Na última partida da primeira fase da Copa América 2016, organizada para celebrar o Centenário do torneio, nos Estados Unidos, a seleção brasileira, apesar de certa desconfiança generalizada em função do espectral 7 x 1 contra a Alemanha dois anos antes, era considerada favorita e necessitava apenas de um empate para seguir na competição.
Curiosamente a equipe tinha aplicado na partida anterior uma goleada pelo mesmo emblemático placar contra a frágil equipe do Haiti. Este fato que gerou entre alguns jornalistas esportivos ou “senhores da memória”, como caracterizou muito bem Jacques Le Goff (1984), um leve sopro de esperança na redenção futebolística do suposto estilo nacional, serviu muito mais para a proliferação de piadas nas redes sociais do que propriamente em uma retomada da confiança na seleção nacional comandada pelo técnico Dunga desde o fiasco do mundial realizado no país em 2014.
Analisando o discurso da transmissão da partida pela principal rede de televisão aberta, a Rede Globo, foi possível constatar diversas questões no que diz respeito a uma lógica narrativa que se enquadra em muitos conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu em seu clássico ensaio “Sobre a televisão” (1997).
Desde a tradicional bancada dos especialistas “fast-thinkers, os especialistas do pensamento arremesável”, Arnaldo Cézar Coelho, Walter Casagrande e Ronaldo “Fenômeno”, passando pela homogeneidade dos comentários que reproduzem a “circulação circular de informação” até o desfecho apocalíptico que acaba dramatizado pelo narrador/porta-voz do público Galvão Bueno, é possível identificar “contradições e tensões” na narrativa deste colegiado que constantemente se apresenta como legitimador simbólico do genuíno futebol brasileiro.

A esperança nas mudanças táticas da equipe é exaltada por todos os componentes, especialmente os “ex-jogadores”, durante o primeiro tempo. A bancada aponta que o “time está leve, ofensivo, um novo Brasil”. O porta-voz brada “Eu tô gostando do jogo!”, o fenômeno afirma “O time é outro Galvão”.
Sobre o adversário são feitas breves observações táticas e técnicas com ênfase na preocupação com o centroavante Paolo Guerreiro, jogador do Flamengo e artilheiro das duas edições anteriores do torneio. Destaque para uma observação feita pelo narrador Galvão que apresenta um estereótipo de que “Peruanos sempre tiveram um futebol de habilidade e nunca tiveram muita marcação”.
Talvez esta afirmação possa ser associada ao futebol praticado pela principal geração do país que disputou as Copas de 1970, 1978 e 1982 e tinha craques como Cubillas, Chunpitaz, Cueto, Muñante, mas percebe-se uma generalização comum nas narrações televisivas e no discurso das representações no âmbito esportivo que inclusive entra em contradição com outra observação do mesmo narrador, que alega que os peruanos estavam sendo desleais e catimbando bastante durante a primeira etapa.
O segundo tempo se inicia com mais dificuldades para a equipe brasileira mesmo com a continuidade da retórica da leveza da seleção. Casagrande, por exemplo, reitera sobre a postura do técnico Dunga: “Fez o que todos queriam. Time mais leve”.
Entretanto a suposta leveza brasileira não se traduziu em gol e os peruanos que voltaram melhor taticamente eram perigosos nos contra-ataques. Aos 29 minutos ocorre o lance crucial da partida. Após cruzamento pela esquerda, o atacante Ruidiaz completa com a mão na pequena área. Veja o gol clicando aqui
O lance foi muito rápido e a estupefação entre os membros da bancada global foi grande. A primeira reação do locutor denota tensão e incerteza. “Tudo leva a crer que foi com a mão. Tô na dúvida”.
Paralela à confirmação da irregularidade pelo atleta após análise de várias câmeras e enquadramentos de replay no estúdio, a confusão se estende no campo, pois o árbitro uruguaio decide consultar os auxiliares em um verdadeiro colóquio que dura infinitos segundos. A demora na decisão que valida o gol peruano causa indignação. A referência simbólica da emissora para questões de arbitragem afirma de forma efusiva “Uma vergonha. Tanta conversa para se marcar um gol”. Nem mesmo as clássicas lembranças aos gols de Maradona no mundial de 1986 e de Túlio ajeitando com a mão contra a Argentina na Copa América de 1995 contêm a insatisfação do narrador: “O que ninguém acreditava! Todo mundo dando como certo Brasil x Colômbia!”

A insatisfação cede espaço a uma contraditória indignação contra a C.B.F e seus gestores. Até o presente momento apenas uma referência negativa tinha sido feita de forma irônica ainda no primeiro tempo a ausência do presidente da entidade na competição por Galvão Bueno: “Já que o Marco Polo del Nero não viaja”. É de conhecimento notório que o cartola brasileiro não acompanhou a delegação alegando problemas pessoais, mas provavelmente temia pelos desdobramentos das investigações dos escândalos na FIFA.
Neste sentido, curiosamente após o gol peruano, as críticas da bancada da Rede Globo, publicamente uma parceira econômica com grandes vínculos com a instituição que comanda o futebol no país mencionam o conturbado contexto político em que se encontrava a entidade.
Até o garoto/prodígio/propaganda Ronaldo Fenômeno afirma categoricamente: “Isso é um reflexo político, falta de influência na Conmebol. Perdeu local de treinamento para o Equador”, menosprezando a equipe que até então estava bem a frente do Brasil nas eliminatórias sul-americanas.
O narrador complementa que é um reflexo da perda de “representatividade política” do país e, com o fim da partida e a eliminação precoce, brada: “Um dos maiores vexames do futebol brasileiro”. “Será que a comissão técnica vai resistir? Os dirigentes que resolvam o destino do futebol brasileiro”. A responsabilidade pelo fiasco passa a ser exclusiva dos parceiros políticos tão bajulados e protegidos tanto na emissora aberta quanta no canal fechado do conglomerado em diversas ocasiões passadas e também durante mais uma crise política da instituição que monopoliza um dos maiores símbolos da cultura nacional. O coração dos brasileiros pode até estar cansado de uma paixão cega, a “pátria de chuteiras” pode ser questionada como importantes intelectuais contemporâneos fazem atualmente, mas o fato é que a seleção ainda mobiliza inefáveis recursos econômicos e anímicos de milhões de pessoas.

O técnico Dunga, outrora capitão do tetra, referência de solidez e determinação, desmancha no ar. A leveza proposta em sua última partida a frente do selecionado nacional acabou sendo insustentável. Com requintes de crueldade em uma jogada ilegalmente dionisíaca, Dunga, talvez o representante mais apolíneo dos vitoriosos jogadores da seleção brasileira ao longo da História, sucumbiu tal qual uma muralha implodida.
A transmissão neste dia não teve o tradicional debate pós-jogo. Galvão fez menção a próxima corrida de fórmula-1 e proclamou “Obrigado pelo carinho, pela audiência” (o Deus oculto televisivo). Rede Globo sempre com você”. Não mais com o Dunga.
Parabéns! Tinha que ser comentarista na TV aberta e fechada! Show!