World Cup 2017: O estranhamento.

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Emile Durkheim (1858 – 1917), pai da Sociologia Contemporânea,  dizia que o sentimento de pertencimento a um grupo social (solidariedade) é um dos parâmetros delineadores da própria consciência individual do ser humano, em muito decorrente do entendimento sobre a sua função social. Assim, a experiência de sair de seu próprio núcleo social e “invadir” outro nicho, é deveras enriquecedora ao estrangeiro (aquele que estranha e é estranhado – the stranger). Este foi o caso deste relato pseudo-etnográfico.

Um público de aproximadamente 20 mil espectadores compareceu nos dias 7 e 8 de março de 2017 à cidade de Drammen, Buskerud, Noruega, para assistir à etapa do campeonato mundial de Ski Cross Country da FIS (Federação Internacional de Ski).

Foi a décima quarta vez que o evento ocorreu naquela localidade.

Chama a atenção a agilidade com que todo o aparato foi montado e desmontado para um evento de tal magnitude, que aconteceu em pleno centro comercial da pequena cidade, na praça central, em frente, ou melhor dizendo, ao redor da Catedral. A competição principal aconteceria na quarta-feira. Na sexta-feira anterior, nada havia. No sábado chegaram os trabalhadores com seus caminhões, tratores, a pista gigantesca desmontada… etc.

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Como São Pedro não colaborou, e a temperatura já estava subindo bastante (cerca de +3 C durante o dia), a neve que caíra forte durante toda a semana anterior havia derretido, e os caminhões trouxeram muita neve das montanhas vizinhas, especialmente de Kongsberg, para construir a pista de neve para a competição. Foi interessante ver toda aquela neve sendo desembarcada e transformada em um imenso lençol branco compactado. E, felizmente, após contatos imediatos entre Santo Olavo (o padroeiro da Noruega) e São Pedro, na segunda feira os termômetros voltaram a apresentar temperaturas negativas e voltou a nevar, fracas nevascas, mas o suficiente para abrilhantar o torneio, agradando a todos os presentes, exceto um brasileiro chamado Jair, que não gosta de frio e foi embora no meio da competição infantil, realizada na véspera da corrida dos atletas profissionais e, pasmem… na mesma pista que seria usada no dia seguinte. Seria como se, na véspera de um jogo importante no Maracanã, se liberasse o gramado para um torneio de pré-mirim e fraldinha.

A garotada, dos 4 aos 10 anos, competia para valer, enfrentando uma fila quilométrica para adentrar o palco onde se exibiam perante os orgulhosos pais munidos de câmeras e não se importando com o gélido vento que fazia a sensação térmica bater os -5 C. Os muitos bares ao redor da praça de Bragernes estavam obviamente lotados, durante o dia, em plena terça e quarta-feira. As bandeiras da Noruega eram vistas em toda parte. Alguns suecos desaforados e corajosos também exibiam suas cores. Os próprios noruegueses eram naturalmente portadores das cores suecas, pois são majoritariamente, louros de olhos azuis. Ironia do destino.

Como a estranha lei norueguesa proíbe o consumo de bebidas alcoólicas em lugares públicos, muitos deixaram de assistir à prole competir, pois o vinho, a aquavit e a cerveja estavam amplamente disponíveis apenas nos bares e restaurantes.

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A cervejaria mais antiga do país, a Aass – leia-se ‘aus’, sediada em Drammen, foi uma das patrocinadoras do evento. O atual ‘dono’ da cervejaria pertence à terceira geração, trabalha até hoje na fábrica, não aparenta os seus 80 anos. É um sujeito muito simpático, nem parece ser o milionário que é. Quando perguntado sobre o segredo de sua saúde e simpatia, ele responde que são os banhos de cerveja na banheira. Recomenda a todos. A sua fotografia na banheira de cerveja gelada está lá na parede, para comprovar. Mais sobre a cervejaria Aass em um próximo texto. Os dois únicos brasileiros, respeitadores das leis locais, apenas beberam ‘Pepsi’ durante o evento.

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Colaborou para a abstemia o fato de que uma cerveja de 500 ml em um bar custa R$25. Nos supermercados, uma latinha de 350ml custa R$10. Tudo isso graças ao altíssimo imposto cobrado por Sua Majestade. Na Inglaterra foi a mesma coisa. Os preços de tudo são altíssimos, em média 3 ou 4 vezes os de SP ou RJ. Ressaltemos que o salário de um trabalhador braçal é 18 mil krones (R$10 mil). Fica muito evidente como nós, sulistas, somos pobres…

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Voltando ao Ski: Na quarta-feira, acabara-se a brincadeira infantil e foi a hora da competição dos adultos. Os melhores esquiadores do planeta estavam lá. Vários recordistas mundiais e medalhistas olímpicos. Para a surpresa geral, nenhum sulamericano. Do hemisfério sul, apenas australianos.

Os escandinavos adoram esquiar. As criancinhas aprendem a esquiar quando aprendem a caminhar. Assim, os melhores espaços para assistir ao evento estavam ocupados desde cedo. Às 11 horas, quando os atletas começaram a competir, era impossível achar espaço para assistir de maneira decente. Coube aos retardatários alguns poucos vislumbres das rápidas passagens das baterias de esquiadores entre as cabeças do público à frente, e a visão do enorme telão que transmitia as imagens. Uma carismática bandinha tipo “charanga” de velhinhos vestidos em trajes nórdicos tentava fazer o não-alcoólico público esquecer o frio congelante. Um patrocinador servia chá quente gratuito. Outros sobreviviam graças à ‘pepsi’ milagrosa. No quesito bebida, é interessante destacar que os noruegueses bebem muito café. Estranhamente (the stranger, o estranhador), sempre café puro, “preto”, sem açúcar ou leite. Na maioria dos lugares pequenos, como nos quiosques do evento, nem sequer existia açúcar para botar no café. A solução foi botar a geléia que eles usam nos crepes (o crepe é outro artigo muito popular). Uma xícara de café puro custa 25 krones (R$ 8).

Na pista as baterias se sucediam e o público tinhas seus favoritos: Os noruegueses. Como a tradição de “mulheres e crianças primeiro” prevalece mundialmente, na véspera, primeiramente foram as crianças, no dia seguinte começou com as atletas femininas e os machos foram os últimos a competir.

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Como o esqui Cross Country é uma corrida, é muito fácil de acompanhar. A regra é: quem chegar primeiro na linha de chegada vence. Como em outras modalidades de velocidade, há o uso de equipamentos óticos para eventuais desempates. Recorreu-se às câmeras da linha de chegada várias vezes. Num lapso que os juízes não perdoam, um esquiador foi desqualificado ao “queimar” a largada. Lamentável. Imagine se no futebol um jogador procede ao “kick-off”, antes do apito… é expulso? Imagino que, a despeito da regra, nem será advertido com cartão amarelo…

Essa postagem vem mais para ilustrar uma pesquisa “não-acadêmica”, etnográfica, do estranhamento de práticas sócio-culturais e esportivas vivenciadas por este autor em terrras nórdicas. Tak.

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