Escrito em parceria com Ronaldo Helal
Costumamos evocar os Jogos da Antiguidade Clássica sempre que desejamos referenciar o passado histórico dos Jogos Olímpicos Modernos. Um exercício mais proveitoso seria tentarmos entender primeiro o que era tal evento para os gregos antigos, para, em seguida, debatermos suas continuidades e rupturas com a modernidade.
Um relato do historiador grego Heródoto nos conta sobre o espanto dos invasores persas, no século V a.C., ao descobrirem que os gregos compareciam em Olímpia para disputar entre si o reconhecimento de seus pares, buscando a glória, e não riquezas. Sabemos atualmente, contudo, que os gregos não competiam apenas pela fama, mas também pelas recompensas tangíveis que estavam em disputa. Olímpia, localizada na península do Peloponeso, foi durante mais de mil anos tanto a sede quadrienal de festividades esportivas quanto um local de culto religioso para os gregos.
Dentre as narrativas míticas que cercam a origem dos Jogos Olímpicos, uma hipótese plausível correlaciona as disputas esportivas aos rituais funerários. O registro de comemorações esportivas em funerais provém usualmente da descrição de Homero na Ilíada, na qual consta que o herói Aquiles promoveu jogos em honra de seu amigo Pátroclo, morto pelo príncipe troiano Heitor.
Para os cidadãos gregos, a prática corporal era parte fundamental da vida cotidiana, tendo lugar nos ginásios e palestras. Não se tratava, entretanto, de uma atividade acessível a todos. A minoria dos habitantes da Grécia podiam se autodenominar cidadãos. Dessa lista, estavam excluídos, por exemplo, os escravos e as mulheres. O treinamento físico associado ao cultivo do intelecto era almejado pelas elites (daí a paidéia ou educação integral), pois entre os gregos valia a crença na beleza física como a manifestação exterior das virtudes morais de um indivíduo. Tal preparação físico-mental era colocada à prova em diferentes festividades que ocorriam com periodicidade bianual ou quadrienal.
A despeito da centralidade de Olímpia no mundo grego, outras cidades organizavam seus próprios Jogos, como era o caso de Neméia, Corinto, Epidauro, Platéia, Heréia, Delfos, Argos, Megara, Arcádia, Tebas, Egina, Rodes e Atenas. Os quatro maiores Jogos Pan-Helênicos recebiam as seguintes denominações: Olímpicos, Píticos (ambos quadrienais), Nemeus e Ístmicos (ambos bianuais). Tais acontecimentos mesclavam o aspecto religioso, de culto aos deuses do panteão, com o elemento agonístico, próprio das disputas atléticas. Durante o período de realização dos Jogos Olímpicos, as cidades-estado gregas encerravam momentaneamente suas desavenças bélicas, ainda que a “trégua sagrada” não tenha sido sempre cumprida. Tivemos, por exemplo, um episódio em 364 a.C. quando Pisa e Elis lutaram pelo controle de Olímpia durante os Jogos da 104ª Olimpíada.
A programação dos Jogos antigos incluía diversos tipos corridas, pentatlo (lançamento de disco, salto em distância, lançamento de dardo, corrida e luta), exercícios de luta e pugilato, esportes equestres (corridas de carruagens e corridas de cavalos montados), além de competições juvenis e disputas artísticas. Importante notar que se tratavam de esportes individuais. O conceito de esporte coletivo surge com os Jogos Modernos. O objetivo principal dos competidores em Olímpia era a vitória. Não havia, no entanto, a busca do recorde, uma vez que não se guardavam registros dos feitos anteriores. Todos os participantes prestavam juramento antes do início das competições, tradição resgatada na modernidade. O que pode nos parecer exótico é o fato de os gregos competirem nus. A nudez possuía uma conotação de civilidade para os gregos.

A partir da conquista romana, no século II d.C., os Jogos experimentaram uma mudança, voltando-se mais para o espetáculo em si, especialidade dos romanos, e abandonando progressivamente o teor religioso. Ao mesmo tempo, a religião cristã se espalhava pelos domínios do Império Romano. Inicialmente combatido, o cristianismo foi legalizado em todo território após a publicação do Édito de Milão pelo imperador Constantino, o Grande. O golpe final foi impetrado por Teodósio I, que tornou o cristianismo a religião oficial do Estado e, em 393, pôs fim às celebrações de cunho pagão. Assim, com base nos registros históricos, temos que os Jogos Olímpicos antigos perduraram de 776 a.C. até 393 d.C.
Recoberta em obscuridade ao longo de séculos, o sítio arqueológico de Olímpia foi “revelado” em 1766, durante as escavações do britânico Richard Chandler, um nobre de Oxford. Durante o século XIX, as escavações, conduzidas por franceses e alemães, se intensificaram. As descobertas em Olímpia despertavam a atenção e a curiosidade da opinião pública europeia, alimentando o filelenismo. Assim, nesse mesmo século, a ideia de reinstituir Jogos Olímpicos se disseminava pela Europa em cidades como Paris, Munique, Rondeau e Montfleury (França), Montreal, Nova Iorque, Leicester, Atenas e Subotica (Húngria). Dentre elas, destacam-se as iniciativas de William Penny Brookes, na Inglaterra, e Evangelis Zappas, na Grécia.
Pierre de Freddy, o barão de Coubertin, estava ciente desse ambiente de efervescência relacionado ao esporte e ao legado grego antigo. Entusiasta do esporte como instrumento pedagógico, Coubertin buscava também promover a educação física e moral da juventude mundial. Nesse contexto favorável, o barão francês apresentou sua ideia de recriação dos Jogos em dois momentos: 1892 (durante o quinto aniversário da União das Sociedades francesas de esportes atléticos) e 1894. Este último, divulgado como “Congresso Internacional de Paris para o estudo e a propagação dos princípios do amadorismo”, é visto como o marco histórico de reinstituição dos Jogos Olímpicos, pois ali ficaram definidas a formação de um Comitê Olímpico Internacional (COI) e a definição da primeira sede dos Jogos. A originalidade da proposta de Coubertin em relação às demais estava na abrangência geográfica – não se tratava de um evento local ou nacional, mas sim de uma empreitada com objetivos globais.
Atenas, berço da civilização grega, foi a escolhida para receber os Jogos da 1ª Olimpíada Moderna. Apesar de toda simbologia envolvida na escolha, a cidade não era a primeira opção de Coubertin, que preferia ver os Jogos debutarem em Paris, no ano de 1900, como parte das comemorações pela virada do século. O sucesso do evento em Atenas criou o primeiro empecilho entre o COI e uma cidade-sede. A Grécia manifestou publicamente seu desejo de se tornar sede permanente dos Jogos. Essa intenção, contudo, divergia frontalmente do objetivo primordial de Coubertin, que era ter as Olimpíadas como um evento internacional.
Os Jogos “ressurgem” mantendo alguns elementos que estavam presentes na antiguidade e introduzindo novas tradições, principalmente nas décadas de 1920 e 1930. Os dois pontos de convergência mais emblemáticos talvez sejam a ausência de participação feminina e a exigência do amadorismo, ainda que este último tivesse uma significação distinta na Grécia antiga. Pierre de Coubertin não aderiu originalmente à ideia de mulheres presentes nas competições atléticas como competidoras, o que só viria a ocorrer em Paris/1900. Quanto ao amadorismo, tem-se normalmente os Jogos de Barcelona/1992 como o momento de ruptura, quando o esporte abraça definitivamente o profissionalismo. As duas principais divergências colocadas pelo evento na modernidade encontram-se na laicidade das festividades e em sua mobilidade global.
Ao longo de seus 120 anos de existência, os Jogos Modernos resistiram a duas Guerras Mundiais, que interromperam temporariamente sua realização, aos boicotes de nações durante a Guerra Fria, marcadamente em Moscou/1980 e Los Angeles/1984, e a atentados terroristas, como o promovido pelo grupo Setembro Negro em Munique-1972. Por outro lado, as Olimpíadas sempre estiveram na vanguarda da introdução de novas tecnologias, desde as primeiras transmissões ao vivo, passando pelas imagens coloridas, envio de imagens via satélite, até a qualidade HD (alta definição) contemporânea. O evento olímpico não está assim apartado da história mundial. Ele é parte dela, ao mesmo tempo em que sofre suas influências.
Há, por certo, uma interface entre passado e presente na história dos Jogos Olímpicos, tanto no plano discursivo oficial quanto no senso comum. Porém, é equivocado crer que a modernidade apenas continuou a tradição antiga após um longo intervalo. Gostamos de organizar os fatos em uma perspectiva temporal, em pensar a história pelo viés do progresso inevitável, o que seria o caso da continuidade das Olimpíadas. As evidências, no entanto, nem sempre suportam essa vontade. O embate entre o desejo manifesto e a realidade factual interpõe-se na comparação entre as Olimpíadas do passado e sua mimese contemporânea. O trabalho do pesquisador é muitas vezes ser o “chato” que tira a graça das opiniões enraizadas no senso comum. Explicar os mitos, não deve, contudo, servir ao (des)propósito de retirar o prazer de assistir aos grandes momentos da história dos Jogos Olímpicos. Afinal, uma das experiências humanas fundamentais advém do ato de entregar-se descompromissadamente aos momentos de emoção proporcionados pelo esporte.
Este artigo foi publicado, em versão reduzida, no Caderno Especial “De Atenas ao Rio Olímpico” do Jornal O Globo, na edição de 15 de maio de 2016 do jornal ‘O Globo’. Clique aqui para ver a versão impressa do texto.