A “bola” que rola fora de campo

No último dia 4 de abril, a Revista Piauí publicou uma matéria do jornalista Allan de Abreu trazendo denúncias sérias contra Ednaldo Rodrigues, presidente da entidade mais importante do futebol brasileiro, a CBF. Segundo a reportagem, o cartola, recém eleito com 100% dos votos do colégio eleitoral da entidade, que envolve as 27 federações e os 20 clubes da Série A e os 20 da Série B, estaria se beneficiando das verbas da confederação, que fatura com patrocínios e direitos de transmissão mais de um bilhão de reais por ano.

O site da revista, fundada pelo documentarista João Moreira Salles, irmão de Walter Salles, que recentemente ganhou o prêmio de  Melhor Filme Internacional no Oscar com o filme “Ainda estou aqui”, diz que ela tem o compromisso de apoiar o jornalismo crítico e apartidário. A Piauí é financiada com recursos de um fundo patrimonial doado ao Instituto Artigo 220, uma Associação Civil de direito privado e sem fins lucrativos. Sabe-se que a família Moreira Salles tem um patrimônio bilionário com participações no Itaú/Unibanco e  na Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM). 

No entanto, nem as “costas quentes” da revista, que se orgulha de ser “dona do próprio nariz”, impediram a reprimenda aos jornalistas Dimas Coppede, Gian Oddi, Paulo Calçade, Pedro Ivo Almeida, Victor Birner e William Tavares, da ESPN. O motivo? Eles repercutiram no programa ‘Linha de Passe’ algumas das denúncias publicadas pela Piauí, entre elas a de que a mulher, a filha, a cunhada, o genro, os netos e os amigos do presidente da CBF da política, do judiciário, da imprensa e das artes teriam assistido a Copa do Catar com direito a mordomias como passagens aéreas, hospedagem, alimentação e cartão corporativo para gastar livremente 500 dólares por dia. Tudo por conta da CBF. A reportagem ainda citou nomes de políticos e até do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, fundador do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), responsável por gerir os cursos para treinadores, preparadores físicos e gestores oferecidos pela  CBF Academy em troca de 84% da receita, que em  2023 foi estimada em 9,2 milhões de reais.

A parceria aparentemente duvidosa, também teria rendido outros benefícios, como a indicação de três funcionários de alto escalão para a CBF, uma filial da entidade em Brasília e a liminar que permitiu que Rodrigues reassumisse o cargo em meio  a  suspeição em relação ao processo eleitoral de 2022. O dirigente chegou a ser deposto do cargo em dezembro de 2023 e foi reconduzido no início de janeiro de de 2024 após decisão de Gilmar Mendes.  

A eleição para o mandato de março de 2026 a março de 2030, realizada no último mês de março, na véspera da partida em que a Argentina venceu o Brasil por 4 a 1, pelas eliminatórias da Copa de 2026, não foi questionada. Mas o reajuste de salários dos presidentes das federações de 50 mil para 215 mil reais além do décimo sexto salário deixam mais uma vez no ar a lisura do processo.

 

Foto: CNN Brasil

 

O baiano Ednaldo Rodrigues assumiu o comando da CBF com a missão de “expurgar toda e qualquer imoralidade” da confederação. A questão é que a desordem administrativa e financeira, incompatível com a formação contábil do cartola, além dos relatos de assédio e vigilância na sede da CBF também não são compatíveis com a intenção de moralidade. Aliás, moralidade é uma palavra que anda bastante desgastada na entidade proprietária de uma das principais “marcas” do mundo, a da Seleção Brasileira de Futebol, que não vence uma Copa do Mundo desde 2002. Mesmo sem fins lucrativos, a organização acumula superávits sem as devidas prestações de contas.

 

Foto: Globo

 

“…a  seleção brasileira, sobretudo, a principal masculina, é o principal ativo do futebol brasileiro, uma marca internacional, com um enorme poder de atração de capital, maior inclusive do que grandes clubes do futebol nacional e internacional. A paixão dos brasileiros pelo futebol e a admiração pela seleção canarinho são exploradas pelo mercado, em seus diferentes ramos, valorizando as marcas e criando uma identificação do torcedor com a empresa, ainda que isso não signifique a compra dos produtos” ( WB, MATIAS, 2020). 

O problema é que grandes  ‘marcas’ também estão sujeitas a terem sua imagem manchada. Dentro de campo, a Seleção Brasileira, cinco vezes campeã mundial, tem apresentado resultados bem abaixo do esperado. Desde a emblemática derrota por 7 a 1 contra Alemanha em 2014, os questionamentos em relação ao desempenho daquela que já foi considerada a maior equipe de futebol do mundo são sucessivos. A própria representatividade do futebol como elemento de construção da identidade social brasileira segundo a perspectiva acadêmica de Hall (2000, p.112) também estaria passando por um momento de crise por falta de identificação do torcedor com a “marca” seleção brasileira.

Em 2023, a seleção só venceu três das nove partidas que disputou. Em 2024, foram seis vitórias em 14 jogos disputados. Esse ano precisa confirmar a vaga para a Copa do Mundo de 2026. Após a 14ª rodada acumula 21 pontos e está na quarta colocação. A pouco mais de um ano da disputa do torneio mais importante do futebol mundial, a CBF ainda não contratou um treinador para substituir Dorival Júnior, que foi demitido e custava mais de R$1 milhão por mês aos cofres da CBF.

Fora de campo, os escândalos não param. Vale lembrar que os quatro presidentes anteriores tiveram envolvimento comprovado em crimes de corrupção. Ricardo Teixeira, que presidiu a organização por 23 anos, renunciou após ver seu nome envolvido em denúncias de vantagens em contratos de marketing da CBF. No livro “Jogo sujo – o mundo secreto da Fifa” o jornalista inglês Andrew Jennings afirma que o cartola e o ex-sogro João Havelange, então presidente da Fifa, teriam feito um acordo com a Justiça suíça e pago mais de 10 milhões de reais para escaparem da condenação. O sucessor, José Maria Marin, chegou a ser preso em 2015 na Suíça e condenado nos Estados Unidos três anos depois por participação em organização criminosa, lavagem de dinheiro e fraude bancária. Marco Polo Del Nero, o presidente seguinte, foi banido do futebol pela Fifa por corrupção envolvendo contratos de transmissão de eventos. Em 2021, Rogério Caboclo foi afastado sob acusação de assédio moral e sexual contra funcionários da CBF.

A gestão de Ednaldo Rodrigues continua sendo muito questionada. A decisão de Gilmar Mendes será analisada pelo plenário da Suprema Corte e as repercussões da reportagem publicada pela revista Piauí ainda podem provocar reviravoltas fora das quatro linhas. Resta agora torcer para que todo esse mar de lama não entre dentro de campo e, aos poucos, a seleção canarinha consiga reconquistar o coração do torcedor e o respeito do mundo. Os próximos compromissos do Brasil pelas Eliminatórias serão no início de junho, contra Equador e Paraguai.

Referências

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes,2000. p. 103-133. 

JENNINGS, Andrew. Jogo sujo – O mundo secreto da Fifa, Panda Books, 2012.

WB, Matias. “A dona da bola: as finanças da CBF” R. bras. Ci. e Mov 2020;28(3):149- 170).

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