“Deixa a criança ser criança.”
Das centenas de comentários que li sobre a proibição da presença de pais/responsáveis nas arquibancadas de jogos das categorias sub-11 e sub-12, este foi o que mais me chamou a atenção, por sua concisão e veracidade.

A medida visou coloca-los “de castigo” por conta do mau comportamento nas arquibancadas. Os xingamentos, a discriminação, a intimidação e o ódio atingiram níveis assustadores e fizeram com que a FPF tomasse a medida impedindo a presença de público em 144 jogos dessas categorias em duas rodadas do campeonato paulista.
Um vídeo foi veiculado nas redes sociais com depoimentos de algumas crianças expondo a forma como são pressionadas e ofendidas dentro de campo e como isso os afeta ou a companheiros de time. Confira no link abaixo:
Uma medida a ser aplaudida, ou será que não?
Nos comentários feitos em postagens sobre o fato em diversos perfis do Instagram que reproduziram o vídeo (inclusive no da FPF), a maioria das menções é de apoio e de denúncia de situações presenciadas, como a de um pai que disse ao próprio filho que era “seu pior pesadelo” e que, por conta de ter jogado mal, iriam “acertar as contas” em casa. Ou de outro pai que ordenava a seu filho que quebrasse a perna da menina Giovanna Waksman, jovem talento que, por falta de equipes femininas de base, jogou alguns anos junto com meninos, atuando pelo Botafogo e, na maioria das vezes, sendo a melhor jogadora em campo (meses atrás, ela foi convocada pela primeira vez para Seleção Brasileira principal).
Ao mesmo tempo, surgem críticas pesadas à medida, alegando que tudo não passa de “mimimi” ou “nutelagem”. Há quem defenda que futebol sem insulto não existe; que “bagunçar” o psicológico é estratégia; ou que esse ambiente hostil é necessário para que as crianças suportem a pressão quando se tornarem profissionais.
Mas será que todos ali têm esse anseio, ou o sonho maior é de quem está por trás dos alambrados?
Prazer ou investimento
No “mundo paralelo da bola”, cifras astronômicas gravitam em torno de jogadores de futebol e despertam desejos e ambições. Uma realidade de fama e dinheiro pode ser alcançada caso o talento consiga superar todos os obstáculos que separam uma criança “boa de bola” de um ídolo de futebol.
Sem dúvida, a bola sempre foi um meio de ascensão social, principalmente em países com enorme desigualdade como o Brasil. Desde que começou a rolar, por aqui, esse ideal se estabeleceu. Negros viram no futebol um espaço de inclusão, resistência e protagonismo, assim como operários de fábricas ou moradores de periferias que se atreveram a brilhar em um esporte de origem tão aristocrática.
Com a profissionalização do futebol e sua estruturação, as quatro linhas passaram a ser uma rentável e possível oportunidade de mercado de trabalho. Apesar de alguns clubes terem folhas salariais milionárias (a do Flamengo, por exemplo, foi de R$ 35 milhões em 2024), o salário médio de um jogador de futebol no Brasil é de aproximadamente R$ 4.200, uma boa quantia, se levarmos em conta nossa realidade econômica. Mas como se trata de uma média, é preciso registrar que milhares de jogadores profissionais do país não ganham mais do que um salário mínimo.
Por isso mesmo, as “peneiras” dos clubes são tão concorridas. Quem pode, banca “escolinhas” para o filho/a; tudo, na maioria das vezes, em nome de um investimento a médio ou longo prazo no sucesso do craque em potencial.
Um artigo de autoria de Dione Hélio de Almeida e Rafael Machado de Souza da Feevale, de Novo Hamburgo, na Revista Brasileira de Futsal e Futebol (https://www.rbff.com.br/index.php/rbff/article/view/422/362), expõe uma pesquisa sobre a participação e a influência dos pais na vida esportiva da criança durante a iniciação esportiva no futebol. Foram ouvidos pais/responsáveis sobre diversos aspectos ligados a essa temática e também crianças que praticam o esporte.
Alguns desses pontos talvez ajudem a explicar a excessiva cobrança junto às crianças. Os dados são de 2016, mas não creio, a partir das reações citadas em nosso texto, que tenham sofrido grandes alterações.
Sobre a participação desses pais/responsáveis na vida esportiva dos filhos, destacamos as seguintes respostas:
– Afirmam que a principal forma de apoio ao seu filho é acompanhando aos jogos, estando presente e participando: 80%.
– Assumem que, durante os jogos, ficam dando dicas de posicionamento para seus filhos; torcem gritando e gesticulando: 70%.
– Admitem que dão orientações para as crianças além do que o treinador orienta: 70%.
– Fazem comentários com os filhos sobre as jogadas, elogiando as melhores e combatendo as piores: 95%.
Sobre uma futura possibilidade da criança se tornar um jogador profissional:
– O interesse na participação do seu filho é que ele se torne profissional: 70%.
– Prefere que a atividade sirva apenas como diversão para o filho: 30%.
No questionário aplicado junto às crianças, foram levantados aspectos sobre seus desejos em relação ao futebol e sobre a influência dos pais em suas escolhas e desempenho:
– Só 60% das crianças ouvidas tiveram o direito de escolher qual atividade física praticar.
– O percentual de crianças que se sentem nervosas por seus pais assistirem a seus jogos é de 40%.
– Do total das crianças ouvidas, 60% afirmaram ter o desejo de se profissionalizarem.
– Esse é o mesmo percentual de crianças que dizem ser cobradas por seus pais por seu desempenho em campo.
– E 100% deles disseram que a opinião de seus pais é muito importante.
A partir dos dados coletados, os pesquisadores concluíram que: “…o filho percebe esta influência advinda de seus pais de forma bem explícita, os efeitos que estas trarão, para o bem ou para o mal, dependerão de como essa relação entre pais e filhos será abordada e como será o comportamento da família antes, durante e após os jogos, para com o filho, seus colegas e seu treinador, pois todos estes fatores estarão interligados com a vivência esportiva da criança no presente e terão uma forte relação com uma vida mais saudável do adulto no futuro”.
O que será o amanhã?
O livro “Brasil Futebol Rei”, com texto de Araujo Neto, fotos de George Torok e ilustrações de Aldemir Martins, fala de um futebol brasileiro que, a cada dia, parece mais distante. Publicado em 1966, disseca um país bicampeão mundial e defende que a popularização do esporte em nosso país é um dos principais fatores de nossa supremacia no “planeta bola”. Naquele tempo, os espaços para o surgimento de talentos eram muitos e a ludicidade do jogo, principalmente entre as crianças, seu grande motor. Não por acaso, o livro abre com a foto de um menino e uma bola. Outras tantas, com essa temática, se espalham pela publicação.

Hoje, quase não se joga mais bola na rua, o futebol de várzea minguou e os campos de peladas são raridade nos grandes centros urbanos. O futebol virou carreira e a bola deixou de ser brinquedo para virar instrumento de trabalho.
Talvez sejam reflexões de um sessentão saudosista, mas quando a gente deixa de admirar uma grande jogada do adversário; quando a gente passa a achar que um drible desconcertante é uma forma de desrespeito; quando a gente começa a acreditar que futebol feio não é problema, desde que gere vitórias; e, principalmente, quando a gente aceita o ódio como substituto do prazer na hora de ver um jogo de futebol, definitivamente, as coisas não vão bem.
Vários comentários do vídeo da Federação Paulista de Futebol afirmavam que por causa de atos como essa a proteção a futuros jogadores, o Brasil jamais conquistará outra Copa do Mundo. Em um país onde, nos últimos seis mandatos, cinco presidentes da CBF foram afastados por má gestão, colocar essa culpa nos ombros de crianças que só querem ser felizes com uma bola nos pés é uma baita covardia.