O abrigo deste meu texto talvez não devesse ser no Blog do Leme, porque de artigo, de estudo aprofundado, ele nada terá. Só mantive a intenção de escrevê-lo aqui, porque se trata de uma pensata que pode, no mínimo, servir de ideia para aqueles que queiram se aprofundar no tema.
A reflexão que aqui proponho parte de uma certeza minha e que, embora empírica, me parece extremamente comprovável. Não se assiste mais a um jogo de futebol como se costumou fazer durante décadas. Estar em um estádio, presenciar todos os lances e seus desdobramentos já não nos basta. Numa sociedade cada vez mais imagética, queremos ver, rever, buscar o que nossos olhos não captaram e isso está cada vez mais fácil. E não estou falando das dezenas de câmeras de alta definição espalhadas pelos quatro cantos dos estádios. Refiro-me às milhares de lentes de smartphones espalhadas nas mãos dos torcedores. Cada uma delas nos traz, mesmo sem o apuro técnico, novos ângulos repletos de intensidade, pois os acompanham a paixão e a esperança de registrar um momento que, fatalmente, tempos depois, esmaecerá na memória.

Fonte: ge.com
A final da Taça Libertadores da América de 2024, entre Botafogo e Atlético Mineiro, no dia 30 de outubro, é um exemplo muito claro. Estive, com outros mais de quarenta mil torcedores botafoguenses, no Monumental de Nuñez. Com a bola rolando, nenhuma chance de eu botar a mão no telefone para filmar ou fotografar qualquer coisa, mas estava cercado por esses cinegrafistas amadores que, não sei como, acompanhavam o jogo mais pela tela do celular do que através do contato visual com o gramado. Na hora das bolas paradas, então, esse número se multiplicava, sempre desejando registrar um gol que transformaria o autor da imagem, junto àqueles para quem mostrasse a imagem, num tipo de profeta, um indivíduo provido de um quê divinatório. Mas, é claro que o pênalti batido pelo lateral Alex Telles não concede tal distinção, afinal, nessas situações, o gol é previsível, embora nem sempre ocorra. Aquele, porém, foi convertido
Com o coração alegre e bem menos acelerado, à noite, pude, ao navegar por minhas redes sociais ter uma noção aproximada do que seria ter o dom da ubiquidade. Pude rever a cobrança perfeita como se estivesse sentado, ao mesmo tempo, em dezenas de pontos do belo estádio do River Plate. Sempre os mesmos passos em direção à bola, sempre a mesma batida que, como diriam os antigos, não deixou nem o goleiro sair na foto. Mas, aqueles eram outros tempos. Em todas as cenas do segundo gol do alvinegro carioca, o goleiro Ederson cai para o mesmo lado e depois despeja sua decepção “bicando” a bola para bem longe. Só que, por serem muitas, também mostram muito mais detalhes, reações dos reservas do Botafogo antes e depois da cobrança e dos torcedores de ambos os lados, por exemplo. Um componente emocional a mais que escapa totalmente àqueles que estão, naquele momento, “apenas” comemorando, como eu.
Outro lance que acabou sendo registrado em profusão, meio por acaso, foi o último gol da partida, aquele que sacramentou o título. Um gol improvável, mas que se beneficiou do momento no qual aconteceu. As câmeras e os câmeras registravam os derradeiros instantes do confronto para captarem o apito final do árbitro argentino Facundo Telo, quando a bola é lançada na ponta direita, para Júnior Santos. Ao invés de fazer o que mais se esperava, prender a bola junto à linha de fundo e deixar o tempo passar, o artilheiro da Libertadores dá um corte, se livra de dois marcadores, entra na área, tenta servir um companheiro, mas, no bate-rebate, a bola volta para ele sacramentar a conquista.
A partir desse momento, as lentes abandonam o campo e se fartam com cenas de emoção explícita. Eu, particularmente, não consigo conceber que alguém consiga continuar filmando naqueles momentos de êxtase que se seguiram, porém, são inúmeras as sequências de comemorações, lágrimas, risos, abraços e beijos. E não apenas em Buenos Aires; no estádio Nilton Santos e na sede de General Severiano, a mesma coisa.
Graças aos famigerados algoritmos, de sábado em diante, Instagram, Facebook, X e Thre@ds não param de inundar minha timeline com situações ligadas ao título. O que para mim, nesse caso, francamente, não é problema algum. São fragmentos de momentos pessoais, mas, ao mesmo tempo, o compartilhamento de um sentimento comum. Situações, a maioria delas, vividas a milhares de quilômetros de Buenos Aires. Vídeos como o de um rapaz cego desde os dez anos de idade escutando o irmão narrar para ele o gol do título; de um sujeito enlouquecido tremulando uma bandeira na cobertura do Niltão; de famílias inteiras vibrando, de senhores de idade revivendo glórias, de crianças descobrindo uma nova sensação. Cada um deles me faz arrepiar e chorar de alegria. É uma felicidade em modo loop.

Fonte: Botafogo/Instagram
Quando eu era adolescente, nos anos 1970, em meio à fase mais soturna de jejum de títulos, eram poucas as oportunidades de rever as parcas alegrias que o Botafogo me proporcionava. As opções eram correr para casa e assistir ao videotape na TV Educativa, com a vibrante narração de Januário de Oliveira, assistir ao Canal 100, no cinema ou, tempos depois, torcer para que alguma vitória alvinegra estivesse no roteiro de Gol, o grande momento do futebol, programa dominical da, então, TV Bandeirantes.
Chego até aqui sem a certeza de que tal relato pessoal tenha alcançado seu objetivo de estimular estudos em relação ao tema, mas, escrever essas linhas, ao menos, me serviu como reflexão, ainda que bastante passional. Apenas fiz o lançamento, cabe a um de vocês, leitores que chegaram até aqui, fazer esse gol.