As delegações olímpicas, a carne e a identidade nacional argentina

Depois de quase duas décadas de tentativas fracassadas, as elites argentinas conseguiram enviar uma delegação aos Jogos Olímpicos de 1924 em Paris. Rapidamente, as participações olímpicas argentinas se articularam, citando o antropólogo Eduardo Archetti, como “um espelho de onde se vê e é visto ao mesmo tempo”. Desta maneira, as andanças dos/as desportistas argentinos no estrangeiro construíam, disseminavam e afirmavam uma identidade nacional. Até meados dos anos cinquenta, a tipificação e a diferenciação nacional através das excursões olímpicas incluíram uma crescente relação com outro elemento central do sentimento coletivo de pertencimento argentino: a carne.

Dadas as dificuldades para estabelecer o Comitê Olímpico Argentino (COA) no ano anterior, a inexperiência da incipiente direção olímpica nacional e a estrutura dos Jogos Olímpicos, a conformação da delegação que viajou a Paris em 1924 esteve repleta de inconvenientes. Um destes ressaltaria, obliquamente, o papel da carne na vida nacional. Antes da partida à Europa, houve queixas porque o barco onde viajaram os esgrimistas e os remadores não contava com as acomodações necessárias para que chegassem em condições competitivas adequadas. Tratava-se de um barco frigorífico contratado por empresas do ramo “que deviam carregar seus porões com carnes congeladas”. O barco atrasou sua partida pelo processo de carga, embora o capitão tenha consentido instalar dois estandes de esgrima no convés e embarcar um aparato de treinamento de remo. Criticando o COA por sua falta de planejamento, Román López, presidente da Federação Argentina de Esgrima, manifestou: “Para viajar em um barco como o ‘Vasari’ é necessário ser um verdadeiro patriota”. Esse barco transportou, inesperadamente, duas marcas identitárias da nação argentina: desportistas e carne. 

Publicidade do Vasari (The Review of the River Plate, 10 de outubro de 1919, p. 952).
Vista do Vasari (Bulletin of the International Union of American Republics, junho de 1909, p. 1018).

A Confederação Argentina de Esportes-Comitê Olímpico Argentino (CADCOA), instituição que substituiu o COA em 1927, também teve sérios inconvenientes, principalmente econômicos, para enviar uma delegação aos Jogos Olímpicos de 1928 em Amsterdã. Uma vez ali, a alimentação holandesa foi percebida como um obstáculo para a correta aclimatação dos desportistas. O capitão da equipe de luta declarou que os lutadores deveriam “acostumar seu organismo a mudança de alimentação, que entre parênteses não era grande coisa, em termos de variação e seu sabor, apesar de ser saudável”. Acrescentou: “Só o grande apetite que despertava o treinamento, fazia com que se ingerisse esta comida deficiente e monótona a que não está acostumada a maioria dos nossos atletas”. Ou seja, a delegação sentia saudades da comida “crioula” e possivelmente da carne, aspecto que a CADCOA tentaria corrigir no futuro.

Treinamento no convés de parte da delegação para os Jogos Olímpicos de 1928 em Amsterdã (Federico Dickens, Manual técnico de atletismo, 1946, sp).

Apesar da CADCOA ter lidado com numerosos problemas administrativos, econômicos e de condução relacionados à delegação nos Jogos Olímpicos de 1932 em Los Angeles, a alimentação não foi um deles. De fato, os desportistas parecem ter estado satisfeitos a respeito. Por exemplo, poucos dias antes que Juan Carlos Zabala ganhasse a medalha de ouro na maratona, Alejandro Stirling, seu treinador austríaco radicado na Argentina desde 1922, explicou que seu pupilo “come com grande apetite dois bifes no almoço e dois na janta” e que, além de treinar, lia e escutava discos “que lhe recordam a pátria distante”. O fulgurante triunfo do “nandú crioulo”, o apelido com que a crítica havia batizado Zabala, foi utilizado pela imprensa dominante para gerar imagens identitárias nacionais. Uma semana depois de ter ganhado a maratona, a delegação japonesa ofereceu uma festa em sua honra durante a qual lhe perguntaram por seu regime de treinamento e de alimentação. É de se supor que ressaltou os benefícios dos quatro bifes diários. 

Para os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, a CADCOA, que havia ignorado a intenção argentina de boicotar o evento organizado pela Alemanha nazista, implementou medidas para que toda a delegação tivesse “carne na quantidade e da qualidade a que estavam habituados os atletas”. Por um lado, a CADCOA argumentou que a carne favorecia o rendimento esportivo. Por outro, afirmou que “constitui a base da alimentação de nossos desportistas”. É que a carne, como diria mais de cinco décadas depois o escritor Juan José Saer, “não é unicamente o alimento base dos argentinos, mas o núcleo de sua mitologia e inclusive de sua mística”. Em Berlim, esporte e carne sincretizaram a nação argentina e seu imaginário. Considerando “o sério inconveniente que supunha a insegurança de encontrar durante a viagem e na estadia na Alemanha” o precioso e significativo alimento, a CADCOA conseguiu que a Junta Nacional de Carnes, um órgão criado em 1933 para regular o mercado em questão, doasse quinze toneladas de carne. O regime alimentício da delegação recomendava entre 250 e 350 gramas de carne diários. De todas as maneiras, o maratonista Luis Oliva consumia 500 gramas de carne diários, “preferentemente assada”, aludindo, como assinalou o antropólogo Jeff Tobin, a “comida mais fortemente associada ao nacionalismo argentino”.

A CADCOA inclusive enviou um cozinheiro a Berlim, Arnoldo Damm. Graças a sua “arte culinária crioula”, na Vila Olímpica “qualquer um logo e gostosamente se esquece da cozinha alemã”.  Damm conseguiu que ali “se respirasse um ambiente do país alegre e confiante, sempre menos pesado e rígido que o ambiente germânico”. A dieta da delegação servia para afirmar o nacional e diferenciar-se do outro significante. Em uma “significativa cerimônia” ao terminar os Jogos Olímpicos, Alberto León, presidente da delegação, entregou 300 quintais de carne às autoridades municipais berlinenses para que se distribuíssem em hospitais e sociedades de beneficência. Essa carne, destacou León, “testemunha a amizade germano-argentina e a gratidão da Argentina pela acolhida que teve sua delegação”. Segundo a CADCOA, “o gesto foi elogiosamente comentado pelas autoridades e diários berlinenses”.

Membros da delegação para os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim no refeitório nacional (La Nación, 21 de julho de 1936, p. 12).

Após a interrupção pela Segunda Guerra Mundial, os Jogos Olímpicos voltaram a ser organizados em 1948 em Londres. A CADCOA enviou uma numerosa delegação, bancada pelo governo de Juan Domingo Perón. Ao se despedir do grupo, Perón pronunciou: “É uma imensa satisfação que o Governo teve ao apoiar este tipo de manifestação, e é somente o início desse apoio que temos de levar até limites que muitos não imaginavam ainda”. Também acrescentou: “Para o futuro, procuraremos organizar melhor essas viagens, para que os atletas argentinos cumpram sua missão com o mínimo de sacrifício e o máximo de proveito”. A delegação enviada a Londres contou com uma remessa de carne própria, visibilizada além das fronteiras argentinas. Assim, no Chile se perguntaram se o rendimento nacional teria sido tão destacado “se a equipe não tivesse levado toneladas de carne”. Além de seu efeito no rendimento esportivo, a carne foi utilizada para festejar as conquistas em Londres. De acordo com o Noticias Gráficas, Delfo Cabrera celebrou sua medalha de ouro na maratona com um “assado a la criolla, sobre a grama de um parque jamais pisado pelo mais insignificante piquenique”, que surpreendeu aos “fleumáticos ingleses”.

Quatro anos mais tarde, quando Perón se despediu dos/as desportistas rumo aos Jogos Olímpicos de Helsinki, declarou que para esse tipo de evento era conveniente transportar “um pedaço da República ao lugar onde se realizam [os Jogos]”. Dessa maneira, a delegação teria todo o necessário para render plenamente. Por isso, Perón achou “oportuno mandar um barco, como fazemos, para que essa seja nossa casa, onde haja carne argentina, comida argentina, e água argentina; sabemos que isso não nos faz mal e, se não é a melhor, é boa”. Perón acreditava que um regime alimentício baseado na carne não era “científico”. Entretanto, sua abundância na delegação manifestava a Nova Argentina, na qual o crescente poder aquisitivo fomentava o consumo de carne e o esporte era promovido em todos os seus níveis como nunca antes e nunca depois. 

Juan Domingo Perón subindo no barco que transportou a delegação para os Jogos Olímpicos de 1952 em Helsinki (Mundo Deportivo, 19 de junho de 1952, p. 22).

Em parte devido às mudanças estruturais nos Jogos Olímpicos, que requeriam aos/às participantes residir na Vila Olímpica durante o evento, a partir do golpe de Estado que derrubou Perón em 1955, as delegações deixaram de projetar uma marcada relação com a carne, que sintetizou a identidade nacional. Não obstante, essa relação permanece. Por exemplo, dias antes do começo dos Jogos Olímpicos de 2008 em Pequim, o COA, instituição que substituiu a CADCOA em 1956, ofereceu um churrasco aos/às desportistas “para demonstrar que estão com as forças necessárias para fazer um bom papel na China”. Por uma ou outra via, as delegações e a carne continuam condensadas, com maior ou menor força, naquilo que se imaginava como meio que tipifica e que diferencia a identidade nacional. 

Texto originalmente publicado pelo site El Furgón no dia 17 de setembro de 2022.

Tradução por: Júlio César Barcellos.

Revisão por: Leda Costa e Carol Fontenelle.

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