômicos e fisiológicos para exclusão de mulheres transexuais da categoria feminina não é uma opção viável para a FIDE.
Esta instituição teria que apontar razões socioculturais não só para justificar a regulamentação que proíbe a participação de enxadristas transexuais na categoria feminina, mas também para demonstrar a conveniência de segregar as competições por sexo. Poderíamos então argumentar que, historicamente, o xadrez tem sido um jogo dominado por homens. Desta forma, deveria indicar que tanto as sociedades como as comunidades de xadrez promoveram, direta e indiretamente, a participação dos homens e minaram a das mulheres. Este descaso teria gerado uma diferença significativa, pelo menos em nível estatístico, entre os sexos. Se, de forma consistente, mais jogadores de xadrez masculinos do que femininos tiverem desempenho ao mais alto nível por razões socioculturais, seria justificado segregar as competições por gênero para garantir que as conquistas das mulheres sejam encorajadas, reconhecidas e celebradas.
Afinal, criar espaços onde as mulheres brilhem demonstrando seus talentos é um dos principais propósitos da segregação por sexo nos esportes e em jogos como o xadrez. Consequentemente, a FIDE poderia argumentar que algumas jogadoras de xadrez transexuais teriam vantagens socioculturais por terem se desenvolvido no jogo como homens e se beneficiado das muitas oportunidades de que os homens desfrutam. Evitar que estas vantagens socioculturais residuais prejudiquem as jogadoras de xadrez cisgênero, que não desfrutam das condições favoráveis ??de que gozam os homens, justificaria o regulamento recentemente aprovado.
Se seguir o caminho sociocultural, e considerando que tanto a justificativa para proibir xadrezistas transgêneros de participarem da categoria feminina quanto para segregar competições por sexo se basearia em fatores relacionados às práticas sexistas predominantes, a FIDE deveria implementar pelo menos três ações interrelacionadas. Primeiro, demonstrar que existem diferenças estatisticamente relevantes entre o desempenho de homens e mulheres no xadrez. Em segundo lugar, fazer um esforço institucional para identificar os fatores específicos que contribuem para essas diferenças de desempenho. Terceiro, em linha com os esforços políticos e sociais para gerar espaços mais igualitários nos quais todas as pessoas sejam bem-vindas, traçar um plano de médio prazo para neutralizar as forças que geram tais diferenças, a fim de alcançar uma situação futura em que a segregação por sexo seja desnecessária.
Fora da esfera sociocultural, parece não haver razões nem para justificar a regulamentação que proíbe a participação de enxadristas trans na categoria feminina, nem para segregar as competições por sexo. A única maneira seria afirmar que os homens são inerentemente superiores às mulheres nas habilidades que o xadrez testa, que segundo a teoria das inteligências múltiplas do psicólogo Howard Gardner está associada à inteligência espacial e lógico-matemática. Isto não seria muito diferente do que Aristóteles sustentou no livro IX da Investigação sobre animais, há mais de dois mil e trezentos anos.
Segundo o filósofo grego, “[o homem] realmente tem uma natureza mais perfeita” do que a mulher. Nessa altura do jogo, os argumentos naturalistas não são razoáveis. Lembremos do caso de Judit Polgár, a ex-jogadora de xadrez que, a partir de uma estimulação precoce e intensa, tornou-se em 1996 a primeira mulher a figurar entre as dez primeiras posições do ranking da FIDE. Com os incentivos, oportunidades e recursos certos, a geração de espaços de xadrez mais igualitários para todas as pessoas é um horizonte possível.
Também pode acontecer que a maior instituição de xadrez não tenha considerado completamente nenhuma destas questões e simplesmente segregada por gênero, porque é isso que tem sido tradicionalmente feito em esportes e jogos como o xadrez e os videogames. Em qualquer caso, apelar acriticamente à tradição é tão irracional como fazê-lo à natureza. Cabe à FIDE decidir se o seu próximo movimento regulatório será prospectivo e sensato, o que exige trabalhar para criar as condições necessárias que eventualmente tornem desnecessária a segregação por sexo, ou se ela se limitará, por conveniência ou inexperiência, por motivos inválidos ou desatualizados.
Texto originalmente publicado em Tiempo Argentino no dia 24 de agosto de 2023.
Tradução por: Breno França
Revisão por: Carol Fontenelle e Leda Costa.
[1] Doutor em Filosofia e história do esporte. Docente na Universidade do Estado de Nova Iorque (Brockport).
[2] Doutor em Filosofia. Docente na Universidade do Estado da Pensilvânia (University Park).