A crise de identidade do surfe

Depois de um hiato de mais de um ano, 2025 marcará o retorno de uma etapa da World Surf League (WSL) a uma piscina de ondas. Localizada na capital dos Emirados Árabes, a Surf Abu Dhabi, a segunda lagoa de ondas desenvolvida pela Kelly Slater Wave Company (KSWC) receberá os melhores surfistas do mundo entre os dias 14 a 16 de fevereiro. A imagem de divulgação no site da liga de surfe exibe um surfista de costas com uma prancha embaixo do braço(1), uma onda perfeita quebrando para direita, com as estruturas que sustentam a máquina que gera a onda e diversos arranha-céus de pano de fundo. Este cenário distópico ilustra o que para alguns estudiosos do esporte seria a condição pós-moderna do surfe, como discutiram Roberts e Ponting no artigo Waves of simulation: arguing authenticity in an era of surfing the hyperreal: “o paradigma binário natureza/cultura que sustentou construções sociais anteriores de autenticidade” (ROBERTS; PONTING; 2018, p.3, tradução nossa), que estaria desestabilizado por conta das novas tecnologias de piscinas de ondas. 

 

Reprodução: WSL

 

De acordo com o 2024 price guide for the world’s wave pools, atualmente existem 31 piscinas-bacias-lagoas(2) com ondas, no mundo, criadas para o surfe de alta performance. No Brasil, temos três em funcionamento: duas no interior de São Paulo (Praia da Grama e Boa Vista Village) e uma em Santa Catarina (Surfland Brasil); e outras três em construção: duas na capital de São Paulo (Beyond Club e São Paulo Surf Club) e uma no Rio de Janeiro (Aretê Búzios)(3). Esse fato nos coloca entre os países com a maior concentração de piscinas voltadas para a prática do surfe junto com os Estados Unidos e a Austrália. Assim como o surfista e diretor de comunicação da confederação brasileira de surf (CBSurf) Ricardo Bocão revelou em entrevista para o episódio 74 do podcast Passes e Impasses, do LEME, acreditamos que em breve teremos um circuito de surfe exclusivo realizado em ondas feitas pelo homem, em lagoas com tecnologias desenvolvidas por empresas distintas ou geradas pelo mesmo tipo de máquina(4). Consequentemente, provavelmente se estabelecerá uma nova categoria dentro do surfe, como afirma Bocão: “Nós teremos uma nova categoria: surfe na piscina, surfe em onda artificial” (LIMA, 2024). 

A proliferação dos surf parks traz consigo uma crise de identidade para o esporte e os seus praticantes, pois separa a experiência de surfar uma onda da tradição do estilo de vida do surfe. Esse lifestyle, que normalmente está atrelado ao chamado surfe de alma ou soul surf, remete ao imaginário de conexão com a natureza, liberdade e cultura de praia. A própria ideia de pagar para surfar representa uma nova dimensão no processo de comodificação e dessacralização do esporte, que vem desde a década de 70, quando surfistas começaram a se profissionalizar: “Surfar por dinheiro é percebido pelos surfistas de alma como se vender, um processo que contribui para a mercantilização do surf e a implosão do que antes era uma subcultura distinta” (ROBERTS; PONTING; 2018, p.10, tradução nossa). Perguntado sobre o que achou da entrada no surfe nos Jogos Olímpicos, Bocão declarou: 

“Parece uma contradição: eu que batalhava por uma divulgação através do programa [Realce], de melhores salários, mais campeonatos, dizia que não gostaria de ver o surfe nas olimpíadas. Eu achava que o surfe entrando na olimpíada ia ser o golpe final contra o lado lúdico do surfe. E eu também era da turma que achava que o surfe não era um esporte e sim um estilo de vida, mas eu, eu fui um dos caras que teve sempre ali na frente dando um gás na OSP, organização dos surfistas profissionais, na ABRASP, associação brasileira de surfe profissional. Então, na verdade eu vivia numa contradição. E quando eu vi o surfe entrando na olimpíada eu adorei, eu gostei. Eu olhei para trás e falei assim, eu tava meio errado. Quer dizer, deve ter gente ainda que acha isso que eu achava, né? Que acha que, ah, tirou a virgindade de vez, acabou, o surfe agora entrou no mainstream. Não é mais aquele, né? É, eu acho que. O que que eu acho, hoje? Era um caminho sem volta, não tinha… Mais cedo ou mais tarde o surfe como um esporte muito popular, muito querido por todos, ia acabar entrando, né. Se provou um tremendo sucesso logo na primeira edição, e cara, você não tem como frear certas coisas. O que você tem que fazer, no meu caso, é tentar sempre lembrar, promover o lado que eu considero mais bacana do esporte, né. Que é a parte, que é a comunhão com a natureza, comunhão com o mar, uma maior consciência do meio oceano, do meio praia, e da liberdade que a gente tem pegando onda e como é que isso pode influenciar na nossa. Inspirar na vida, dia a dia. Etc. Etc” (LIMA, 2024).

Passados mais de cinquenta anos do início dessa dicotomia, nos parece que o surfe moderno nunca existiu fora de um contexto comercial e midiatizado. Douglas Booth afirmou que “as indústrias tradicionais, motivadas pelo lucro, apropriaram-se do surfe. Ao fazer isso, ajudaram a popularizar o esporte” (BOOTH, 2017, p.415, tradução nossa). Portanto, ideias contraditórias coexistem nessa disputa que está em constante construção e desconstrução, e as lagoas de surfe acrescentam essa camada semântica que de certa forma desestabiliza o que os surfistas entendem sobre surfe. No artigo escrito em 2018, após o lançamento da primeira lagoa de ondas artificiais do Kelly Slater, Roberts e Ponting sugeriam que “os surfistas ainda não descobriram o que surfar em ondas artificiais significa para sua cultura e comunidade” (ROBERTS; PONTING; 2018, p.2, tradução nossa). Seis anos após, novas tecnologias de geração de ondas surgiram, diversos campeonatos foram realizados nesse tipo de ambiente e os surfistas de fato começaram a ter a experiência corporal de surfar ondas fora da natureza.  

Bocão, que foi um dos apresentadores do primeiro programa de surfe e esportes de ação da TV brasileira, o Realce, viveu diversas fases do esporte. Atualmente, como um dos embaixadores da Surfland Brasil, vê de perto as novas perspectivas que chegaram junto com esses espaços controlados. A possibilidade de melhorias nos treinamentos, como foi possível observar com a ida da equipe brasileira júnior de surfe para a Surfland Brasil, em março de 2024(5), e a possibilidade de julgamentos mais justos, já que as competições são realizadas em ondas iguais. “O fato de uma onda ser praticamente idêntica a outra, o que que sobra? Só sobra a performance. Os juízes inclusive tinham a obrigação de não errar tanto” (LIMA, 2024). 

Já em relação ao circuito mundial, Bocão defendeu um mix entre etapas realizadas no mar e uma ou duas etapas em piscinas. Apesar de ter afirmado que a imprevisibilidade do mar proporciona “um tempero” que a piscina não oferece, alegou que nas piscinas é possível saber quais surfistas realmente dominam a onda, “que fazem coisas que os outros não fazem.” (LIMA, 2024). De acordo com as rubricas sugeridas por Roger Caillos, no livro Os jogos e os homens (2017), é possível identificar que as piscinas alteram pelo menos duas dessas rubricas no surfe profissional. Com a transferência do espaço do jogo da natureza para um ambiente controlado e previsível, a alea, que corresponde a aleatoriedade, a sorte ou ao destino, é reduzida. E, ao mesmo tempo, esse novo espaço de jogo representa o simulacro do mar. Ou seja, a partir da reprodução de ondas que simulam a forma e a força dos oceanos, os surfistas são convidados a acreditar, por um determinado tempo, que aquele real é mais real que o real proporcionado pela natureza.   

Segundo o site de WSL, os juízes avaliam os seguintes elementos para dar notas às ondas surfadas: comprometimento e grau de dificuldade; manobras inovadoras e progressivas; combinação de grandes manobras; variedade de manobras/repertório; velocidade, força e fluidez(6). Questionado sobre a subjetividade dos julgamentos e como diminuir as possíveis injustiças sofridas pelos atletas brasileiros nas competições da WSL, Bocão disse que softwares de análise de vídeo poderiam pontuar cada onda surfada de acordo com o grau de dificuldade das manobras executadas, considerando “quanto de água que saiu na rasgada, o quanto de prancha que saiu da onda, qual a inversão, se ela foi 120º, 180º, 270º” (LIMA, 2024). Algo similar ao que já existiria para analisar os movimentos na ginástica artística de solo. Em meio à crise de identidade pela qual o surfe passa por conta da aceleração da sua secularização com a chegada das ondas artificiais, a submissão à soberania da técnica e da tecnologia indicam que o tecnopólio se estabelece, pois a natureza, e sobretudo os humanos, são falhos. Já os computadores, calculam e jamais cometem erros (POSTMAN, 1994).  


Notas

(1) Supomos que seja o próprio Kelly Slater.

(2) Ver artigo Surf Park Nomenclature: Why Words Matter. Disponível em: <https://surfparkcentral.com/surf-park-nomenclature-why-words-matter/> Acesso em: 25 jan 2025 

(3) Disponível em: <https://ge.globo.com/surfe/noticia/2024/05/21/surfe-em-qualquer-lugar-brasil-vive-boom-das-piscinas-de-ondas-mas-diversao-ainda-e-para-poucos.ghtml e https://vejario.abril.com.br/cidade/rio-de-janeiro-tera-a-onda-mais-longa-do-hemisferio-sul> Acesso em: 23 jan 2025 

(4) Nesse caso, pode variar o tamanho da lagoa e a potência que a tecnologia instalada pode gerar. No caso da tecnologia da empresa Wavegarden, ela pode ser medida pela quantidade de módulos na piscina. Ambas as piscinas instaladas no Brasil contam com 52 módulos. Na Coreia do Sul existe uma piscina com 56, o que produz uma onda mais longa e mais variedade de tipos de ondas.

(5) Disponível em: <https://www.waves.com.br/cobertura-especial/surfland/surf-camp-cbsurf-atletas-treinam-na-piscina/> Acesso em: 25 jan 2025 

(6) Disponível em: <https://wsllatinamerica.com/regras-e-regulamentos/#:~:text=Julgamento%20e%20Pontos,-O%20formato%20dos&text=Um%20quadro%20de%20cinco%20ju%C3%ADzes,m%C3%A9dia%20das%203%20notas%20restantes.> Acesso em: 25 jan 2025 

 

Referências

BOOTH, Douglas. The political economy of surfing culture: production, profit, and representation. In: HOUGH-SNEE, Dexter Zavalza e SOTELO EASTMAN, Alexander. The critical surf studies reader. Durham: Duke University Press, 2017, p. 412-441.

CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Roger Caillois: tradução de Maria Ferreira ; revisão técnica da tradução de Tânia Ramos Fortuna. – Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017. – (Coleção Clássicos do Jogo)

 LIMA, Ricardo Baerlein dos Santos, O surfe além da geração “Brazilian Storm”. Passes e Impasses. Rio de Janeiro, 74. 21 nov. 2024. Entrevista.

POSTMAN, Neil. Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia. / Neil Postman ; tradução Reinaldo Guarany. – São Paulo : Nobel, 1994.

ROBERTS, Michael e PONTING, Jess. Waves of simulation: Arguing authenticity in an era of surfing the hyperreal. International Review for the Sociology of Sport, 2018.

Deixe uma resposta