Na minha organização de envio de textos para os queridos amigos do LEME tinha pensado em discutir o que chamei inicialmente de falácia da meritocracia. Queria problematizar como o rebaixamento do Grêmio incomodou a imprensa esportiva uma vez que o clube tinha uma folha de pagamento muito elevada, supostamente a terceira da série A, e era cumpridor de suas obrigações. O esporte, que muitas vezes é utilizado para ilustrar a lógica da meritocracia em que os competidores partiriam de condições idealmente igualitárias, parece não admitir o fracasso dos “ricos” (a falta de títulos do Flamengo em 2021 também entraria na escrita). Mas não, este texto não sairá agora. Assim como não se jogou o Grenal no último sábado, 26 de fevereiro, este texto está suspenso, adiado ou será mandado para algum julgamento em instância competente. Um ditado muito comum e recorrente é que “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Paradoxalmente, é impossível dizer esta frase sem usar as palavras. Com essa armadilha da linguagem precisarei escrever um texto para não o escrever.
Durante a semana anterior ao clássico conversei com meu amigo José Paulo. Trocamos curtas provocações sobre o clássico. Na realidade como estávamos muito desconfiados do início de temporada dos nossos times, o Grêmio, recentemente rebaixado e já com troca de treinador, e o Internacional, com um novo treinador que não consegue boas atuações no fraco campeonato estadual, mais colocávamos o favoritismo no adversário do que qualquer outra coisa. É uma estratégia comum para justificar uma eventual derrota. Com o professor Diogo retomei nossas apostas. Entre nós, antes da pandemia, Grenal valia vinho. Ele ainda me deve um, tivemos uma boa hegemonia nos últimos anos, então meu risco era muito pequeno, mesmo com o que joga esse time do Grêmio. Infelizmente, tive minhas brincadeiras com meus amigos adiadas.
No sábado, pouco antes de chegar ao estádio Beira-Rio para disputa de mais um Grenal, o ônibus com os atletas, trabalhadores, do Grêmio sofreu um ataque e uma das pedras atiradas acabou rompendo o vidro e acertando o paraguaio Villasanti que precisou ir ao hospital. Após adiar o jogo por 2 horas, a Federação Gaúcha de Futebol, o Sport Club Internacional e o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense decidiram suspender a partida naquela data. O presidente gremista não quis participar da coletiva conjunta com o rival e a federação por discordar da narrativa do adversário.

Esse foi mais um dos “cotidianos” casos isolados de violência no esporte brasileiro. Somente na semana passada foram quatro contra jogadores, três dos quais contra jogadores do mesmo clube dos torcedores agressores. Faço esse registro pela curiosidade, não para autorizar a violência entre adversários. Não é nenhuma novidade que a violência é uma importante forma de socialização entre os torcedores. Ela também é uma importante forma de socialização masculina. Aqui a formação dos torcedores e dos homens acaba acontecendo concomitantemente. Desde a década de 1990 os estudos sobre violência e o torcer fazem coro contra a criminalização das Torcidas Organizadas. Das TOs sempre se escuta que se deve punir o CPF e não o CNPJ. Sim, me parece que ainda é necessário trabalhar contra a criminalização desses coletivos. Entretanto, me parece que as instituições, sim, precisam ser responsabilizadas.
Sim, os clubes não são responsáveis pela segurança pública, mas me parece que a responsabilização deles por eventos praticados por suas torcidas e torcedores pode ter um produtivo efeito pedagógico. Antes que alguém possa imaginar que se trate de um gremismo enrustido já deixo o link para o texto em que solicito que o Grêmio, clube que eu torço, fosse punido por invasão de campo e racismo. Segue valendo, ainda mais para o novo caso flagrado no último Grenal. Torcedores do Brasil de Pelotas expulsaram um torcedor com símbolos nazistas das arquibancadas sabendo que o clube poderia ser punido. Por que os torcedores do Grêmio não denunciam ou expulsam os torcedores que insistem em reproduzir os xingamentos racistas? Por que os torcedores do Internacional não evitaram que um dos seus atirasse a pedra? Ou a pedra só foi noticiada porque rompeu o vidro do ônibus?
Juridicamente posso estar falando uma aberração, mas meu texto não é jurídico. Já fui acusado de pertencer a esquerda liberal punitivista por proposições como esta, mas me parece que algo precisa ser, no mínimo, tentado. Alguém poderá dizer, e eu concordei alguns parágrafos acima, que a violência não é nova, por que agora isso deveria ser feito? Primeiro porque nunca foi, não sistematicamente. Segundo, porque não se trata nem mesmo da tal cultura de “pista”, os trabalhadores estão sendo agredidos. Sim, existem aqueles que não lembram, mas jogadores são, antes de mais nada, trabalhadores. Além disso, poucas coisas são mais reacionárias do que não fazer nada escondido na complexidade, real, dos fenômenos. Com isso as agressões físicas, xingamentos racistas, homofóbicos e machistas continuem sendo ditos sem problemas.
Aos que quiserem argumentar que isso faz parte da “cultura torcedora” nem venham. A violência faz parte da cultura torcedora, sim, mas é de uma parte e concorre com outras. Cada processo histórico tolera algumas práticas e não tolera outras. Isso é sempre uma disputa, nunca um consenso. Mais do que qualquer coisa esse não texto serve para marcar minha posição. Estou entre aqueles que querem colocar essas violências como intoleráveis dentro da cultura torcedora.
Referências:
Violência no futebol: em 3 dias, capitais brasileiras têm 4 casos graves de agressões contra atletas