As palavras de Tite

Preciso pedir licença aos meus colegas Filipe Mostaro e Edson Gastaldo, pois o assunto desta postagem toca em questões relativas à propaganda nas Copas do Mundo e às formas de representação dos técnicos da seleção brasileira, assuntos dominados respectivamente pelos pesquisadores citados. Porém, o filme publicitário Preleção, protagonizado pelo técnico Tite, me provocou certa inquietação que resolvi compartilhar aqui.

A atuação de treinadores da seleção em comerciais é algo relativamente comum desde a década de 1970 e foi, gradativamente, aumentando até chegarmos, em 2014, quando Felipão atingiu o recorde de 7 participações em comerciais, o que fez dele o segundo maior garoto-propaganda da Copa daquele ano. Em relação a Felipão, é de se destacar algumas propagandas da empresa de telefonia Vivo, patrocinadora da CBF. Nos comerciais ““Hora mais triste”, “Cadeira 13” e “Tática” o técnico dividiu os holofotes com o “Ruivo da Vivo” como ficou conhecido o ator João Cortes, garoto-propaganda da referida companhia, desde 2013. A peça “Tática”, por exemplo, mostrava Ruivo ensinando a Felipão como funcionava o principal plano da operadora, fazendo uso de duas lousas que imitavam um campo de futebol.

Analisando, brevemente, as peças das quais Felipão participou, ressalta-se a construção de uma figura quase sempre cômica que, em alguns momentos, tenta lidar com as cobranças da torcida brasileira, configurada como exigente e que costuma palpitar quando o assunto é Copa.

1.png
Tática. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ABvr2L-NmfQ

Tudo muito diferente do que ocorre no conjunto de peças de propaganda produzidas pelo banco Itaú, um dos principais patrocinadores das seleções brasileiras de futebol, masculina e feminina. Nos comerciais, o técnico Tite surge como protagonista absoluto, envolto de uma aura de líder que une sensatez, sabedoria e espírito motivacional. Seu discurso valoriza o mérito, o trabalho e a dedicação para que se atinja um objetivo. Trata-se, portanto, de uma fórmula que não prioriza o talento e outros elementos caros ao imaginário do futebol-arte. A primeira propaganda é o filme Preleção que estreou no dia 19 de março durante o intervalo do Jornal Nacional, o noticiário mais visto do Brasil, evidenciando, assim, o forte investimento que o cercou assim como a importância conferida a Tite.

Paulo Coelho, Copresidente da agência DM9DDB, responsável pelo filme, afirmou que:

somente um exemplo inspirador seria capaz de passar essa mensagem. Estudamos a vida dele, escutamos milhares de minutos de áudios de entrevistas e preleções, tivemos longas conversas com o treinador para entender como ele pensava e agia. A estratégia da campanha enfatiza a resiliência, o ‘fazer por merecer’, a ambição, a determinação e a celebração, que são conceitos que nos tornam capazes de transformar a situação e formar novamente ‘Um Brasil Só’. A Seleção é isso, ela nos mostra que é possível mudar o jogo quando, juntos, mudamos a forma de encará-lo.[1] (Grifos Meus)

Em Preleção, vemos Tite falando em um vestiário cujos jogadores aparecem de costas sem possibilidade de identificação. Isso ocorre porque “Essa é a preleção para todos os brasileiros”, sentença que abre o comercial composto por diversas frases ditas pelo técnico. Enquanto o ouvimos, cenas do cotidiano são mostradas, ressaltando-se aqueles valores, já mencionados, como dedicação, superação de obstáculos e, sobretudo, trabalho:

Nós trabalhamos muito para chegar nesse estágio

                                           (…)

Resultado eu não tenho condições de assegurar, mas desempenho, trabalho, isso, sim.

                                          (…)

Nós trabalhamos pra caramba e agora vamos ver quem é o melhor”[2]

[1]Disponível em:

https://www.itau.com.br/_arquivosestaticos/Itau/PDF/imprensa/19_03_Itau_e_Tite_convocam_brasileiros_para_defender_a_Selecao_Brasileira_de.pdf)

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-contOE8fI4

2.png
Preleção. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=-contOE8fI4

Em seu clássico texto “A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro” Ronaldo Helal demonstra como, no Brasil, costuma-se glamourizar a malandragem, a irreverência e a indisciplina em detrimento da dedicação e do treinamento esportivo. Por isso, o autor se pergunta: “Por que falar em esforço seria um demérito nesse país?”

Alguns comerciais estrelados por Tite podem demonstrar que o esforço tem se tornado mais aceito na configuração dos discursos que giram em torno da seleção brasileira. Para reiterar essa hipótese recorro a mais uma peça de propaganda. Desta vez, trata-se de Uma só voz que é uma continuidade de Preleção. Nela, a fala de Tite é replicada pela boca de vários brasileiros de diferentes idades, gênero, profissões e em diversas situações do cotidiano:

A gente vai jogar para vencer

E a gente vai vencer

Porque vencer é vencer em campo. Não só no placar.

Vencer é quando a gente deixa tudo no gramado. É quando a gente tem a certeza que deu o máximo.

Que derramou cada gota de suor. Que tentou tudo o que dava

E tudo que não dava.

A gente pode sair com a estrela ou sem ela

Mas sairemos melhores. Me escute.

Enquanto tiver tempo, eu não vou desistir.

Enquanto tiver pulmão eu não vou parar de gritar

Enquanto meu coração estiver batendo no peito, minha mão estará batendo no peito

Superação faz parte da minha história

Da nossa

Porque sou brasileiro

E isso não vai mudar

Vamos entrar em campo

Todos nós

Porque não somos milhões

Somos uma só voz [1] (Grifos meus)

E essa “Uma só voz” vem de Tite que enfatiza a possibilidade de compreendermos a vitória para além do resultado em campo, sendo mais importante a construção de um processo que envolve luta, persistência e novamente… trabalho. Tite, então, diz: “A gente pode sair com a estrela ou sem ela. Mas sairemos melhores. Me escute”.[2] A princípio, a ressignificação da noção de vitória poderia ser bastante interessante de ser analisada.

Em trabalho anterior, havia demonstrado que o trauma da derrota de 1950 somada às conquistas de 1958, 62 e o triunfal tetra de 1970 consolidaram, no discurso de grande parte da imprensa esportiva, a vitória como o caminho compreendido como necessário e obrigatório de ser trilhado pela seleção brasileira (Costa, 2008). Porém, as palavras do treinador Tite em Uma só voz são muito claras quando apontam para o fato de que “vencer é vencer em campo. Não só no placar. Vencer é quando a gente deixa tudo no gramado. É quando a gente tem a certeza que deu o máximo.”[3] (Grifos nossos)

Porém, mais adiante veremos que essa postura não é tão rebelde assim.

[1] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=pz9BJYgmekw

[2] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=pz9BJYgmekw

[3] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=pz9BJYgmekw

3.png
Fonte:https://publicidadeecerveja.com/2018/04/20/itau-lanca-webserie-entrelinhas-protagonizada-por-tite-com-seis-episodios/

Além dos comerciais de TV, Tite protagonizou a web serie Entrelinhas, também produzida pelo banco patrocinador da seleção. Web series são histórias seriadas distribuídas on line e que, geralmente, possuem um formato mais curto que as séries televisivas. Esse tipo de entretenimento passou a ser usado no campo da propaganda que viu na era da convergência novas possibilidades de interação com o público consumidor: “Os profissionais de marketing procuram moldar a reputação das marcas não através de uma transação individual, mas através da soma total de interações com o cliente – um processo contínuo que cada vez mais ocorre numa série de diferentes ‘pontos de contato’ midiáticos.” (Jenkins, 2008, p. 96).

Entrelinhas possui seis episódios que de acordo com Eduardo Tracanella, diretor de marketing institucional do referido banco, são baseados em uma entrevista de duas horas realizada com Tite no Maracanã. Entrelinhas mostra os principais valores defendidos pelo treinador e todo trabalho por ele desenvolvido nos bastidores do jogo e que, segundo Tracanella, não chegam a se tornar públicos[1]. A direção do material ficou a cargo de Heitor Dhalia renomado cineasta que esteve à frente de produções como O Cheiro do Ralo (2006), à Deriva (2009) e Serra Pelada (2013)

O primeiro dos episódios é “Treino sem caneleira” que trata da importância da lealdade e que chegou a ser exibido no intervalo do programa Caldeirão do Hulk. Os outros cinco são: “Superar o medo” (coragem), “A braçadeira de capitão” (responsabilidade); “Treino é jogo” (dedicação); “Zona de conforto” (confiança); “Um time inspirador” (excelência), todos disponíveis no site do banco e no canal Youtube. A média de duração de cada episódio é de 1m30s nos quais Tite explana sobre diversos aspectos que considera relevantes tanto para o jogo em campo quanto para a vida, pois “o futebol é assim, a vida é assim” [2]

Como afirmou Filipe Mostaro, a imagem do treinador “serviria a vários interesses envolvidos no esporte. Focada na lógica capitalista de resultados imediatos, a explicação do desempenho da equipe é reduzida ao trabalho do treinador, ignorando outros fatores” (2016, 79). Provavelmente por isso, os técnicos são figuras carimbadas na galeria de vilões da seleção em Copas do Mundo (Costa, 2008).  O último deles, Dunga, fazia das vitórias seu escudo protetor contra as críticas a um estilo de treinador que, segundo grande parte da imprensa, não se adequava ao consagrado jogo bonito brasileiro – pelo menos o da seleção. Esse escudo mostrou-se bastante frágil, pois veio a eliminação da Copa do Mundo de 2010, o que fez de Dunga um dos vilões mais massacrados pelo jornalismo esportivo. Mas como Dunga é um vilão de 7 vidas, ele até que retornou ao cargo, em 2013, voltando, entretanto, para o panteão da vilania pouco tempo depois.[3] Felipão, por sua vez, caiu na armadilha de afirmar que era obrigação da seleção a conquista da Copa de 2014[4] , virando alvo de raiva e chacota após o histórico 7 x 1 contra a Alemanha.

Tite ao contrário de muitos treinadores que o antecederam possui uma incrível habilidade para oratória juntamente com um vistoso currículo à frente de equipes nacionais. Tite também conta com ampla aceitação da mídia esportiva que, até o momento em que escrevo este texto, pouco se manifestou contrária às escolhas do treinador. E em ralação a essa questão, o banco patrocinador da seleção fez um episódio especial intitulado “Convocação” no qual Tite afirma que “o privilégio é do desempenho e da conduta. Vocês foram escolhidos porque mereceram estar aqui e o técnico acompanhou tudo que foi possível para que a gente julgasse e entendesse que vocês merecem estar aqui”.[5] (Grifos nossos)

É interessante ver que, de algum modo, as peças publicitárias – o que inclui a web serie Entrelinhas –, regidas pelo discurso de Tite, conferem uma dimensão mais humana ao futebol e aos jogadores que costumam, frequentemente, ser transfigurados em ídolos quase que oriundos de outras galáxias, tamanho o poder com os quais são revestidos. Para Tite, os jogadores se igualam às pessoas comuns a partir de atributos tomados como fundamentais aos indivíduos entre os quais destaca-se a competência: “Sabe o que eu acho da malandragem, do cara deixar a perna, do cara simular: Falta de competência.”[6]

Por outro lado, é questionável e cansativa a forte valorização da meritocracia, elemento capaz de seduzir, mas de, também, perigosamente mascarar as profundas desigualdades presentes em nossa sociedade. O discurso de Tite envolve o futebol com uma atmosfera típica do mundo empresarial, daí as palavras motivacionais tão bem elaboradas e proferidas por alguém que aparenta dominá-las tão bem. Por isso, soa estranho e, até mesmo pouco coerente, que o episódio “Um time inspirador”, que fecha a web serie Entrelinhas, seja dedicado à seleção de 1982:

Pra mim ela venceu …. Ela não foi campeã … Pra mim, ela foi a minha campeã pela beleza, pela qualidade, pela plasticidade e nós estamos num momento de resgate da seleção. De resgatar a autoestima, resgatar esse bom futebol. Ela é o protótipo, a marca daquilo que eu vejo como excelência, daquilo que é de criativo, de competitivo, vejo a seleção de 1982.[7]

O tema desse episódio é a “excelência” que está fortemente associado à ideia de merecimento individual verificável via desempenho. “Pra mim ela venceu” diz Tite, o que aponta para o alargamento dos sentidos da vitória, mas um alargamento que no final das contas reforça seu reinado, mantendo uma perspectiva de mundo em que a competitividade e a performance são valores fundamentais. Nesse sentido, Tite não consegue abalar o imperativo da vitória tanto no futebol quanto no cotidiano. E creio nem ser esse o seu propósito.

[1] Fonte: https://grandesnomesdapropaganda.com.br/anunciantes/itau-lanca-webserie-protagonizada-pelo-tecnico-tite/

[2] “Superar o medo” Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=RFu7K3XVhMw

[3] O vilão de Sete vidas. https://www.leme.uerj.br/2014/07/29/o-vilao-de-sete-vidas-da-tragedia-de-1950-a-vergonha-de-2014/

[4] https://oglobo.globo.com/esportes/felipao-assume-selecao-fala-em-obrigacao-de-vencer-copa-em-casa-6869580

[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F1dPe9Q-StE

[6] Episódio Entrelinhas (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qV4LxvF1Lr8)

[7] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p8-Z6zUf1kQ

https://www.youtube.com/watch?v=p8-Z6zUf1kQ

A analogia entre futebol e vida que perpassa as propagandas aqui mencionadas confere uma dimensão motivacional que ultrapassa as quatro linhas e em cuja configuração cabe o talento, mas desde que sempre anexado ao trabalho. Sendo assim, Tite segue aquele modelo de representação do treinador centralizado na lógica capitalista (MOSTARO, 2016) e, não sem motivos, foi escolhido como garoto-propaganda de um banco. Mas desta vez, destaca-se uma visão meritocrática, empreendedora que entende o mundo como uma árvore que oferece oportunidades iguais para todos, bastando vontade para colhê-las.

De um modo geral a sensação é de que reina um grande marasmo nesse mundo desencantado que se desenha nas palavras de Tite. Um mundo no qual dificilmente é possível erguer aquelas narrativas míticas com seus heróis e vilões em que, muitas vezes, o acaso decide o destino de uma partida. As palavras de Tite me fazem sentir saudades do velho futebol-arte cuja teia discursiva, eu tantas vezes tentei descontruir.

Referencial bibliográfico

COSTA, Leda. A trajetória da queda: as narrativas da derrota e os principais vilões da seleção brasileira em Copas do Mundo. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, 2008.

HELAL, Ronaldo. A construção de narrativas da Idolatria no futebol brasileiro. Alceu. V. 4. N.7 – p.19 a 36, julho/dez.2003.

MOSTARO, Filipe; HELAL, Ronaldo. BRINATI, Francisco Ângelo. De “selecionador” a “celebridade”, de “disciplinador” a “vilão”: reflexões sobre as representações do treinador em diferentes contextos. Eptic.  Vol. 18, nº 1, janeiro-abril 2016.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2008.

Deixe uma resposta