A cada Copa do Mundo temos nos deparado com algumas questões relativas à relação entre futebol, identidade nacional e mídia. A primeira diz respeito ao envolvimento dos brasileiros durante o evento. A publicidade insiste na ideia de que ficamos todos de mãos dadas, irmanados em um só coração, como na canção célebre de 1970. Só que ao invés de 90 milhões, somos agora quase 210 milhões. A outra insiste em afirmar que o sucesso ou o fracasso da seleção tem influência nas eleições presidenciais que ocorrem cerca de três meses após o evento.
O sucesso da Copa do Mundo se deve, em grande medida, ao fato de todos nós “fingirmos de conta” que se trata de um duelo entre nações. Ou conforme colocou o antropólogo Pablo Alabarces, em conversa informal, trata-se da crença em uma “bobagem”, que fingimos levar a sério. As seleções se parecem com nações, mas não o são.
Imaginemos, por exemplo, que a Copa fosse somente uma competição reunindo os melhores jogadores do planeta. Provavelmente teríamos um torneio repleto de lances estéticos que seriam apreciados pelos torcedores. Hans Ulrich Gumbrecht, em Elogio da Beleza Atlética, já afirmou que um dos fascínios do esporte residiria na beleza dos corpos em movimento. No entanto, apesar deste ingrediente de beleza, seu êxito não seria tanto. Queremos ver, por exemplo, um duelo entre Argentina e Inglaterra, principalmente pós-guerra das Malvinas, como em 1986. Ou então, uma “batalha” entre Estados Unidos e Irã (imagine contra a Coreia do Norte!). O evento Copa do Mundo estimula os nacionalismos, com hinos nacionais, bandeiras e uniformes relacionados às respectivas pátrias.
Mas e a seleção brasileira, seria ainda a “pátria de chuteiras” conforme colocou o dramaturgo e cronista esportivo Nelson Rodrigues no final dos anos 1950? Esta era uma questão que não seria possível sequer ser levantada na época. A seleção era vista, de fato, como a “pátria de chuteiras”. Em um período de consolidação do estado-nação brasileiro, a derrota em 1950 foi vivida como uma derrota de projeto de nação brasileira, e o tricampeonato em 1970, como triunfo de um país que estava “dando certo”. A equação seleção brasileira-nação se fazia mais presente tanto para os atletas, quanto para dirigentes, torcedores e jornalistas.

A partir da década de 1990, com o fenômeno conhecido como globalização, trazendo consigo a fragmentação das identidades, a desterritorialização dos ídolos, e a seleção nacional formada por atletas atuando em equipes europeias, o epíteto “pátria de chuteiras” se esmaeceu, ainda que a publicidade insista em potencializá-lo. O que temos, hoje em dia, são torcedores bissextos que acompanham a seleção a cada quatro anos e que a veem como a “pátria de chuteiras”, ainda que com menos intensidade do que na época de Nelson Rodrigues. A paixão clubística superou a paixão pela seleção. E o uso da camisa amarela passou a ganhar contornos políticos nas manifestações recentes, causando uma cisão entre os torcedores.
E qual a relação entre as vitórias e derrotas da seleção brasileira em Copas do Mundo e as eleições presidenciais? A história tem comprovado que a relação é nenhuma. Senão vejamos. Em 1998, a seleção perdeu a final para a França por 3 a 0. O então presidente Fernando Henrique Cardoso se reelegeu, vencendo as eleições no primeiro turno. Em 2002, a seleção se consagra pentacampeã e Lula, candidato da oposição, se elege presidente. Em 2006 e 2010, a seleção caiu nas quartas de final e a situação continuou no poder. E em 2014, com a Copa no Brasil, a seleção é derrotada na semifinal por 7 a 1 para a Alemanha e, contudo, a presidente Dilma Roussef se reelege presidente.
O mais interessante é observar que os resultados da seleção em Copas do Mundo não entram nos debates e na agenda política. No entanto, continua a soar como opinião culta a crença de que os brasileiros são manipulados em decorrência dos resultados da Copa do Mundo.
Artigo publicado em O Globo em 28 de abril de 2018 (on-line e impresso).