O dia 3 de março é comemorado pela torcida do Flamengo como o Natal Rubro-Negro, pois é aniversário daquele que é o maior de todos os tempos da História do clube: Zico. É como se existisse um Flamengo antes dele e outro após. Referência fundamental do nosso futebol a partir de meados da década de 1970 até o final da década de 1980, a idolatria a Zico é constantemente celebrada pela torcida do Flamengo em imagens do atleta em bandeiras, camisas e nos coros de “Zico é nosso rei” , mesmo após mais de 33 anos de sua última partida oficial no Brasil.
Uma curiosidade em sua biografia nos chama a atenção. É uma história que fala da vitória através do trabalho e de uma sucessão de obstáculos que ele teve que superar. O esforço como elemento fundamental para se alcançar o sucesso costuma ser relegado a um plano secundário nos discursos dos cronistas brasileiros dos universos das artes e do futebol. No caso específico do futebol, chega a ser até uma crítica contundente chamar um jogador de “esforçado”. Esta é uma maneira de se dizer que ele não tem talento, porém se esforça. A forma oposta seria o talento puro, inato, que não precisaria de treino ou esforço para ser aprimorado, como se não fosse possível ser talentoso e esforçado ao mesmo tempo. A biografia de Zico fala de uma realidade calcada primordialmente no predomínio do esforço e da determinação como atributos fundamentais para se alcançar o sucesso e, assim, refuta uma suposta ideologia de sucesso cultivada no imaginário brasileiro.

É sabido que a ascensão de Zico sempre foi com muitos obstáculos no caminho, a começar pelo seu corpo franzino que quase o impediu de, aos 13 anos, fazer um teste no Flamengo. Por isso, logo após se firmar na escolinha, ele se submeteu a um tratamento árduo para estimular a musculatura
Esse procedimento a que se submeteu ainda bem jovem fez com que Zico ficou conhecido no início da carreira como “craque de laboratório”. Era como se fosse de um planejamento “científico”, com a ajuda de médicos, nutricionistas e modernas técnicas e aparelhos de educação física, surgisse uma grande estrela do futebol. Era o racional, o trabalho, unindo-se ao talento. No entanto, apesar das biografias enfatizarem especificamente a dedicação de Zico neste trabalho, à época a alcunha “craque de laboratório” era utilizada de forma pejorativa, significando um craque não genuíno, que fugiria das características “artísticas” do nosso futebol. Essa foi uma das primeiras provas que Zico teve que superar e evidenciar que sua idolatria surge ancorada também em características de sua personalidade.
Junito de Souza Brandão em seu livro clássico Mitologia Grega fala de “honorabilidade pessoal”, “excelência” e “superioridade em relação aos outros mortais” como virtudes inerentes à condição do herói. A “superioridade” de Zico sempre ficou evidente na forma como ele superou os desafios e os obstáculos da vida tanto quanto em seu talento extraordinário para o futebol. Nesse sentido, a narrativa em torno de Zico se enquadra no papel dos arquétipos universais dos heróis. Ela nos mostra que não basta o ato heróico em si, de forma isolada — no caso, como conquistas e os gols no futebol. O preciso herói preencher outros requisitos — tais como perseverança, determinação, luta, honestidade, altruísmo — para se firmar no posto. E Zico sempre os preencheu com bastante eficácia.

É comum ouvir que o Brasil não tem memória e esquece seus ídolos. Mas a idolatria a Zico e os festejos pelo seu aniversário nos mostram que a memória de Zico segue firme no universo da torcida do Flamengo. Não saberia dizer se isso seria uma exceção à suposta falta de memória do país, mas ouso afirmar que é Zico quem sempre foi exceção na união emblemática e necessária de talento e profissionalismo.
(Artigo publicado originalmente em 03 de março de 2023, no jornal O Globo .
Para acessá-lo: https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2023/03/zico-70-anos-uma-historia-de-vitoria-atraves-do-trabalho.ghtml)