Entre a nossa violência naturalizada e a violência dos outros…

Chamou a atenção de todos os que se interessam pelo futebol, e, especialmente, se dedicam a pensá-lo como fenômeno social, uma série de manifestações decorrentes do episódio em que o atleta em formação do Palmeiras, Luighi, foi vítima de racismo em competição sub-20 organizada pela Conmebol, no Paraguai.

Fonte: Conmebol / Reprodução

O que destoou dos recorrentes episódios que, infelizmente, temos acompanhado nas competições de nosso continente foi a manifestação do jogador que indagou o repórter se ele não perguntaria sobre o que aconteceu no jogo. Um atleta em formação foi vítima de flagrante racismo e o repórter foi lhe perguntar sobre a partida. O repórter não percebeu o valor notícia da questão. Para quem não é da comunicação (eu, entre eles), a forma mais didática de ensinar o que é ou não uma notícia, especialmente apontando-a como algo que foge do ordinário ou do cotidiano, é: “um cachorro que morde um homem não é uma notícia. A notícia existe quando o homem morde o cachorro”. Essa afirmação absolutamente simplificada da discussão tenta explicitar que o jogador sofrer racismo em campo pode ser entendido como “não noticiável” por não fugir do ordinário ou do cotidiano de nossas partidas.

A manifestação de Luighi acabou gerando uma série de questionamentos contra a Conmebol de diferentes atores envolvidos no futebol de espetáculo no Brasil. Algumas agremiações, inclusive, foram apresentadas a essa violência a partir de mais esse episódio. Até então pareciam desconhecê-los. A presidenta do Palmeiras, Leila Pereira (a mesma que desafia o machismo dos dirigentes esportivos, mas ocupa o seu lugar de privilégio chamando os jogadores de “velhos” quando eles reclamam do gramado do estádio de seu clube) chegou a sugerir que os clubes brasileiros pensassem em filiar-se a Concacaf em substituição a Conmebol. Indagado sobre essa possibilidade, Alejandro Domínguez, presidente da Conmebol, afirmou que uma Libertadores sem o Brasil seria o mesmo que o Tarzan sem a Chita. Essa “inocente” frase novamente associou os brasileiros a macacos o que remonta, no mínimo ao Sul-Americano de 1919 quando falamos de futebol em nosso continente. Como de costume, o presidente desculpou-se dizendo se tratar de uma frase cotidiana que não possuiria uma intenção ofensiva.

Outra repercussão a partir do episódio se deu em função de uma manifestação de Carlos Gamarra, um dos maiores zagueiros da história do futebol, uma lenda do esporte. A turma mais nova pode procurar o desempenho do zagueiro, dentre outros, por Internacional, Corinthians e Flamengo, além de sua atuação na Copa do Mundo de 1998. Chegaram notícias de que Gamarra teria naturalizado a violência sofrida pelo jogador do Palmeiras e dito que as novas gerações estariam muito sensíveis. O ex-jogador em um evento do Corinthians tentou se explicar e disse que não estava defendendo o racismo (no popular, passando pano), mas ele argumentava sobre a necessidade de se esconder suas debilidades durante os desafios futebolísticos. Segundo seu argumento, se os adversários souberem que você se ofende com um determinado conteúdo, esse conteúdo será utilizado à exaustão justamente para atrapalhar o desempenho esportivo do jogador.

A fala de Gamarra, bastante questionável, não é dita sozinha. Gamarra não está fora do discurso normativo que acompanhou os atores do futebol durante muito tempo e que seguem ressoando fazendo com que os mais tradicionais ou conservadores critiquem atitudes que questionem essa necessidade de aguentar todas as ofensas que possam ser proferidas em um estádio de futebol, especialmente os jogadores que estão lá trabalhando. Lembro do lateral direito Arce, conterrâneo de Gamarra e também excepcional jogador, que em uma oportunidade jogou com a proteção em um joelho ou tornozelo que não estava machucado para que os adversários pudessem “chutar” o joelho ou tornozelo bom. Essa normativa de saber sofrer ou aguentar a violência também fala muito dessa masculinidade esportiva que tem sido meu foco principal de investigação nas últimas duas décadas (BANDEIRA, 2019). Essa masculinidade precisa superar todas as provocações que podem surgir e que surgirão como um imperativo, já que na narrativa normativa, todos os meios podem ser utilizados em busca da vitória. No confronto seguinte ao jogo em que Luighi foi ofendido, torcedores do Flamengo o chamaram de “chorão” por ter se desafiado a denunciar a violência e não apenas sofrê-la em silêncio.

Outro jogador paraguaio, este ainda em atividade e com um refinamento técnico bastante menor que o dos ex-jogadores citados nos últimos parágrafos, Ángel Romero, lembrou que no Brasil temos muita facilidade de reclamar do preconceito que ocorre fora e pouco olhamos para os preconceitos que acontecem cotidianamente no Brasil. Seria necessária muita ingenuidade para não saber que os jogadores paraguaios certamente são alvo de xenofobia. Poucos dias após o episódio no Paraguai, Romero foi vítima de homofobia, justamente da torcida do Palmeiras. Talvez não tenha dado tempo entre o episódio e a escrita dessas linhas, mas não vi nenhuma manifestação oficial do Palmeiras sobre esse episódio…

O objetivo dessa curta escrita foi lembrar que não é possível escolher quais episódios de racismo ou de outras violências merecem ou não merecem uma comoção institucional. Foi muito bom ver um conjunto de clubes se manifestando em favor do jogador do Palmeiras, mas foi muito ruim não ver essa mesma manifestação em outros episódios. E também não podemos isentar todos os atores do esporte, não somente dirigentes ou profissionais.

No final de semana seguinte ao episódio com o jogador do Palmeiras, o treinador Roger Machado dirigiu a equipe do Internacional no clássico Grenal com uma camiseta em alusão ao combate ao racismo. Nenhum repórter questionou a escolha da vestimenta para saber se tinha alguma relação com o caso do jovem jogador do Palmeiras ou com qualquer outro episódio. A cobertura jornalística acaba vivendo de episódios em episódios e não consegue produzir as relações entre eles e acabamos ficando com uma coletânea de “casos isolados”. O jornalista paraguaio não perguntou ao Luighi e os jornalistas gaúchos não perguntaram ao Roger.

Existe uma famosa frase que por incompetência não consegui confirmar a autoria que diz: “a pornografia é o erotismo dos outros”. Seria possível pensar na violência nessa mesma perspectiva?

Antes de fechar o texto, dialogando um pouco com esse argumento, resgato outro episódio que é terrível para quem é torcedor de futebol, mas engajado com a luta contra os preconceitos que circulam nesse esporte e na sociedade como um todo: uma atleta do Internacional atirou uma banana em direção as adversárias do Sport Recife em jogo do campeonato brasileiro de mulheres. Não há nada pior para um gremista sério do que um caso no rival. Por quê? Porque os gremistas que acham natural chamar colorados de macacos nessa hora se “preocupam com o racismo”. Ao mesmo tempo, temos algumas manifestações de torcedores e torcedoras rivais afirmando que o clube tem várias ações, então não poderia ser um caso de racismo. Uma pessoa na rede social chegou a sugerir que a modalidade, futebol de mulheres, não comportaria episódios dessa natureza…

O racismo está em todos os espaços de nossa sociedade. Ele não acontece só no Paraguai, no Grêmio, no Internacional ou no futebol de homens… Enfrentemos todos. Evitemos uma militância seletiva, especialmente marcada pelo clubismo ou utilizando outros preconceitos para nossas escolhas.

Referências

BANDEIRA, Gustavo Andrada. Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Curitiba: Appris, 2019.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Identidade em jogo – Brasileiros e argentinos no campo de futebol (1908-1922). In: CAMPOS, Flavio de; ALFONSI, Daniela. (Orgs.). Futebol objeto das ciências humanas. São Paulo: Leya, 2014, p. 71-113.

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