Frequentemente lemos na imprensa e em crônicas de articulistas esportivos que o futebol brasileiro teria um estilo único, inigualável, denominado “futebol-arte”. Alguns ainda alegam que este estilo estaria correlacionado a outras manifestações culturais do país como samba e capoeira e lamentam que atualmente estaríamos nos distanciando daquilo que seria “nossa raiz cultural”.
Suspeitamos que a “construção” deste suposto “estilo” de jogar futebol que seria típico dos brasileiros começou a ser elaborado e consolidado a partir do artigo “Foot-ball Mulato” de Gilberto Freyre, em 1938. A crença neste estilo se relacionaria também com o pensamento de que o drible teria sido uma invenção de nossos atletas negros e mestiços.
Mário Filho, em O Negro no Futebol Brasileiro, relata que logo no início do profissionalismo, em 1933, os árbitros teriam sido mais rigorosos com os negros e mestiços, marcando infrações sempre que estes tocavam em um atleta branco e não as marcando quando brancos cometiam faltas em negros. Apesar de este ser um relato plausível, não há evidências de que o drible tenha surgido a partir daí. Observemos que a palavra é inglesa e é utilizada em todos os esportes de equipe em que um atleta precisa ultrapassar o outro com uma bola. Mas a crença de que somos os inventores do drible é forte e tende a persistir. Ela ajudaria a nos tornarmos únicos e singulares aos nossos olhos e aos olhos dos estrangeiros, já que o futebol brasileiro é denominado na Argentina, por exemplo, um de nossos rivais mais tradicionais, como “jogo bonito”.
Além disso, a atribuição desta “invenção” aos jogadores negros possui uma conotação aparentemente transgressora, revolucionária, e poderia redimir o país dos danos causados pela escravidão. No entanto, não se percebe que geralmente se atribui aos negros contribuições significativas para a cultura somente em termos estéticos, como futebol e música, por exemplo. O perigo que se corre com esta argumentação seria o de cair justamente em racismo, já que não se enfatizaria a contribuição de negros para a razão instrumental, para a ciência e o saber.
O que de fato podemos comprovar é que houve um período em que o país produziu seleções nacionais com jogadores considerados extraordinários e que eram, em sua maioria, negros e mestiços. Isto justamente no período de consolidação dos nacionalismos – de 1938 a 1962. Jogadores como Leônidas da Silva, Zizinho, Didi, Garrincha e Pelé, só para citar alguns. A partir deste dado, o que temos são inferências sem comprovações. Porém, este dado – grandes jogadores negros e mestiços – somado ao clima da época – consolidação e fortalecimento do estado-nação e do integracionismo no país – foram determinantes para o êxito da crença.
Hoje, diz-se que abandonamos nosso estilo e que o Barcelona o copiou e o coloca em prática. Ora, por que razão então teríamos abandonado algo que nos fazia sentir únicos e melhores do que os outros? Por que mesmo vendo o Barcelona nos “copiando” não retornamos as nossas supostas origens?
As crenças são boas para nos ajudar a pensar. Somos considerados um povo alegre e hospitaleiro e nos vemos frequentemente desta forma. Colocamos no argentino o rótulo de “soberbo” ou “arrogante”. Mas quando nos consideramos os inventores de um estilo “maravilhoso” e vemos o Barcelona jogar o que seria o “nosso estilo de raiz” não estaríamos sendo um pouco “soberbos”?
Talvez fosse o caso de refletirmos um pouco mais e observar que costumamos dizer que a última vez que a seleção jogou o nosso estilo foi em 1982. Ora, já se passaram quase 33 anos. Deveria ter algo de errado aí. Como já disse em outras ocasiões, o que chamamos de nossa “essência” seria “exceção”. Se continuarmos a refletir em cima da referida crença, observaremos que existe quase um consenso na imprensa de que desde que Zico parou de jogar, no final de 1989, somente Romário, os Ronaldos e agora Neymar estariam no mesmo nível daquele. Não é estranho que em 26 anos apenas quatro jogadores teriam jogado nossa “essência”?
A partir destas reflexões poderíamos fazer um exercício de humildade e partir para uma pesquisa que buscasse investigar as causas de termos hoje somente um jogador considerado extraordinário – Neymar – enquanto nos anos 1980, por exemplo, tínhamos além de Zico, Sócrates, Falcão, Júnior, Romário em início de carreira etc. Será que isso teria a ver com o trabalho realizado nas divisões de base apontado por alguns jornalistas? E por que este trabalho iria preferir fugir da nossa suposta “essência”? Seria pelo fato de que a geração de 1980 não teria vencido uma Copa?
São questões boas para pensar e que podem render um bom projeto de pesquisa.