A precarização dos Campeonatos Estaduais é um processo que a cada ano se torna mais irreversível. Vistos como um empecilho no apertado calendário do futebol brasileiro, eles são criticados por diversos setores da imprensa, dirigentes, jogadores e até mesmo torcedores. Não obstante, historicamente, tais competições se mostraram extremamente relevantes para a formação de grandes craques que brilharam pela Seleção Brasileiras nas conquistas da Copa do Mundo, sobretudo até 1970 e, principalmente, após a “debandada de 1988”, como chama o jornalista Paulo Vinícius Coelho. Segundo ele, “entre a saída de Falcão, em 1980 [e que seria, em 1982, o primeiro jogador brasileiro a defender a Seleção em um Mundial atuando fora do país], e a debandada de 1988, não aumentou a qualidade do craque nascido no Brasil. Ao contrário, a impressão à época era de pobreza nos campos do país, de seca de craques, de entressafra” (COELHO, 2009, p. 120).
Os motivos que explicam esse processo, ainda segundo PVC, se deram “porque os clubes, em crise, já não conseguiam bancar sequer os 60% do salário que tentavam pagar nos tempos em que Falcão foi para a Roma, em 1980. E porque o mercado [europeu] estava mais amplo” (COELHO, 2009, p. 121). Consequentemente, o futebol praticado no Brasil enfrentou uma perda de qualidade que, embora inicialmente não se refletiu no rendimento da Seleção Brasileira na década de 1980, ficou evidente em 1990, quando, pela primeira vez na história do país em Copas do Mundo, a maioria dos atletas convocadas jogavam no exterior (12 dos 22 convocados), sendo que do time-base que começava as partidas 9 eram jogadores de clubes europeus: “Apenas o goleiro Taffarel, do Internacional, e o zagueiro Mauro Galvão, do Botafogo, atuavam no Brasil. […] Em 1990, logo depois de disputar a Copa do Mundo, Taffarel deixou o Internacional e foi jogar no Parma, assim como Mauro Galvão confirmou sua transferência para o Lugano, da Suíça” (COELHO, 2009, p. 120).
Dessa forma, temos uma relação direta entre a saída em massa de jogadores de alto nível do futebol brasileiro e a queda de rendimento da Seleção em Copas do Mundo. Todavia, no meio desse caminho, há, dentro da perda de qualidade do esporte praticado dentro do país, o enfraquecimento dos Campeonatos Estaduais que, antes disso, se mostravam extremamente fortes e importantes para a formação dos atletas que conquistavam o mundo. Tanto é assim que, mesmo em meio a esse processo de debandada, tivemos até o início do século XXI uma sobrevida de boas convocações para os Mundiais seguintes, ainda resultante de atletas que tiveram parte importante de sua formação ligada a disputa de torneios regionais de qualidade. No presente texto, temos o objetivo de analisar alguns desses exemplos envolvendo o Campeonato Carioca Masculino de Futebol Profissional e jogadores convocados para as Copas de 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002.
Dos 22 jogadores brasileiros convocados pelo técnico Vicente Feola para a Copa do Mundo de 1958 disputada na Suécia, todos atuavam no Brasil, sendo 12 atletas pertencentes a clubes cariocas e que, na época, tinham como principal competição o torneio estadual. Do time titular que disputou e venceu a final contra os donos da casa, 7 jogadores eram do Rio de Janeiro: apenas o goleiro Gilmar (Corinthians), o lateral Djalma Santos (Portuguesa Santista), o defensor Zito e o atacante Pelé (ambos do Santos) destoam deste cenário. No ciclo que precedeu a conquista do primeiro Mundial brasileira, que vai de 1954, após o fracasso na Copa do Mundo disputada na Hungria, até o êxito no território sueco, ocorreram 4 edições do Cariocão, tendo o Flamengo do titular Zagallo vencido em 1954 e 1955, o Vasco, da dupla de zagueiros Bellini, o capitão da seleção, e Orlando sido campeão de 1956 e o Botafogo, da enciclopédia do futebol brasileiro, Nilton Santos e de Didi, “O Príncipe Etíope”, o grande vencedor de 1957. O sucesso destes atletas no estadual ao longo do ciclo de preparação para a Copa do Mundo os qualificou para a conquista do nosso primeiro título mundial no futebol masculino profissional.
Em 1962, no Chile, coube a Zezé Moreira chamar 22 nomes que entrariam para a história com a conquista do segundo título da Copa do Mundo, sendo que desta vez 9 eram do futebol carioca. Se quatro anos antes houve participação de atletas do Botafogo, Flamengo, Fluminense, Vasco e Bangu, desta vez apenas o Glorioso, o Tricolor e o time da Zona Oeste tiveram representantes. No entanto, neste ciclo, ainda que houvessem conquistas do Vasco (1958), Fluminense (1959), América (1960) e Botafogo (1961), o predomínio Alvinegro na reta final do Mundial lhe permitiu ter simplesmente a metade dos jogadores de linha que atuaram na final contra a Tchecoslováquia (5 jogadores: Nilton Santos, Didi, Zagallo, que na Copa anterior defendia o Flamengo, Amarildo, responsável por substituir Pelé, e Garrincha, craque do torneio). Segundo o Assaf e Martins, “a superioridade foi tão evidente em 1961 que o clube deu-se ao luxo de conquistar o Campeonato Carioca disputando amistosos paralelos, no Brasil e até no exterior. Em 25 jogos, o time sofreu apenas uma derrota, curiosamente no mesmo dia em conquistou o título, com três rodadas de antecedência” (ASSAF; MARTINS, 2010, p. 336). Atualmente, também vemos hegemonias semelhantes de conquistas em sequência de times cariocas, mas, infelizmente, os mesmos não conseguem contribuir com a formação de seleções brasileiras vencedoras como no passado. Além deles, o zagueiro Zózimo, do Bangu, que também fora campeão na Suécia, se fez presente no duelo decisivo como também ao longo de toda a competição.
Seleção Brasileira Copa do Mundo 1962. Fonte: Museu do Futebol.
No Mundial de 1970, o bicampeão do mundo como jogador e agora treinador Zagallo, que estava no início de sua nova carreira, convocou também 22 jogadores que atuavam no futebol brasileiro, mas com apenas 6 do Rio de Janeiro: Félix, goleiro do Fluminense; Brito, zagueiro do Flamengo; Marco Antônio, defensor do Tricolor; Jairzinho, Paulo Cesar Lima e Roberto, atacantes do Botafogo. Os motivos para isso são variados, mas passam pela hegemonia Alvinegra no período (campeão em 67 e 68 com o trio de ataque listado anteriormente sob o comando do próprio Velho Lobo), o título do time das Laranjeiras em 1969, com Félix e Marco Antônio formando a base de uma defesa que tomou 15 gols em 18 jogos e pelo fato de alguns jogadores a época da convocação não estarem atuando mais no futebol carioca, como Gérson, mesmo tendo feito a maior parte de sua carreira no Rio de Janeiro.
Em 1994, por sua vez, os números de jogadores campeões do mundo e vinculados a times cariocas foi ainda menor. Apenas o goleiro Gilmar, do Flamengo (campeão Carioca em 1991), o zagueiro Ricardo Rocha, do Vasco (campeão Carioca em 1994), e o lateral-esquerdo Branco, do Fluminense, se encaixam neste perfil. Todavia, naquele Mundial, havia vários jogadores que nos anos anteriores à competição tiveram a sua carreira completamente ligada ao futebol da cidade Maravilhosa, a começar pela dupla de ataque formada por Romário, craque da Copa do Mundo dos Estados Unidos, e Bebeto, seu parceiro ideal. Enquanto o primeiro havia sido formado pelo Olaria e pelo Vasco da Gama, clube pelo qual ganhou destaque nacional antes de partir para a Europa, o segundo foi formado na Gávea e depois brilhou em São Januário antes de, assim como o Baixinho, migrar para o futebol Europeu. Quem também havia sido formado pelo Rubro-Negro foram o zagueiro Aldair, o a época ainda lateral-esquerdo Leonardo e o meia Zinho; o lateral-direito Jorginho, embora tenha tido passagem marcante pelo Fla, foi revelado pelo América do Rio de Janeiro. Dunga e Mazinho, meias daquele time, também tiveram experiências no Rio, sendo que o primeiro atuou nos anos 1980 por Bangu e Vasco e o segundo foi campeão Brasileiro com a camisa cruzmaltina. Ou seja, mesmo sem estar atuando no futebol carioca durante a Copa, tais jogadores devem muito à formação que o estadual lhes deu ao longo da carreira.
Seleção Brasileira Copa do Mundo 1994. Fonte: Museu do Futebol.
Na última conquista de Copa do Mundo pelo Brasil, em 2002, apenas o meia Juninho Paulista e o atacante Edílson, ambos defendendo o Flamengo, estavam no elenco vencedor, embora o primeiro tenha feito boa parte do período que antecedeu à Copa do Mundo defendendo o Vasco da Gama. Outros nomes, como o volante Vampeta (Fluminense e Flamengo) e o atacante Denílson (Flamengo) também tiveram passagens apagadas pelo futebol carioca antes do Mundial, assim como o centroavante Luizão, que, ao contrário dos companheiros citados, foi campeão de estadual pelo Gigante da Colina em 1998 – além de vencedor e artilheiro da Libertadores da América. Naquele ano e nos seguintes, seguindo uma tendência que se iniciou na Copa de 1990, os atletas que atuavam fora do Brasil passaram a ser a maioria dos convocados e, consequentemente, o futebol regional perdeu força e a Seleção passou a perder títulos.
No século XXI, com o desmonte cada vez maior dos torneios estaduais, em especial o Campeonato Carioca, a Seleção Brasileira passou a amargar mais um jejum de conquistas mundiais – serão 24 anos sem vencer em 2026. Isso não é coincidência, mas consequência de diversos fatores, sendo alguns externos, como a abertura do mercado de futebol europeu a estrangeiros, mas outros estão relacionados a decisões tomadas internamente, como a crise financeira que assola os clubes e cuja alternativa inicial era a venda de atletas. Tal medida iniciada nos anos 1980 não teve o resultado esperado, culminando em ciclo vicioso tenebroso para o país: “Os craques iam embora, os estádios se esvaziavam, os clubes não tinham dinheiro e não conseguiam competir com as moedas europeias” (COELHO, 2009, p. 121)
Uma das principais vítimas deste processo foi o futebol regional que é extremamente importante para o desenvolvimento dos talentos naturais que o Brasil possui. Com o seu enfraquecimento, visualizado por meio também da perda de força e qualidade dos campeonatos estaduais, sobretudo a partir do século XXI, em que cada vez mais os atletas que atuam no futebol europeu disputam menos os torneios locais e são a base de uma Seleção que há mais de duas décadas não vence um Mundial. A relação entre a saída precoce de jogadores para a Europa e ao mau desempenho do futebol praticado no país é direta, mas neste meio do caminho diversos elementos precisam ser inseridos, como a mudança de percepção e relevância dada aos Campeonatos Estaduais, os quais, historicamente, foram tanto as principais competições disputadas no país, sobretudo antes da consolidação do Campeonato Brasileiro e da Copa do Brasil, como também uma oportunidade importante para o amadurecimento e desenvolvimento de jovens jogadores que, anos depois, se tornaram ídolos nacionais.
Neste texto, buscamos tomar o futebol carioca, representado pelo seu centenário campeonato estadual, como exemplo para estimular reflexões acerca da importância deste tipo de competição nos tempos atuais em que, cada vez, há um foco em conquistas financeiras em detrimento do rendimento esportivo. É inegável a importância que vencer um torneio nacional ou continental possui, mas é preciso compreender que, historicamente, isso não foi feito em detrimento dos estaduais, pois não se trata de competições que possuem hierarquia entre si; muito pelo contrário, elas se complementam.
Referências
ASSAF, Roberto; MARTINS, Clóvis. Histórias dos Campeonatos Cariocas de Futebol, 1906-2010. Rio de Janeiro: Maquinária, 2010
COELHO, Paulo Vinícius. Bola fora: o êxodo do futebol brasileiro. São Paulo: Panda Books, 2009
DAMATO, Marcelo; BORBA, Alex (coordenação). Todas as Copas: 1930 a 1998. Rio de Janeiro: Areté Editorial, 2002.
DUARTE, Marcelo; VALENTINI, Danilo; BORBA, Alex (coordenação). Enciclopédia do Futebol Brasileiro Vol. I e II. Rio de Janeiro: Areté Editorial, 2001.