Por Rafael Freitas
Localizado na zona norte do Rio de Janeiro, o quase centenário estádio Vasco da Gama, popularmente conhecido como São Januário, possui similaridades que marcam a sua presença na paisagem da cidade carioca. Sendo vizinho da Barreira do Vasco, favela que revela em seu nome o forte impacto que o clube possui em sua dinâmica, o equipamento esportivo é a materialidade que simboliza a forte relação entre o clube e a favela.
Os dias de jogos revelam de maneira muito evidente essa forte relação, principalmente no aspecto econômico. Bares, restaurantes e diversos estabelecimentos presenciam o aumento do fluxo de pessoas, que estabelece uma rotina mais extensa de vendas. Além disso, o trabalho ambulante é outro ponto de extrema importância, sendo presença quase obrigatória para a experiência que é ir a São Januário ou qualquer outro estádio do Brasil.
Até junho de 2023, os arredores do estádio vascaíno recebiam seus torcedores e os trabalhadores envolvidos com certa liberdade de fluidez. Com o trânsito livre para os ambulantes, grande parte deles residentes da Barreira, as vendas eram expressivas e geravam boa rentabilidade, segundo relato dos trabalhadores. A imagem abaixo evidencia o expressivo quantitativo, onde cada guarda-sol representa a presença de pelo menos um trabalhador imerso na multidão de vascaínos.

Este espaço presenciou um episódio que mudaria o panorama de diversas pessoas no dia 22 de junho de 2023, uma quinta-feira à noite, quando o Vasco da Gama enfrentou a equipe do Goiás pelo campeonato brasileiro de futebol. Na ocasião, descontentes com o resultado da partida, a torcida vascaína entrou em confronto com a polícia militar no interior do estádio, resultando em cenas fortes de enfrentamento que acabou se alastrando para as ruas do entorno.
Diante de tais acontecimentos, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) pediu a interdição do estádio, alegando falta de segurança para os frequentadores. Em sentença polêmica, o juiz Marcelo Rubioli afirmou que São Januário é “cercado pela comunidade da Barreira do Vasco”, com suas ruas estreitas gerando insegurança, sendo possível ouvir “comumente estampidos de disparos de armas de fogo” (SCHIAVINATO e PEIXOTO, 2023).
A decisão do MPRJ não foi bem recebida pelo Vasco da Gama, pela sociedade civil e mais especificamente pelos moradores da Barreira, muito por conta das palavras utilizadas. A presidente da Associação de Moradores da Barreira do Vasco, Vânia Rodrigues da Silva, reforçou o sentimento de tristeza ao presenciar o preconceito e o racismo com a favela (SCHIAVINATO e PEIXOTO, 2023). Em nota oficial, o Vasco da Gama se posicionou contrário ao fechamento do estádio, apresentando a posse das licenças necessárias para funcionamento, além de ressaltar o orgulho em estar inserido na Barreira do Vasco e próximo ao morro do Tuiuti e da comunidade do Arará, outras favelas da região (VASCO PROTESTA CONTRA DECISÃO DA JUSTIÇA, 2023).
A partir da polêmica, diversos atores da sociedade se mostraram solidários com a Barreira e a causa vascaína. Vereadores do Rio de Janeiro convocaram uma audiência pública para debater a interdição. Os jornais e os programas televisivos apontaram as motivações para tal processo como uma forma de estigmatização da favela. Já os vascaínos se organizaram para assistir um jogo do clube fora do Rio por meio de um telão na rua Roberto Dinamite para expor que a localização do estádio não era motivo de violência.
Com tal cenário, o Estado mostrou uma outra faceta, evidenciando um caráter flexível. A Prefeitura do Rio de Janeiro elaborou um relatório que revelou a importância do estádio e da realização dos jogos para a economia local. Segundo o Observatório do Trabalho Carioca, vinculado a Secretaria de Trabalho e Renda da Prefeitura, o comércio local teve queda de 60% do seu rendimento durante os 3 meses que São Januário esteve interditado, afetando 250 trabalhadores que eram contratados em dias de jogos, além de impactar mais de 300 trabalhadores informais e 18 mil pessoas direta e indiretamente (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2023).
A grande repercussão em torno da interdição acelerou o acordo entre o Vasco da Gama e o MPRJ para assinarem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para a volta dos jogos com público em São Januário. Com o TAC assinado, o Vasco voltou a receber sua torcida no dia 21 de setembro de 2023, onde a celebração dos cinco gols do time mandante sinalizavam uma ruptura com os últimos meses de angústia para os amantes do gigante da colina e os trabalhadores que necessitavam da febre futebolística nas ruas do bairro. A volta do Vasco ao seu estádio foi encarada como uma grande vitória contra o preconceito, com o clube reafirmando seus laços com a Barreira do Vasco e adotando um discurso de resistência.
Para as pessoas que ainda não voltaram a frequentar São Januário tudo parece ter voltado a sua normalidade. Porém, uma série de medidas foi tomada, causando mudanças na estrutura do espaço. Uma das ações, que parece ter passado despercebido pelo grande público, foi a restrição ao trabalho ambulante em determinados pontos do entorno do estádio. Já na reabertura, foi possível observar grades, como na imagem abaixo, que serviam de limite para os ambulantes. Nesses pontos, os trabalhadores eram impedidos de entrarem, justamente nos espaços de maior contingência de torcedores, afetando diretamente suas vendas.

Os espaços públicos, como calçadas e ruas, são os ambientes prioritários para esse tipo de trabalho, pois possibilitam o trânsito de pessoas e, consequentemente, o comércio (KITAMURA, MIRANDA e RIBEIRO FILHO, 2007). A localização e a sua ligação com o contingente humano é uma esfera de extrema importância para o serviço ambulante e toda a sua dinâmica de vendas. O espaço que possui o maior número de pessoas é o espaço prioritário para a comercialização dos itens pelos ambulantes. A partir do momento que o Estado coloca parâmetros que afetam a relação ambulante-espaço-consumidores, o impacto nos comerciantes se torna imediato. Yiftachel (2009), ao falar da importância do planejamento urbano, enuncia como essa ferramenta pode ser uma forma poderosa de moldar a vida e as subjetividades dos indivíduos. Para o autor, o planejamento, ou a suposta falta dele, fornece às autoridades um conjunto de tecnologias com as quais os governantes podem legalizar, criminalizar, incorporar ou expulsar.
Ao planejar os arredores de São Januário após a reabertura, a Prefeitura do Rio de Janeiro não pensou na legalização dos trabalhadores ambulantes, não os criminalizaram, mas de certa forma, os expulsaram de espaços com grande fluxo humano. Como pode ser visto no esquema a seguir, os espaços em branco são os “interditados” aos ambulantes, possuindo todos os portões de acesso para a entrada de torcedores, possuindo maior volume de pessoas. Já os espaços em preto, sem portões de acesso, são espaços “liberados” para o trabalho ambulante; enquanto os espaços em vermelho simbolizam as grades de separação.

Fato curioso dessa nova disposição, é a não relação dos acontecimentos que levaram a interdição do estádio com a ordenação do trabalho ambulante. O confronto entre torcedores e policiais se deu no interior de São Januário e se alastrou para fora após o fim da partida, onde existe, de maneira natural, uma dispersão dos ambulantes. Nos nove últimos jogos de 2023, o trabalho ambulante é “travado” com as barreiras antes dos jogos, tendo seu fluxo “liberado” já na saída dos torcedores do estádio, enquanto os problemas de acesso, como as grandes filas, insistem em acontecer.
Conforme os jogos aconteciam, diversas “estratégias de sobrevivência” foram sendo tomadas por esses trabalhadores, infiltrando-se no espaço interditado para a venda de seus produtos. A ideia aqui não é expor suas táticas justamente para não prejudicar a dinâmica de trabalho dessas pessoas, todavia, já em 2024, durante o campeonato carioca e o início do campeonato brasileiro, seguranças privados procuravam ações desses trabalhadores no interior desse “espaço em branco”, onde sua presença é agora proibida e os expulsavam. Questionados sobre essa situação, diversos ambulantes afirmaram seu descontentamento, indicando o impacto nas vendas como o principal malefício. Um dos trabalhadores ressaltou estar se sentindo excluído com tal medida, já outros apontavam uma regularização similar ao carnaval carioca como saída.
A reabertura de São Januário evidenciou um complexo panorama na relação Estado-informalidade-controle. Com mudanças que impactaram a forma de operação dos ambulantes, o espaço foi dividido entre a possibilidade, ou não, de atuação desses trabalhadores. A interdição do espaço, a partir de um ordenamento, e o livre acesso às áreas mais afastados das principais entradas do equipamento esportivo, com risco de apreensão de mercadorias, causaram perdas econômicas, além de afetarem a própria auto-estima dessas pessoas que passaram a se sentir inferiorizadas.
Para o futuro, com a reforma do estádio vascaíno cada vez mais discutida nos corredores cruz-maltinos, se apresenta como causa de discussão a presença, ou não, dos trabalhadores ambulantes nessa perspectiva que vê nas arenas esportivas, um evidente espaço em busca da capitalização de toda a vivência em torno de uma partida de futebol. Com a possibilidade da ocorrência de espaços de convivência no interior do estádio, se torna uma preocupação o futuro de centenas de pessoas que encontram nas imediações da Barreira do Vasco e do Vasco, uma forma de se sustentar, com um grande risco do processo de exclusão espacial ser ainda mais agressivo a partir de tal reforma.
O trabalhador ambulante, que sofreu com a interdição do estádio vascaíno por três longos meses, enxergou na reabertura um ressurgimento de suas atividades e ganhos, todavia, encontrou nas barreiras impostas uma outra interdição. As pequenas “transgressões” no interior do espaço embarreirado não são suficientes para reabilitar financeira e moralmente esses trabalhadores, estando reféns de tal medida imposta pelo poder público. Cabe agora à Prefeitura do Rio de Janeiro, o mesmo empenho de quando ficou ao lado do Vasco da Gama para o fim da interdição de São Januário, encerrando o processo de impedimento por barreiras iniciado em setembro de 2023.
Referências Bibliográficas
KITAMURA, Camila, MIRANDA, Mariana, RIBEIRO FILHO, Vitor. O comércio e serviços ambulantes: uma discussão. Caminhos da Geografia, v. 8, n. 23, p. 20-26, 2007.
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Proibição dos jogos em São Januário: o impacto na geração de trabalho e renda. Observatório do Trabalho Carioca. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: <Relatório – PROIBIÇÃO DOS JOGOS EM SÃO JANUÁRIO: O impacto na geração de Trabalho e Renda (prefeitura.rio)>. Acesso em: 10 abr. 2024.
SCHIAVINATO, Guilherme e PEIXOTO, Guilherme. Em parecer contra São Januário, juiz cita favela ao lado, ‘torcedores se embriagando’ e gera polêmica; sem jogos, comércio tem prejuízo. G1, 2023. Disponível em: <Em parecer contra São Januário, juiz cita favela ao lado, ‘torcedores se embriagando’ e gera polêmica; sem jogos, comércio tem prejuízo | Rio de Janeiro | G1 (globo.com)>. Acesso em: 04 mai. 2023.
Vasco protesta contra decisão da Justiça que manteve São Januário interditado: ‘Condição inaceitável’. O Globo, 2023. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/esportes/futebol/vasco/noticia/2023/08/05/em-nota-vasco-protesta-contra-decisao-da-justica-que-manteve-sao-januario-interditado-condicao-inaceitavel-e-sui-generis.ghtml>. Acesso em: 05 mai. 2024.
YIFTACHEL, Oren. Theoretical notes on ‘gray cities’: the coming of urban apartheid? Planning Theory, 8 (1), p. 88–100. 2009.