Amor à camisa: mito ou realidade?

Recentemente o empresário Leo Rabello, dono carteira número 1 de agente no Brasil, declarou em entrevista a globo.com o seguinte: “o futebol que o público vê é uma grande mentira. O jogador de futebol vê dinheiro. Esse carinho, esse amor não existe, é folclórico. Quem balança a camisa quando faz gol, beija escudo, é hipócrita.” A entrevista foi destaque no referido site e repercutiu em conversas de torcedores que lamentavam que o “futebol tivesse chegado a este ponto”, como se houvesse tido um tempo onde se jogava por “amor à camisa”.

De fato, nos acostumamos a escutar que o futebol do passado é que era bom, entre outras razões porque supunha-se que o atleta jogava por “amor à camisa”. Em um universo profissional, é bastante plausível que os atletas pratiquem esporte em busca de um melhor contrato. Esta busca tem regulado os interesses dos jogadores desde o advento do profissionalismo em 1933, ainda que a torcida, sempre amadora, queira acreditar na existência absoluta de um tempo em que se jogava por “amor à camisa”.

A questão que se impõe é a seguinte: amor e paixão podem conviver com profissionalismo? Podem. O mundo “frio” dos negócios não exclui sentimentos passionais. Ser profissional no futebol não exclui o amor do atleta por um clube. Dentre exemplos da atualidade, o de Rogério Ceni no São Paulo fala por todos. Não duvidamos que, em busca de um melhor contrato, Ceni possa um dia encerrar a carreira em outro clube. Isto não destruirá o amor que sente pelo São Paulo, apesar de, possivelmente, macular sua relação com a torcida.

Ronaldo “fenômeno” declarou diversas vezes, ao longo de sua carreira que seu sonho era vestir profissionalmente a camisa do Flamengo. Em 2008, diante da lesão do atacante, o clube abriu as portas para sua recuperação. No período, Ronaldo treinou com os atletas, vestiu a camisa do clube e ratificou seu sonho em muitas entrevistas. Principalmente no programa “Bem, amigos”, do SporTV, e em entrevista a Ana Maria Braga, as declarações foram explícitas, evidentes, claríssimas. Nesta entrevista, inclusive, o presidente do Flamengo, por telefone, disse que as portas do clube estavam abertas ao atacante. Ronaldo agradece o convite e diz que precisa ser merecedor de vestir a camisa de seu “clube de coração”.

Toda a imprensa dava como certa a ida de Ronaldo para o clube, assim que ele estivesse recuperado de sua lesão. O final da história é mais do que conhecido. Ronaldo assina com o Corinthians e ao ser indagado da razão pela qual não teria ido para o Flamengo, o atleta responde que passou quatro meses no clube e não recebeu nenhuma proposta. Parecia magoado, se fez de vítima e se utilizou de um código amador, sentimental. Ao mesmo tempo deu a entender que a proposta era irrecusável, utilizando-se de um código profissional. Tanto em sua atitude como em sua explicação, Ronaldo oscilou entre o profissional, em busca do melhor contrato, e o amador, que se queixou de não ter recebido proposta do “clube de seu coração”. Terminou não sendo uma coisa nem outra e ratificou a hipótese de Roberto DaMatta de que a raiz do dilema brasileiro estaria centrada nesta oscilação de códigos pessoais (amadores) e impessoais (profissionais).

Outro caso bastante conhecido foi a transferência do ex-jogador Bebeto do Flamengo para o Vasco em 1989. Bebeto também se utilizou de códigos amadores para explicar sua transferência, como se a explicação profissional (a busca por um melhor contrato) não fosse jamais aceita pelas torcidas. (Ver HELAL, Ronaldo; COELHO, Maria Claudia. Modernidade e tradição no futebol brasileiro: o “caso Bebeto”. Pesquisa de Campo. Rio de Janeiro, n.2, p.91-99, 1995)

Um pouco antes, no início da década de 1980,  Roberto Dinamite, maior ídolo do Vasco, quase veio parar no Flamengo. Isto teria feito dele um ex-vascaíno? Que declarações ele daria caso a transação com o rival se concretizasse?

O curioso é observar que o “amor à camisa” faz parte da mitologia do futebol desde o advento do profissionalismo em 1933. O primeiro capítulo de “O negro no futebol brasileiro”, livro clássico de Mário Filho, cuja primeira edição data de 1947, intitula-se “Raízes do saudosismo” e ali observamos que o mito do “amor à camisa” existe há mais de seis décadas. Mário Filho inicia o livro da seguinte maneira: “Há quem ache que o futebol do passado é que era bom”. Isto em 1947. A frase tem sido repetida exaustivamente desde então.

Claro que hoje o futebol movimenta muito mais dinheiro, mas será que existiu mesmo um tempo em que se jogava simplesmente por “amor à camisa”? Observemos que até Pelé declarou recentemente que jogou no Santos em 1974 sem receber nenhum centavo. Será verdade? A declaração de Pelé era uma crítica a Ronaldinho Gaúcho, ainda indefinido em relação ao clube brasileiro que iria jogar. Ainda que comprovemos a veracidade do dito por Pelé, talvez tenha sido uma exceção em meio a tantos outros casos onde o que se observa é o atleta em busca de um melhor contrato.

A entrevista do empresário Rabello desnudou o futebol atual ou o futebol que existe desde o advento do profissionalismo em 1933? A única certeza nestes tempos todos é a de que o torcedor foi, é e será sempre um apaixonado, que lutará contra todas as evidências que demonstrem que seus ídolos jogam por dinheiro, ainda que possam amar o clube pelo qual estão jogando.

Matéria originalmente publicada (em versão resumida) na página 7 do jornal O Globo do dia 28 de janeiro de 2011.

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