A pergunta do título deste texto animou a última pesquisa que realizei. Para respondê-la, acompanhei, durante o ano de 2022, a temporada esportiva das categorias de base das equipes de natação do Tijuca Tênis Clube (TTC), tradicional agremiação localizada no bairro que dá nome, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. O clube é conhecido no cenário competitivo nacional como um expoente na formação de atletas, tendo formado, ao longo das gerações, vários quadros importantes da natação carioca e brasileira.
Após 15 anos, o Tijuca volta ao lugar mais alto do pódio em uma competição adulta nacional de natação. O jejum acabou no Campeonato Brasileiro Sênior de Inverno 2024, realizado entre os dias 2 e 6 de julho em Recife, em que Caique Andrade se sagrou campeão na prova 100m nado Costas, com o tempo de 56.92s, sua melhor marca pessoal na carreira. Feito que se torna ainda mais significativo por se tratar de um atleta formado no TTC desde os 8 anos de idade, passando por todas as categorias de base.
Caique foi um dos atletas que acompanhei mais de perto em meu trabalho de campo. Durante a ocasião, ainda estava com 17 anos, competindo na categoria Júnior. Lembro de Caique contar em entrevista que vinha de uma sequência de resultados frustrantes em campeonatos brasileiros. O auge dessas frustrações talvez tenha sido uma amarga quarta colocação, em que esteve apenas um centésimo de segundo atrás do rival que conquistou o terceiro lugar. Mas, como sabemos, toda boa história no universo esportivo tem como ingrediente o elemento superação. Ter acompanhado parte de seu percurso recente e visto sua dedicação diária para evoluir como atleta, sabendo que este esforço teve como resultado um título nacional, coloca-me em posição privilegiada para refletir sobre o que está por trás de uma medalha de ouro. Porque apesar de apenas o atleta subir ao pódio, há toda uma rede de agentes que atuaram para criar as condições para a conquista.
A natação é um esporte extremamente simples em sua estrutura. Vence o mais rápido na prova. No entanto, criar as condições para uma boa performance é uma tarefa extremamente complexa. Dia após dia, os atletas caem na água com o objetivo de fazer pequenos ajustes em sua técnica corporal, visando melhorar sua performance. Por performance, na natação, deve-se ter sempre em mente um nado mais hidrodinâmico, isto é, um nado que une potência e técnica, para produzir mais deslocamento com menos atrito com a água. Isso torna o treinamento de nadadores extremamente repetitivo, pois a lógica está em repetir o nado à exaustão até encontrar a forma ideal de nadar a prova na competição. Como já afirmava o mestre Marcel Mauss, a técnica corporal é “um ato tradicional e eficaz” (Mauss, 2017, p. 427). Ou seja, um ato que parte de um saber prático, acumulado pela sociedade, passado ao longo das gerações e que se modifica com o tempo ao se aperfeiçoar para alcançar uma determinada finalidade. Nesse sentido, formar-se enquanto atleta não significa apenas aprender um conjunto de técnicas de uma modalidade específica, mas também saber como aplicá-las para um corpo que tem especificidades anatômicas.
Caique gostava de nadar o estilo Peito, mas em dado momento de sua formação, um dos treinadores do clube enxergou seu potencial para o nado Costas, mesmo que ele próprio não demonstrasse ter muita afinidade com este estilo. Em entrevista realizada no clube, em julho de 2022, Caique me contava o evento que mudaria sua trajetória no esporte.
Cara, quando eu entrei aqui, no Mirim, eu nadava Peito. E, tipo assim, não tinha a menor noção de Costas. Não tinha. Nem nadava Costas direito. E aí o André, mano, aquele professor ali, ele que falou “cara acho que você pode se dar bem no Costas”. E eu não tinha contato nenhum com Costas. Aí ele insistiu pra eu nadar e não tinha muitos nadadores de Costas na equipe, aí eu fui evoluindo fui começando a gostar, fui treinando mais, e aí quando eu vi já era meu estilo.
A intervenção do seu treinador na categoria Mirim foi fundamental. Os treinadores aprendem a desenvolver um olhar cirúrgico para os corpos dos atletas, observando quais provas e estilos podem ser mais adequados para as características de cada nadador. A partir daí, Caique se torna um atleta especializado no nado Costas. Mas por ser considerado por vários de seus treinadores como “um nadador completo”, também passa a competir em provas de medley, compostas pelos quatro estilos da natação: Crawl, Costas, Peito e Borboleta. Não por acaso, neste último campeonato brasileiro, além de se tornar campeão dos 100m Costas, conquistou o 9º melhor resultado do país nos 200m Medley.
Mas parte do meu argumento na pesquisa etnográfica que realizei com os nadadores do Tijuca Tênis Clube é de que a formação do nadador não compreende apenas uma formação técnica. Há uma dimensão moral inerente ao processo de formação, em que, para além de desenvolver seu corpo para uma modalidade específica, os atletas devem incorporar determinados valores socialmente prestigiados no universo esportivo competitivo. Na entrevista, questionei Caique se depois de toda uma infância e uma adolescência dedicadas ao esporte, ele achava que isso deixou alguma marca na sua personalidade e no seu jeito de ver o mundo.
Acho que uma coisa que marca muito é a disciplina né. Você ter uma disciplina ali é fundamental. Você ter que acordar todo sábado 5h e pouca pra vir treinar, cair na água em um dia frio. A gente já caiu na água aqui fazendo 13 graus. Toda sexta-feira você vê seus amigos saindo e você não pode ir porque sábado 6h da manhã você tem treino. Tem um amigo meu que falou hoje mesmo “pô toda hora eu te chamo e tu nunca pode”. Não tem uma vez que ele me chamou e eu não tinha competição ou treino no dia seguinte, seja sexta ou sábado. Ou véspera de competição importante e tal. E, querendo ou não, você estar no dia a dia em um esporte acaba mudando sua vida. Você não é qualquer um, você ganha uma bagagem. Você aprende a agir sob pressão. Sob pressão de você mesmo e dos outros. Porque, querendo ou não, quando eu nado tem 50 pessoas ou mais me assistindo.
Valores como a disciplina, ascetismo e perfectibilidade aparecem como elementos importantes para se tornar um atleta. Durante a pesquisa, uma frase do treinador de Caique me marcou muito. Ele sempre dizia que “para sorrir no pódio, tem que chorar no treino”. Frase que demonstra a lógica do sacrifício que subjaz ao campo esportivo. Seguindo ideias do filósofo Michel Foucault sobre os processos de subjetivação, pode-se pensar a formação esportiva como uma “tecnologia de si”, em que um dos fatores importante é a regulação que o próprio sujeito se impõe no “uso dos prazeres” (Foucault, 2021). Caique entendia que, em muitos momentos, era necessário abrir mão do que ele gostaria de fazer para poder se dedicar aos treinos. É natural que um jovem, na transição para a maioridade, queira sair para se divertir com seus amigos, ter momentos de sociabilidade, engajar-se nas primeiras experiências amorosas, ter o desejo de conhecer novos lugares. Mas é colocada aos atletas uma tensão entre esporte e vida social. Como o mesmo treinador do TTC afirmou em uma das muitas sessões de treino que acompanhei, “para ser campeão, tem que ser atleta aqui e lá fora”. É a troca que é oferecida ao atleta, sem nenhuma garantia de que receberá a vitória em retribuição aos seus sacrifícios pessoais.
Portanto, ser um campeão no esporte vai além do resultado. É uma espécie de postura que se aprende a desenvolver. Até porque, para a maioria esmagadora dos atletas, a carreira é feita muito mais de derrotas do que de vitórias. Tendo resultados bons ou ruins nas competições, eu o via se dedicando nas sessões diárias de treinamento. Na piscina, na sala de musculação, na fisioterapia. Aspectos que só quem acompanha o dia a dia do atleta tem acesso. Em oposição às representações midiáticas que tendem a enfatizar uma certa jornada do herói, em que o atleta aparece enquadrado em narrativas individualistas e meritocráticas, penso que ganhamos mais na compreensão antropológica e sociológica do esporte de alto rendimento ao pensarmos na “mundanidade da excelência” (Chambliss, 1989). Isto é, que os atletas de alta performance são pessoas comuns, que se formam enquanto profissionais através de um percurso longo, em que paulatinamente se aperfeiçoam em seu métier, através do auxílio de uma gama enorme de pessoas, que inclui familiares, amigos, rivais, treinadores, profissionais especializados, dirigentes, patrocinadores, rivais, etc. Todos eles estão no pódio, mesmo que não apareçam.
Vale ressaltar ainda que, em um esporte como a natação, em que detalhes fazem muita diferença, o corpo é racionalizado ao extremo. Isso demanda a intervenção de saberes científicos especializados e de tecnologias que possam auxiliar no desenvolvimento de um planejamento de treinamentos mais compatível com as especificidades do atleta. No entanto, o acesso a essas tecnologias e esses profissionais não é igual entre os clubes. Na verdade, a estrutura que o TTC oferece aos seus atletas e profissionais é significativamente inferior quando comparada a de clubes com maior poder de investimento, como Flamengo, Pinheiros, Minas Tênis e Unisanta. O que engrandece ainda mais o tamanho da conquista de Caique, mas também ajuda a explicar porque o TTC passou 15 anos sem um título nacional adulto.
É importante retomar essa discussão sobre a meritocracia no esporte de alto rendimento, pois, no contexto contemporâneo, em que esporte e ciência se aproximam cada vez mais, o acesso a melhores condições materiais e conhecimento especializado são fatores determinantes para a evolução dos atletas. O que ganha contornos ainda mais drásticos em um esporte em que o resultado pode ser definido na casa dos centésimos de segundo. Afirmar isso definitivamente não significa negar a dimensão do mérito individual do atleta em sua conquista. Esse mérito é real e é uma das coisas a serem mais valorizadas no esporte. Mas não é o único aspecto que explica o que faz um campeão.
Referências Bibliográficas
CHAMBLISS, Daniel. The Mundanity of Excellence: An Ethnographic Report on Stratification and Olympic Swimmers. Sociological theory 7.1, p. 70-86, 1989.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. 10ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2021.
MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Ubu Editora, 2017.