O futebol é reflexo do coração, de tudo o que há de bom e impuro dentro dele, orquestrado por sentimentos tão confusos quanto uma marcação de bola na mão dentro da área aqui no Brasil. Confusas são as sensações porque tortuosos são os caminhos que a bola faz ao longo de 100 minutos, deixando o angustiante ar de incerteza no segundo seguinte e a inevitável ideia de que tudo poderia ter sido diferente se não fosse o acaso. Por isso, tal qual a arte imita a vida, a percepção sobre a vida se deixa levar pela fruição que cada espectador faz da partida. Mais do que um produto sociocultural, o futebol é uma concepção emocional.
Em meados de 2019, Atlético-MG e Flamengo lutavam pelas suas cabeças dentro de campo, e por um técnico fora dele. Coincidentemente pelo mesmo técnico, o então desempregado Jorge Jesus, que havia sido convidado por um dirigente do Atlético para acompanhar a partida no estádio Independência. Ao contrário do que parecia ser inevitável, JJ acertou com o Flamengo, empilhando taças em um time que assombrava rivais e parecia ter transformado decisões duvidosas em um futuro próspero predestinado. Cinco anos depois, o que resta de tudo isso são apenas a penumbra de um time vencedor e o fantasma de um treinador que agora assombra o clube que o abraçou, todos aprisionados em um limbo de saudade quase eterna. Quando falamos de futebol, às vezes esquecemos de que tão feio quanto não saber perder é não saber por que ganhou.

A eliminação do Flamengo pelo Peñarol ainda nas quartas de final da Copa Libertadores é tragédia anunciada de uma gestão que em cinco anos não soube reconhecer que para vencer basta acertar uma vez aleatoriamente, mas para dominar é preciso de método. De janeiro de 2019 até o fim de setembro de 2024, dez técnicos passaram pelo Flamengo, dos quais nove foram mandados embora, totalizando mais de R$ 50 milhões de reais em multa rescisória paga pelo clube. Uma média de um técnico novo a cada semestre. Essa é a canção a qual o futebol brasileiro se acostumou a dançar. É… Mas não é. No mesmo ano em que Jorge Jesus deixou o Flamengo, o Palmeiras contratou Abel Ferreira. Desde então foram 10 títulos conquistados pelo alviverde e 6 vencidos pelo rubro-negro no mesmo período. Um projeto que deu certo porque ganhou, mas que ainda permanece, afinal não dá para esquecer que o Flamengo demitiu Dorival Jr. após também ter sido campeão em 2022. O Botafogo, por sua vez, ainda não foi campeão com a SAF de John Textor, porém vislumbra um futuro promissor em uma gestão que claramente entende o futebol como processos continuados e integrados em seus departamentos internos. Além disso, o que dizer do Fortaleza, cuja ascensão nos últimos anos está bem longe de ser matéria do acaso, mas sim pura consequência de uma ideologia do que se quer para o futebol do clube do Nordeste, em um processo duradouro e permanente. Palmeiras domina. Botafogo e Fortaleza buscam o domínio. O Flamengo apenas vence sem compreender como, modus operandi de uma diretoria que transforma conquistas em acertos fortuitos. A sensação que passa é que o Flamengo está a um acidente do próximo título de Libertadores.
O que construir quando não lhe sobra mais nada? É a pergunta que fica em mais um ano desperdiçado por más escolhas e mais uma demissão, com a saída de Tite do comando técnico, em uma passagem marcada pelo futebol de luto. No jogo de volta contra o Peñarol, precisando de um gol, o Flamengo terminou a partida com um total de 0,87 gols esperados, foram 13 finalizações, boa parte delas desesperadas no fim da partida, 7 chutadas de dentro da área e apenas 2 em direção ao gol. O goleiro adversário defendeu apenas 1 chute do time do Flamengo em 100 minutos. Na urgência de vencer fora de casa, o Flamengo sucumbiu à posse estéril: ficou com a bola nos pés em 74% do tempo e viu seus principais articuladores a perderem 52 vezes ao longo do jogo (Arrascaeta perdeu 18 bolas, Gerson, 11 e De La Cruz, 23). Os números são do site Sofascore¹.Os três permaneceram em campo a partida inteira, mesmo sem efetividade alguma, e quem entrava não contribuía para a classificação, porque o jogo do Flamengo havia falecido, um futebol morto de ideias, capaz de fazer até o mais insensível dos defuntos ser tomado pelo luto. Para quem fala de renovação, do time de 2019, somente Arrascaeta, Gabigol, Gerson e Bruno Henrique atuaram no Campeón del Siglo. A renovação foi feita, mas sem projeto, ela é só uma ideia vaga e sem fundamento.
Por fim, com o luto vem a saudade de uma época ocasionalmente vitoriosa. Sentir saudade não é crime, o problema é quando se sente falta de um momento que foi, aparentemente, tão randômico quanto aquele rolé do Ronaldinho na cadeia do Paraguai: foi divertido de se ver, mas virou memória falada. Quando essa hora chega, até o torcedor menos delinquente se torna réu confesso do crime hediondo de amar o seu clube, perante o tribunal da santa ocasião. A punição mais branda é a falta de autopiedade. No fim, restam somente a esperança a longo prazo e o desespero imediato, o medo do inesperado, que gera ansiedade e angústia, afinal todos querem ganhar, mas poucos estão dispostos a responder o questionamento que “separa os homens dos moleques” no futebol: se você ganhou, foi por qual motivo?
Seja sorte, destino, deus ou feitiçaria, quiçá exista uma constância universal no futebol em que alguns clubes estão fadados a repetir os mesmos erros, em um tipo de crença ancestral que nem mesmo o posicionamento dos astros no céu consegue dar conta de explicar. De modo geral, é possível afirmar que seu time irá voltar a vencer. Ele será campeão. Voltará a jogar um futebol vistoso, alegre e potente, a ponto de você se esquecer por um instante de que tudo isso não passa de mais um caso do acaso não marcado em lugar algum, que aconteceu, foi embora e se tornou aquela doce lembrança mais cruel de todas.
Notas
¹ Disponível em: <https://www.sofascore.com/pt/football/match/flamengo-penarol/CobsGuc#id:12375378,tab:statistics>