‘Blitzkrieg’ e ‘Divisão Panzer’: a retórica da guerra na mídia brasileira, na cobertura de imprensa da seleção da Alemanha Ocidental na Copa de 1990

A retórica da guerra se fez presente na mídia brasileira por ocasião da cobertura esportiva da Copa do Mundo de 1990. Naquela edição disputada na Itália, a seleção da Alemanha Ocidental sagrou-se tricampeã mundial ao derrotar a seleção da Argentina, por 1 a 0, na final, em seu último título conquistado antes da Reunificação do país, oficializada em 03 de outubro daquele ano, após ter sido campeã nas Copas de 1954, na Suíça, e de 1974, jogando em casa.

Entretanto, o modo como dois periódicos brasileiros – o Jornal dos Sports e o jornal O Globo – lançaram mão da retórica da guerra no discurso jornalístico se estabeleceu de uma maneira específica: o passado de guerras da Alemanha, sobretudo na primeira metade do século XX, fez com que a seleção da Alemanha Ocidental fosse associada com os seguintes termos do jargão bélico: “Blitzkrieg” e “Divisão Panzer”. Jogo após jogo, os comandados do técnico Franz Beckenbauer passaram a ser apontados na imprensa brasileira e mundial como favoritos à conquista do título.

No contexto da Segunda Guerra Mundial, o termo bélico “Divisão Panzer” (em Alemão: Panzerdivision) designava divisões militares formadas por veículos blindados, majoritariamente tanques (Panzer), do Exército (Wehrmacht) da Alemanha nazista. Nos primeiros anos da guerra, uma Divisão tinha, aproximadamente, entre 200 e 300 tanques e era dividida em dois regimentos, um de infantaria motorizada e outro, de infantaria blindada (ALTHAUS, 2016). Na historiografia do conflito, as Divisões Panzer são apontadas como tendo sido cruciais nas operações militares que se tornaram conhecidas mundialmente sob o termo “Blitzkrieg” (em Português: “guerra relâmpago”), a partir da invasão da Polônia: “Uma palavra passou para o vocabulário mundial em setembro de 1939: ‘Blitzkrieg’. A palavra descrevia a rápida e letal campanha que foi a conquista da Polônia em apenas um mês” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1999). As táticas de “Blitzkrieg” demandavam a concentração de equipamentos militares (infantaria motorizada, tanques, aviões e peças de artilharia) ao longo de uma pequena faixa. Essas forças abriam uma brecha nas linhas de frente do exército inimigo, permitindo que Divisões de tanques blindados penetrassem rapidamente e circulassem livremente atrás das linhas inimigas, causando choque e desorganização entre suas defesas (RODRIGUES, 2015, p. 14-15) (Fig. 1).

Fig. 1 – Blitzkrieg durante a Operação Barbarossa, no Sul da Rússia, 24ª Divisão Panzer, 1941

(BUNDESARCHIV. Bild 101I-218-0504-36, Russland-Süd, Panzer III, Schützenpanzer, 24.Pz.Div.)

Em nossa Pesquisa, detectamos uma primeira incidência do termo bélico “Divisão Panzer” associado à seleção da Alemanha Ocidental na edição nº 20.658 do jornal O Globo, de 14 de junho de 1990, em cujo “Caderno de Esportes” foi publicada uma matéria destacando sua qualidade técnica e tática após a vitória contra a seleção da Iugoslávia, na primeira rodada do Grupo D, que reunia também as seleções dos Emirados Árabes Unidos e da Colômbia: “A nova ‘Divisão Panzer’”, matéria não assinada, direto de Roma. Além de constar no título, o termo bélico “Divisão Panzer” é associado à seleção alemã ocidental na seguinte passagem:

A Alemanha Ocidental é a fotografia exata de uma seleção devastadora e que começa a ser conhecida como a “Divisão Panzer” dos anos 90. Cada Copa do Mundo tem sua história, seus mitos e seus campeões. A seleção da Hungria de Puskas e a da Holanda, a famosa “Laranja Mecânica”, brindaram a torcida com um futebol-arte e não ganharam o título. Perderam para a forte Alemanha. Pois, agora, é a própria Alemanha que brilha com um time aplicado, forte e de muita técnica, sob a regência de Lothar Matthäus. (O Globo, ed. 20.658, 14 jun. 1990, p. 9; grifos nossos)

De modo recorrente, na cobertura esportiva da imprensa brasileira, as referências aos títulos conquistados pelas seleções da Alemanha Ocidental nos Mundiais de 1954 e, respectivamente, 1974 sempre são de enaltecimento às seleções derrotadas nas finais, a da Hungria na Suíça e a da Holanda na própria Alemanha Ocidental, como representantes do “futebol-arte” (O Globo, ed. 20.658, 14 jun. 1990, p. 9), diferindo do futebol praticado por uma “Divisão Panzer”, agressiva e aplicada no ataque. Nesse sentido, o articulista deixa a entender que as conquistas de 1954 e 1974 foram “injustas”, assim como seria “injusto” a seleção alemã ocidental fracassar naquela edição do Mundial: “O destino pode ser ingrato com os alemães de Beckenbauer, mas seria mais uma injustiça. Pelo futebol apresentado contra a Iugoslávia, a “Divisão Panzer” merece ser finalista e Matthäus, o grande craque desta Copa.” (O Globo, ed. 20.658, 14 jun. 1990, p. 9; grifos nossos)

Nesse sentido, parece que o articulista do jornal O Globo procura atribuir uma designação à seleção da Alemanha Ocidental – a de “Divisão Panzer” –, a qual, posteriormente, em termos memorialísticos, poderia integrar o conjunto de mitos das Copas do Mundo, como a “Seleção de Ouro” húngara e a própria “Laranja Mecânica” holandesa. Outra matéria, “Time de Beckenbauer encanta Itália”, não assinada, direto de Roma, publicada na edição nº 20.659 do jornal O Globo, de 15 de junho de 1990, tratou de reafirmar tal associação, ao trazer a opinião de um ex-jogador da seleção alemã ocidental das Copas de 1982 e 1986, Hans-Peter Briegel (1955*), cujo apelido, por seu porte atlético e vigor físico, era justamente “Panzer”:

A seleção da Alemanha Ocidental, bem cotada após a goleada sobre a Iugoslávia, é uma unanimidade até agora. Os elogios vêm de toda parte. Carlos Alberto Parreira, técnico dos Emirados Árabes, afirma que “é uma perfeita máquina de futebol”. O alemão Briegel, titular da equipe em 1986, a chama sem modéstia de “Divisão Panzer”. (O Globo, ed. 20.659, 15 jun. 1990, p. 3; grifos nossos)

Por sua vez, na edição nº 20.662, de segunda-feira, 18 de junho de 1990, a retórica da guerra volta a ser empregada na matéria “Beckenbauer ainda não decidiu quem substituirá Brehme”, não assinada, direto de Erba, na Itália: “Um tanque de guerra sem freios, ladeira abaixo. Assim vem sendo definida a Alemanha Ocidental pelos italianos. Se eles apostam na chegada da equipe de Beckenbauer, jogadores como Lothar Matthäus também prometem a conquista do tri.” (O Globo, ed. 20.662, 18 jun. 1990, p. 9; grifos nossos) Certamente, o passado de guerras fez com que, de modo estereotipado, alemães fossem associados a atitudes belicistas.

Entretanto, chegava o dia do confronto entre as seleções da Alemanha Ocidental e da Tchecoslováquia, pelas quartas-de-final da Copa do Mundo. Desta feita, a edição nº 20.675 do jornal O Globo, de domingo, 01 de julho de 1990, exibiu a manchete “’Blitzkrieg’ em Milão” em letras garrafais. Mais uma vez, portanto, fazia-se presente a retórica da guerra em meio à cobertura esportiva, em que a “Blitzkrieg” alemã, centrada no ataque constante, imporia uma derrota sobre a estratégia defensiva da seleção tcheca (O Globo, ed. 20.675, 01 jul. 1990, p. 12). 

Já o Jornal dos Sports empregaria a retórica da guerra de outro modo, isto é, visualmente, com a representação de um “Panzer” associado à seleção da Alemanha Ocidental, em uma charge de autoria do cartunista Djalma, publicada na edição nº 19.081, de 02 de julho de 1990 (Fig. 2):

Fig. 2 – Charge de Djalma antes da semifinal Alemanha Ocidental x Inglaterra

(Jornal dos Sports, ed. 19.081, 02 jul. 1990, p. 2)

Em termos de descrição, essa charge diz muito: um “lorde” inglês, de fraque e cartola exibindo a bandeira de seu país, procura barrar o avanço de um “Panzer” alemão, com a bandeira da Alemanha Ocidental, que segue seu caminho rumo a Roma, fazendo referência à partida que seria disputada no dia 04 de julho de 1990 entre as duas seleções, pela semifinal do torneio. Essa mesma abordagem seria mantida na matéria “Duelo de continentes”, não assinada e publicada na edição nº 19.083 do Jornal dos Sports, de quarta-feira, 04 de julho de 1990:

Se tiver que enfrentar a Alemanha, a Argentina terá sua tarefa muito dificultada. A Seleção Alemã tem o ataque mais positivo da competição e houve jogos em que demonstrou um extraordinário poderio, assemelhando-se a uma divisão panzer num campo de futebol. Apesar de em outras oportunidades ter conseguido apenas o necessário para continuar na competição. (Jornal dos Sports, ed. 19.083, 04 jul. 1990, p. 2, grifos no original)

O mesmo foi constatado no dia seguinte ao da final do Mundial, na edição nº 19.088 do Jornal dos Sports, de segunda-feira, 09 de julho de 1990, em que foi publicada mais uma charge de Djalma, na qual o cartunista opôs um Matthäus triunfante, em seu “Panzer”, levantando a Taça FIFA, enquanto um cavalo em disparada deixava um desolado Maradona caído no chão (Fig. 3):

Fig. 3 – Charge de Djalma após a final Alemanha Ocidental x Argentina

(Jornal dos Sports, ed. 19.088, 09 jul. 1990, p. 2)

Por fim, ressaltamos que esse tipo de procedimento na cobertura esportiva não era uma novidade em relação à Alemanha Ocidental e a sua seleção. Já por ocasião da Copa de 1954, quando faziam apenas quatro anos que a seleção, banida pela FIFA até setembro de 1950, voltava a competir em um Mundial, a associação com o passado recente de guerra fora estabelecida na matéria “Por Que A Alemanha Levantou ‘A Copa’”, assinada por Geraldo Romualdo da Silva, direto de Berna, na Suíça, na qual o jornalista descreve o treinador Sepp Herberger como “o Rommel do Football”: 

Eis que a Alemanha dispõe de um estrategista estupendo, senhor de uma astúcia incomparável. Seep Herberger (sic) (guardem bem êste nome!), soube conduzir seus soldados a um sucesso sem precedentes na história do football, desde os tempos mais longínquos.

[…]

Como nos instantes culminantes da guerra ou das guerras de verdade, Herberger mostrou ser um general de primeira ordem. Um autêntico Rommel. (Jornal dos Sports, ed. 7.623, 09 jul. 1954, p. 5; grifos nossos)

Portanto, Geraldo Romualdo da Silva procede dessa maneira ao associar Sepp Herberger a um dos principais generais alemães da Segunda Guerra Mundial: Johannes Erwin Eugen Rommel (1891-1944), conhecido pela alcunha “A Raposa do Deserto” (em Alemão: der Wüstenfuchs), muito em decorrência de sua atuação no comando do Afrika-Korps, na campanha do exército alemão no Norte da África durante a Segunda Guerra Mundial (REZENDE FILHO, 2010). Assim, astucioso como uma “raposa”, o técnico Sepp Herberger teria sido o estrategista que levara a seleção alemã ocidental ao triunfo contra a fortíssima seleção da Hungria. Por isso, o texto está recheado de expressões como “[d]estruiu sempre, com eficiência, as cargas inimigas, de uma maneira sistemática” e “[s]ua contra-ofensiva foi mortal” (Jornal dos Sports, ed. 7.623, 09 jul. 1954, p. 5). Entretanto, não podemos perder de vista, que entre 1954 e 1990 já haviam se passado 36 anos, porém, mesmo décadas mais tarde, a retórica da guerra ainda se fazia presente na cobertura esportiva da seleção da Alemanha Ocidental com toda a sua intensidade.


Referências bibliográficas

ALTHAUS, Johann. Zweiter Weltkrieg: Die unheimliche Vermehrung der deutschen Panzer. Welt. 01 fev. 2016. Disponível em: https://www.welt.de/geschichte/zweiter-weltkrieg/article151698136/Die-unheimliche-Vermehrung-der-deutschen-Panzer.html. Acesso em: 21 jan. 2025.

BUNDESARCHIV. Bild 101I-218-0504-36, Russland-Süd, Panzer III, Schützenpanzer, 24.Pz.Div. Bundesarchiv. Bild 101I-218-0504-36 / Dieck / CC-BY-SA 3.0, CC BY-SA 3.0. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=5476517. Acesso em: 21 jan. 2025.

FOLHA DE SÃO PAULO. Invasão pôs “Blitzkrieg” no vocabulário. Folha de São Paulo, 29 ago. 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft29089913.htm. Acesso em: 21 jan. 2025.

O GLOBO. Beckenbauer ainda não decidiu quem substituirá Brehme. O Globo. ed. 20.662, 18 jun. 1990, p. 9.

O GLOBO. ‘Blitzkrieg’ em Milão. O Globo. ed. 20.675, 01 jul. 1990, p. 12.

O GLOBO. A nova ‘Divisão Panzer’. O Globo. ed. 20.658, 14 jun. 1990, p. 9.

O GLOBO. Time de Beckenbauer encanta Itália. O Globo. ed. 20.659, 15 jun. 1990, p. 3.

JORNAL DOS SPORTS. Charge de Djalma (1). Jornal dos Sports. ed. 19.081, 02 jul. 1990, p. 2.

JORNAL DOS SPORTS. Charge de Djalma (2). Jornal dos Sports. ed. 19.088, 09 jul. 1990, p. 2)

JORNAL DOS SPORTS. Duelo de continentes. Jornal dos Sports. ed. 19.083, 04 jul. 1990, p. 2.

JORNAL DOS SPORTS. Por Que A Alemanha Levantou A Copa. Jornal dos Sports. ed. 7.623, 09 jul. 1954, p. 5.

REZENDE FILHO, Cyro. Rommel: a raposa do deserto. São Paulo: Contexto, 2010.

RODRIGUES, Luis Fernando Confessor. A guerra relâmpago (Blitzkrieg) alemã: da teoria à capacitação estratégica, tática e tecnológica bélica e militar ao êxito nos campos de batalha (1939-1940). (Monografia em História), Uberlândia: Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), 2015. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/18014. Acesso em: 21 jan. 2025.

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