Um recorte antes do “investimento” da mídia no Futebol Feminino: da proibição à realização da Copa do Mundo

O futebol é o esporte mais difundido no Brasil, representando um forte traço de identificação cultural mantido em um espaço predominantemente de reserva masculina. É uma modalidade praticada por diferentes classes sociais e diferentes idades. Joga-se em qualquer lugar, se chuta qualquer coisa e se joga a toda hora. Esse é o país do futebol.

 

Breve história das mulheres no futebol feminino do Brasil

De uma forma geral, na literatura esportiva, existe uma certa ausência de registros históricos do futebol feminino brasileiro, mas Franzini (2005) relata que um dos primeiros registros da participação feminina no futebol data de 1913, na partida entre os times dos bairros da Cantareira e do Tremembé, em São Paulo. Já Sugimoto (2003) e Morel & Salles (2006) descrevem que a participação feminina no futebol data de 1921, na partida entre as senhoritas tremembeenses x senhoritas catarinenses. Este acontecimento foi anunciado no jornal A Gazeta como atração curiosa das festividades de São João. Pouco tempo depois o futebol feminino chegou a ser exibido em circos, como atrações de curiosidades.

Podemos colocar também o jogo ocorrido em 1959 no estádio do Pacaembu, (jogo beneficente) entre as vedetes cariocas e paulistas (MOREL & SALLES, 2006; DARIDO, 2002). 

No Atlas do Esporte no Brasil é comentado a importância do futebol de praia e de salão na estrutura de formação do futebol feminino no Brasil, pois as mulheres circulavam e jogavam em praias, campos e quadras. As participações das mulheres no futebol de praia são apontadas em dezembro de 1975, partidas jogadas à noite por empregadas domésticas na praia do Leblon (DARIDO, 2002). Mas na revista Veja, segundo Darido (2002) uma matéria aponta o futebol feminino sendo organizado por diferentes boates gays no final da década de 70.

As mulheres desde o início do século XX vêm buscando espaço no futebol, mas como cita Devide (2005) este foi um espaço de reserva masculina. Em que as mulheres participavam somente como torcedoras, indo aos estádios somente para acompanhar as partidas sentadas nas arquibancadas, como cita Franzini (2005) pareciam “em exposição”. Por mais lutas e conquistas femininas no cenário do futebol brasileiro (especialmente no eixo Rio-São Paulo), as mulheres não conseguiam romper as barreiras traçadas muitas vezes por intelectuais do início do século XX, dentre eles o próprio Pierre de Coubertin, que era contra a participação das mulheres nas Olimpíadas, como mostra Goellner (2005).

A fragilidade feminina, desfeminilização da mulher era considerada como um afronte a estética feminina. Ali não era o espaço para moças, restavam então outras modalidades esportivas. Existe relatos de uma carta que foi enviada ao presidente Getúlio Vargas onde foi reclamada a participação da mulher no futebol por expor as moças a violência da modalidade prejudicando suas funções orgânicas podendo interferir na natureza maternal (FRAZINI, 2005).

Os uniformes eram outra barreira, acreditava-se numa vulgarização do corpo feminino. Embora existam relatos de várias partidas e torneios que foram realizados, o futebol sempre foi visto como um espaço de reserva masculina, além disso, a habilidade das jogadoras obviamente era diferente como é até hoje. Porém, essa diferença se deve a inserção do futebol pelos homens e a subordinação feminina tradicional segundo alguns historiadores. 

Tais discordâncias e emaranhado feudo futebolístico masculino culminou na criação de uma Lei embasada na medicina especializada da época, onde o Conselho Nacional de Desportos (CND) em seu artigo 54, do Decreto Lei 3.199, do ano 1941 proibia a participação da mulher nas práticas desportivas incompatíveis com sua natureza. Por tudo o que foi passado em meio século, a evolução da mulher no futebol tendia a ser aniquilada. Esse decreto somente veio a ser revogado em 1979.

A história do futebol no Brasil remete-se ao futebol masculino, que possui os primeiros relatos de partidas sendo jogadas por aristocratas e classe média. No Rio de Janeiro são Clubes de Regatas, advindo da modalidade elitizada Remo. Já o futebol feminino parece ter seu início nos guetos. Haviam partidas sendo disputadas por classe mais humilde e trabalhadora, às vezes escondido e muitas vezes recriminados por estereótipos de fragilidade da mulher. Será que este início não burguês pode ter influenciado na “consolidação tardia” do futebol feminino no país do futebol?

 

Fim da proibição e início da organização

Embora a última década tenha ganho força e espaço na mídia, o futebol é um esporte que ainda mantém uma cadeia simbólica tipicamente masculina.

Constata-se hoje uma determinada “profissionalização” do futebol feminino, mas essa história nem sempre foi assim. A trajetória das mulheres esportistas no Brasil, especificamente no futebol de campo, precisou transpor diversas barreiras de cunho biológico, cultural e legal (MOURÃO & MOREL, 2005; GOELLENER, 2005). O próprio Campeonato Carioca de Futebol Feminino data início em 1983 (WIKIPÉDIA, 2024), quatro anos após a revogação da lei desportiva 3.199/1941 (GOELLENER, 2005), que proibia a prática de esportes que “contrariassem a natureza feminina”, tal como o futebol.

Contudo, da década de 1980 em diante não houve uma sequência em termos de desenvolvimento das mulheres neste esporte. Por duas vezes o campeonato carioca foi interrompido por motivos financeiros e trocas de ligas organizadoras. As primeiras edições foram de 1983 a 1988, época na qual o Esporte Clube Radar sagrava-se Campeão. Após seis anos de interrupção, o evento voltou a ser disputado em 1995, sendo cancelado novamente em 2001, ainda que a seleção brasileira feminina estivesse se destacando internacionalmente. Somente em 2005 o Campeonato Carioca voltou a ser organizado e disputado com regularidade, a partir de 2008 voltou a ser organizado pela Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ) e não teve mais descontinuidade (WIKIPÉDIA, 2024).

O que prova uma busca organizacional que precedia a década dos megaeventos no Brasil, ao buscar sediar os jogos Pan-americanos de 2007, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 o país precisava se comprometer mais com a participação em igualdade de gênero em todos os esportes. No futebol em especial, uma jogadora, Marta Vieira da Silva, foi eleita melhor do mundo consecutivamente de 2006 a 2010, agregando/mostrando/comprometendo a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a se mexer mais. Observamos ao longo das últimas duas décadas esse compromisso aumentar, motivando os considerados clubes grandes, a investir na categoria feminina de futebol.

Foto 1: foto que homenageou Marta no estádio do Maracanã.

Dentre os fatores que contribuíram para a ausência ou falta de apoio às mulheres atletas de futebol podemos enumerar: 1) legislação, que proibia sua participação até sua revogação em 1979 ( MOREL & SALLES, 2006 ); 2) a diferença de habilidade motora para jogar futebol em relação aos homens; 3) o mito da fragilidade feminina, reforçado pelo discurso dos intelectuais no início do século XX; e 4) o discurso sobre a masculinização das mulheres, uma vez que a prática do futebol era associada somente à identidade de gênero masculina, contribuindo para aquelas mulheres que se sobressaem no esporte sofrerem preconceito e questionamentos em relação a sua orientação sexual.

Hoje podemos observar que a mudança de comportamento relacionado aos estereótipos midiáticos na prática do futebol feminino no Brasil vem alcançando uma maturidade, bem como, das associações e federações esportivas como um todo. Dissociar pré-conceitos estabelecidos para com as mulheres praticantes de futebol ainda é um estigma, mas observamos o quanto estas questões avançaram e fazem o futebol feminino crescer cada vez mais.

Os investimentos vêm cada vez mais ocorrendo neste sentido, sejam eles financeiros, midiáticos, de infraestrutura, de luta de classe, ou de outros; o fato é que as mulheres cada vez mais tem seu espaço no futebol, e mais do que merecidamente irão disputar uma Copa do Mundo de Futebol em casa.

Este anúncio foi feito em 17 de maio pelo presidente da Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA).

Foto 2: divulgação FIFA fonte: poder360, 2024.

Dos guetos à melhor jogadora do mundo e sediar uma copa do mundo de Futebol Feminina se passaram mais de um século. As mulheres valentes que abriram este caminho merecem muito respeito, carinho e nossa admiração, o fato é que até mesmo nas Olimpíadas somente em 1996 temos esta modalidade sendo disputada. Que agora este longo caminho percorrido pelas mulheres seja uma concepção de vitória plena para as futuras gerações.


Referências 

DEVIDE, Fabiano Pries. Gênero e Mulheres no Esporte: História das Mulheres nos Jogos Olímpicos Modernos. Rio Grande do Sul: Unijuí, 2005.

MOURÃO, Ludmila; MOREL, Marcia. As Narrativas sobre o Futebol Feminino: o discurso da mídia impressa. Rev. Bras. Ciênc. Esporte, Campinas, v. 26, n.2, p. 73-86, 2005.

DARIDO, Suraya Cristina. Futebol Feminino no Brasil: do seu Início à prática pedagógica.  Motriz, São Paulo, v.8, n.2, p. 43-49, 2002.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidade. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v.19, n.2, p.143-51, 2005.

JÚNIOR, Osmar Moreira de Souza; DARIDO, Suraya Cristina. A prática do futebol feminino no ensino fundamental. Motriz, São Paulo, v.8, n.1, p.1-8, 2002.

FRANZINI, Fábio. Futebol é “coisa de macho”? Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol. Rev. Bras. de História, São Paulo, v.25, n. 50, 2005.

WIKIPÉDIA. [2024]. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/campeonato_cacioca_de_futebol_feminino>. Acesso em: 12 ago. 2024.

Poder 360. (2024). Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-sportsmkt/brasil-e-escolhido-para-sediar-a-copa-do-mundo-feminina-de-2027/>. Acesso em 12 jul. 2024.

MOREL, Marcia; SALLES, José Geraldo do C. Futebol feminino. In: DA COSTA, Lamartine (org.) Atlas do Esporte no Brasil. Rio de Janeiro: CONFEF, 2006. 

SUGIMOTO, Luiz. Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa. Eva Futebol Clube, Campinas: 2003.

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