
“Conheço pouco do esporte latino-americano e vim mais para ouvir e aprender”, assegurou o irlandês Michael Morris, conhecido como Lorde Killanin por seu título de nobreza, em uma coletiva de imprensa durante o décimo segundo congresso da Organização Desportiva Pan-Americana (ODEPA), organizado de 29 a 31 de maio de 1973 em Santiago do Chile. Killanin havia sido eleito presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI) no ano anterior, e aproveitou o convite para realizar uma extensa turnê pela América Latina, que incluía uma breve estadia na Argentina. Essa experiência, frustrada, constituiu a primeira visita de um presidente do COI em exercício ao país.
A turnê de Killanin, bem como sua ascensão à presidência do COI, tinham gerado grande expectativa no esporte regional. Ao contrário do seu antecessor, o americano Avery Brundage, a quem considerava um autocrata, Killanin era visto como um reformista. De fato, formalizou a estrutura tripartida do movimento olímpico, em que o COI, os comitês olímpicos nacionais e as federações desportivas internacionais trabalham em cooperação. Nesse sentido, antes de sua chegada ao Brasil em 21 de maio, o jornal Folha de S. Paulo o descreveu como tendo “ideias revolucionárias”. Além disso, naqueles dias, Killanin era apresentado como inteligente e irônico, e segundo a revista chilena Stadium, era “bonachão, simples, espontâneo [sic] e de bom humor”. A revista cubana Bohemia publicaria tempos depois que com Killanin “o COI experimentou uma saudável injeção de novos ares”.
Killanin permaneceu no Brasil, reunindo-se com autoridades esportivas e políticas no Rio de Janeiro e em Brasília, até 25 de maio. Nesse dia chegou a Montevidéu e visitou vários funcionários, incluindo o vice-presidente do país, já que o presidente Juan María Bordaberry se encontrava em Buenos Aires para a posse de Héctor J. Cámpora, que havia sido eleito em 11 de março com 49,5% dos votos sob o lema “Cámpora ao governo, Perón ao poder”. O venezuelano José Beracasa, presidente da ODEPA e membro do COI, e Fernando Madero, presidente do Comitê Olímpico Argentino (COA), haviam viajado a Montevidéu para acompanhar Killanin. No dia seguinte teve uma agenda intensa, com atividades que começaram às 9:30 e só terminaram depois das 22:30.
O plano original era que Killanin visitasse Buenos Aires em 27 de maio e dormisse lá para viajar até Santiago no dia seguinte. No entanto, Madero, em contato com Buenos Aires, não achou conveniente que o presidente do COI se hospedasse em solo portenho, ainda que brevemente, a dois dias da posse de Cámpora. Os motivos não foram esclarecidos, mas em um relatório escrito em agosto, Killanin explicou: “Minha visita coincidia com a investidura do novo Presidente Peronista. Obviamente, não era muito recomendável de minha parte ir à Argentina, onde minha presença só daria problemas adicionais à polícia”. Segundo seu relato, em Montevidéu foi designada uma guarda com uma dúzia de polícias à paisana. O que teria conjecturado Madero diante da massiva mobilização do peronismo, proibido desde 1955, no dia da assunção presidencial e da posterior libertação dos presos políticos das prisões argentinas, que deram início ao período conhecido como “Primavera Camporista”?
Enfim, Killanin partiu para Santiago no dia 28 de maio pela manhã. Faria uma breve parada em Buenos Aires, onde chegaria às 10:30 para pegar um voo para a capital chilena proveniente do Rio de Janeiro, que sairia às 12:55. No aeroporto de Ezeiza, o esperavam Madero, Mario Negri, membro argentino do COI, com sua esposa e filho, e Otto Schmitt, secretário geral do COA, com sua esposa. No entanto, o que deveria ter sido uma curta espera acabou sendo uma “breve” estada de oito horas. O avião do Rio de Janeiro se atrasou. Killanin admitiu ter recebido um tratamento preferencial: tomaram-lhe o passaporte para evitar filas no controle migratório, mas a gentileza produziria outro atraso. De acordo com Killanin, talvez justificando a mudança no programa original, nesse dia houve “bastantes tiroteios” em Buenos Aires, e pensou que aqueles que o acompanhavam não iriam querer chegar tarde a seus lares. Disse-lhes para não esperarem pela sua partida e recebeu de volta o passaporte. Mais tarde, quando passou pelo controle migratório, lhe informaram que não podia sair do país, porque não havia entrado formalmente. Isso atrasou o voo pelo menos mais uma hora, até que um oficial de maior patente se apresentou para confirmar sua entrada ao país pela manhã e sua saída à tarde. Decolou por volta das 18:30.
Killanin pôs os pés em Santiago tarde da noite e foi imediatamente recepcionado pelo prefeito da cidade. Pela manhã, assistiu à inauguração do congresso da ODEPA. Em seu relatório, ressaltou que Salvador Allende, o presidente chileno, impossibilitado de comparecer ao evento, lhe havia enviado uma placa comemorativa. Allende tinha estado em Buenos Aires para a posse de Cámpora e assistiu a um jogo de futebol entre Racing e Boca Juniors, no dia 27 de maio, junto do novo chefe de Estado argentino e com Osvaldo Dorticós, o presidente cubano. Ou seja, no dia em que Killanin deveria ter visitado Buenos Aires, aqueles três presidentes estavam em um estádio de futebol lotado por uma multidão, que os saudava. Enquanto isso, Beracasa preparava seu discurso no Congresso da ODEPA. Proferiria estas palavras, que certamente teriam sido do agrado de Cámpora, Allende e Dorticós: “A América é livre como quiseram seus pais, e é por isso que dentro do marco esportivo da Organização Pan-Americana não devem existir pressões nascidas de pequenos interesses ou de inconfessáveis atitudes antidesportivas”.
Ao fim do congresso da ODEPA, Killanin continuou a turnê latino-americana visitando Panamá, Colômbia e México. Na capital mexicana declarou: “Conheço os jovens; quando fui, quis revolucionar o mundo” e se promulgou “a favor de modificar os Jogos (Olímpicos)”. Na Argentina, seu espírito renovador só chegou ao aeroporto. Monique Berlioux, diretora-geral do COI, pediu a Negri que lhe enviasse recortes de jornais sobre a estada de Killanin no país, mas, com a mudança de data, a imprensa não havia sequer aparecido. Lamentando a situação, Negri resumiu o ocorrido: “Lorde Killanin não visitou Buenos Aires, por outro lado conheceu muito bem o aeroporto de Ezeiza (sic!)”. Enquanto Killanin permanecia nesse aeroporto, a sociedade mobilizada continuava festejando o fim da ditadura que havia governado a Argentina desde 1966. De qualquer forma, a “Primavera Camporista” ou que a América fosse livre ou subjugada, não teria feito diferença para Killanin. Em 1974, o movimento olímpico acolheu “ditaduras de esquerda e de direita, monarquias e repúblicas”. Para Killanin, ele estava acima dessas diferenças e unia todos os povos. Sua renovação não incluía esse aspecto do ideário olímpico”.
Texto originalmente publicado em relatores.com no dia 6 de março de 2023.
Tradução por: Júlio Barcellos.
Revisão por: Carol Fontenelle e Leda Costa.