Alianças entre torcidas organizadas de futebol: a sociabilidade para além do aspecto clubístico entre Força Jovem do Vasco e Galoucura

Autora: Juliana Nascimento da Silva [1]

As Torcidas Jovens foram fundadas no final da década de 1960 e início dos anos 1970 e demarcaram um novo modelo de torcer. Com justificativas referentes ao afastamento das lideranças antigas e ao desejo de conceber um novo tipo de engajamento com o clube, o ímpeto à mobilização que fundamentou as divergências esteve vinculada ao período de protagonismo da juventude no Brasil e no mundo.

O destaque relacionado ao desejo de construir um modo torcer crítico, solidificado sob os aspectos do apoio e da possibilidade de contestação, é uma demanda do marco de fundação das Torcidas Jovens no Brasil, insatisfeitas com o torcer do modelo anterior.

Caracterizadas e alicerçadas em uma perspectiva geracional, as Torcidas Jovens inauguraram moldes de torcida fundamentados na coesão grupal, na identificação e na prerrogativa de participação ativa e engajada, delineando representações e sociabilidades que passaram a ser inerentes ao microcosmo das torcidas organizadas. Tal modelo se solidificou como padrão torcedor a partir do final dos anos de 1960, mesmo em agremiações que não carregam a terminologia “jovem” em seu nome. Isto é, o período de criação das torcidas dissidentes e das agremiações forjadas nos anos posteriores simboliza a inserção de uma perspectiva geracional caracterizada pelo “investimento simbólico rico e plural em experimentações” [2] .

                                                                                     Fonte da imagem: Vasco Notícias

A prerrogativa de um diálogo coletivizado torce não apenas com a estruturação e burocratização das entidades sob o viés grupal, mas também implica a inserção do indivíduo em um conjunto de símbolos a serem aderidos e na inclusão dos elementos identitários que compõem as rivalidades causalmente. A coletividade das torcidas organizadas a partir dos anos 1960 é ancorada na formação da coesão do coletivo por meio da ordenação do complexo de signos que orientam a conduta [3] , as práticas e as representações daqueles que se revestiram da identidade – em constante remodelamento – da agregação:

       Ao longo dessas três décadas foram responsáveis, em grande medida, pela formação de um “padrão de sociabilidade” peculiar. Padrão expresso numa determinada maneira de torcer e participar no futebol profissional, incorporando ao esporte símbolos próprios (distintivos das torcidas), inaugurando performances, uma estética, comportamentos verbais, regras, organização, consubstancializando um determinado estilo de vida específico na metrópole. [4]

 As dinâmicas de sociabilidade instaladas no microcosmo das torcidas organizadas instituíram novas perspectivas de comunicação. Tendo suas identidades formadas por um conjunto de símbolos aderidos por cada componente, as relações entre torcidas foram orientadas por padrões relacionais de oposição sob o mote da disjunção. Dessa forma, o relacionamento das torcidas organizadas se caracterizou por disputas de representação, calcadas na comunicação performática dentro e fora das arquibancadas: “era de poder, em última instância, que se tratava” [5] .

 O alcance da presença da torcedora está além da delimitação das praças esportivas, que é especificado posteriormente à existência de clubes de futebol e suas torcidas. A vivência do torcedor de futebol, sendo ele organizado ao não, acrescenta à sua bagagem enquanto indivíduo circulante do meio urbano a identidade clubística. No entanto, quando o processo de explosão territorial vivenciado pelas torcidas organizadas, exponenciado nas décadas de 1980 e 1990, a vinculação com a cidade fez emergir debates sobre as hostilidades derivadas de confrontos, que passam a ser premeditados.

Fonte da imagem: SoundCloud

A experimentação social dos indivíduos enquanto torturadores pluraliza as possibilidades de interlocução no corpo social. A introdução em uma coletividade, bem como as demandas que são implicações a partir do diálogo com o outro, são questões levantadas por Toledo:

Mais do que a suposta certeza de que sempre somos (meu nome e meu RG garantem isso no plano existencial e jurídico-formal), caberia a dúvida classificatória sobre quando e em que situações, afinal, somos algo. A vivência urbana multiplica a experiência das identidades em estímulos potencializados pela forma tecno-social que é o contexto metropolitano, como bem oferecido, há tempos, autores como Simmel.

Portanto, não estaríamos tão-somente sob a égide do verbo ser, mas também do verbo ter que igualmente, ou mais, produziria as mediações entre nossas vontades e experiências como indivíduos e as demandas coletivas, e entre nossas experiências coletivas em relação às outras tantas com as quais adquiriram conhecimento e troca, as ditas “outras culturas”. [6]

O entrelaçamento entre identidade pessoal e torcedora no cenário urbano, desse modo, deve ser reconhecido enquanto processo sonoro e produtor de novos signos. No cosmo das torcidas organizadas, as demandas coletivas a respeito da constituição de identidades, representações e práticas estão em constante diálogo com as demais torcidas, seja no estabelecimento de alianças ou de rivalidades. Para além do recorte espacial do estádio, as agremiações torcedoras ampliam seus locais de presença em uma conexão mais visceral com os espaços urbanos.

A intensificação das viagens e caravanas promovidas pelas torcidas organizadas impulsionou o estabelecimento da relação para além do estádio. O arranjo das alianças e das rivalidades contidas entre as agremiações, inclusive como forma de demarcar sua distinção em relação ao outro, entende-se à promoção dos conflitos no espaço da cidade, feitos anteriormente.

                                                Fonte da imagem: SoundCloud

Dessa forma, a década de 1980 apresenta uma constelação de sentidos e rearranjos nas dinâmicas entre torcidas organizadas. De vinculações históricas à prerrogativa da “síndrome de beduíno”, em que amizades e rivalidades se organizaram por tal pressuposto [7] , as agremiações remodelaram suas vinculações e estabeleceram alianças de maior vultuosidade, incluindo uma pluralidade de torcidas com associações e desafetos em comum.

 A chamada União Dedo Pro Alto reúne actualmente vinte e duas torcedoras de diferentes clubes [8] , incluindo eles os agrupamentos Força Jovem do Vasco, Mancha Alvi-Verde e Galoucura. O símbolo que dá o nome à união é caracterizado por intervalos dos punhos com o dedo médio para o alto. De caráter extra clubístico, a aliança interestadual é forjada a partir de princípios como a cooperação entre agremiações, uma vez em que estão incluídas em suas práticas reuniões antecedentes aos jogos, churrascos e fortalecimento nos enfrentamentos com torcidas rivais, especialmente em territórios considerados alheios.

Nesse sentido, procure-se aqui analisar especificamente a relação entre Galoucura e Força Jovem do Vasco. Aliadas e membros da União Dedo Pro Alto, as torcidas protagonizam conjuntas, celebrações, homenagens e até assistem a jogos juntas nas arquibancadas, ainda que contra o clube de predileção (aqui, trata-se do Clube de Regatas Vasco da Gama e Clube Atlético Mineiro ).

Fonte da imagem: Net Vasco

Em registro de internet feito em 2023 [9] , em função da partida disputada entre os clubes carioca e mineiro pelo Campeonato Brasileiro, uma caminhada precedente à peleja evidencia uma relação que extrapola a disputa clubística. Ambas as torcidas, de forma conjunta, organizam uma caminhada que se inicia em São Januário, estádio do clube cruzmaltino, até o Maracanã, local onde a partida ocorreu, entoando cânticos de exaltação à união e de intimidação em relação às agremiações que são rivais em comum, especialmente o Flamengo.

O vídeo, publicado no canal oficial da Força Jovem do Vasco no YouTube, é iniciado com um texto de apresentação do registro visual que exalta a união estabelecida entre as referidas torcidas organizadas: “união sinistra que ninguém segura, Força Jovem e Galoucura”. Apesar do espaço do Rio de Janeiro não ser considerado um território de domínio atleticano, seus torcedores, mesmo em caminhada com os membros da Força Jovem, estão com vestimentas em referência ao clube alvinegro mineiro, tornando explícitas a união e as lógicas de fortalecimento entre as torcida.

No primeiro momento do vídeo em que o áudio original da caminhada é escutado, percebe-se a entonação de um cântico próprio da torcida Galoucura, que exalta a agremiação e busca ofender a agremiação Máfia Azul, de ligação com o clube rival de Minas Gerais, Cruzeiro. Logo em seguida, as torcidas aliadas endossam o cântico ofensivo ao Flamengo, clube rival do Vasco da Gama no Rio de Janeiro, e a vinculação das torcidas que também são consideradas rivais.

Dessa forma, torna-se interessante analisar o aspecto das práticas das alianças, uma vez em que demonstram que suas sociabilidades têm fundamento próprio, inclusivo pelo aspecto lúdico. Para além da potencialização do contingente de mudança de enfrentamentos, as relações divergentes entre torcidas organizadas demonstram suas práticas de sociabilidade e de confraternização conjuntamente. Assim, mesmo nos dias em que uma torcida aliada poderia ser considerada rival potencial em função das lógicas clubísticas, as relações previstas no microcosmo torcedor evidenciam que existem prerrogativas próprias e modos de organização de sociabilidade de forma autônoma.

REFERÊNCIAS

Fontes

BASTIDORES CAMINHADA UNIÃO SINISTRA – FORÇA JOVEM VASCO E GALOUCURA DO GALO. MARACANÃ RIO DE JANEIRO. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cFTESvMPqcU . Acesso em 14 de saída. 2024.

Mapa das alianças entre torcidas organizadas. Disponível em: https://observatoriosocialfutebol.org/mapa-das-redes-multi-clubes-do-futebol-full-screen/ . Acesso em 14 de saída. 2024.

Bibliografia

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. A festa competitiva: formação e crise das torcidas organizadas entre 1950 e 1980. HOLLANDA, Bernardo Buarque de, MALAIA, João Manuel Casquinha, TOLEDO, Luiz Henrique de, MELO, Victor Andrade (org.). A torcida brasileira . Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

SOUZA, Adriano Lopes de. Alianças entre torcidas organizadas: análise a partir da união estabelecida entre a Torcida Organizada Galoucura, a Mancha Alviverde e a Força Jovem. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, 2018.

TEIXEIRA, Rosana da Câmara. Os perigos da paixão: filosofia e prática das torcidas jovens cariocas . Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Rio de Janeiro, PPGSA/IFCS/UFRJ, 1998.

TOLEDO, Luiz Henrique de. “Atalhos”: histórias de jovens, futebol e condutas de risco. In: Revista Brasileira de Educação (ANPED) . Dossiê Juventude, nº 6/7, 1997b.

TOLEDO, Luiz Henrique de. Torcer: a metafísica do homem comum.  Revista de História , n. 163, pág. 175-189, 2010.

TOLEDO, Luiz Henrique de. Transgressão e violência entre torcedores de futebol . Revista USP , v. 22, pág. 92-101, 1994.

Notas de Rodapé

[1] Doutoranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). Bolsista FAPERJ.

[2] TOLEDO, Luiz Henrique de. “Atalhos”: histórias de jovens, futebol e condutas de risco. In: Revista Brasileira de Educação (ANPED). Dossiê Juventude, nº 6/7, 1997b, p. 212.

[3] TEIXEIRA, Rosana da Câmara . Os perigos da paixão: filosofia e prática das torcidas jovens cariocas. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Rio de Janeiro, PPGSA/IFCS/UFRJ, 1998, p. 50.

[4] TOLEDO, Luiz Henrique de. Transgressão e violência entre torcedores de futebol. Revista USP , v. 22, pág. 92-101, 1994, pág. 94.

[5] HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. A festa competitiva: formação e crise das torcidas organizadas entre 1950 e 1980. HOLLANDA, Bernardo Buarque de, MALAIA, João Manuel Casquinha, TOLEDO, Luiz Henrique de, MELO, Victor Andrade (org.). A torcida brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, p. 109.

[6] TOLEDO, Luiz Henrique de. Torcer: a metafísica do homem comum. Revista de História , n. 163, pág. 175-189, 2010, pág. 182.

[7] SOUZA, Adriano Lopes de. Alianças entre torcidas organizadas: análise a partir da união estabelecida entre a Torcida Organizada Galoucura, a Mancha Alviverde e a Força Jovem. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, 2018.

[8] Mapa das alianças entre torcidas organizadas. Disponível em: https://observatoriosocialfutebol.org/mapa-das-redes-multi-clubes-do-futebol-full-screen/ . Acesso em 14 de saída. 2024.

[9] BASTIDORES CAMINHADA UNIÃO SINISTRA – FORÇA JOVEM VASCO E GALOUCURA DO GALO. MARACANÃ RIO DE JANEIRO. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cFTESvMPqcU . Acesso em 14 de saída. 2024.

 

 

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