Introdução
Desde a década de 1990, surgiram no Brasil diversos eventos esportivos indígenas. O mais notório deles, os Jogos dos Povos Indígenas, tomou proporções nacionais, reunindo dezenas de etnias, habitantes de todas as regiões e biomas brasileiros, para celebrar a diversidade cultural dos povos originários. Essa experiência foi capitaneada pelos irmãos Marcos e Carlos Terena e inspirou a criação de diversos outros eventos locais. Atualmente, venho me dedicando ao estudo dos Jogos Indígenas Pataxó (JIP), que acontecem anualmente na aldeia de Coroa Vermelha, no município de Santa Cruz Cabrália (BA). O lema do evento, incorporado dos Jogos dos Povos Indígenas, é “o importante não é competir, e sim, celebrar”, o que já começa a indicar as diferenças entre estes eventos esportivos e aqueles preconizados em nossa sociedade.
O evento é composto por apresentações e modalidades esportivas criadas a partir de práticas tradicionais indígenas. As equipes são formadas pelas diferentes aldeias Pataxó, que se enfrentam em disputas em formato de exibição, sem que ao final do evento exista a necessidade de proclamar a equipe campeã. O objetivo dos Jogos Indígenas Pataxó é reunir o maior número possível de indígenas da etnia para fortalecer sua identidade cultural e reivindicar seus direitos políticos, tendo como pauta principal a demarcação e preservação dos territórios.
Dentro dos estudos sociais do esporte, desde a fundação do campo no Brasil, pesquisadores como Da Matta (1982) e Guedes (1977) já indicavam o potencial das práticas esportivas para o fortalecimento de identidades, uma vez que, em sua estrutura, tornavam muito tangível uma separação simbólica entre um “nós” e “eles”. Assim, a apropriação indígena do esporte parece estar se caracterizando não por uma aproximação aos valores associados ao esporte moderno, como competição, meritocracia, perfectibilidade, ascetismo e isonomia, mas incorporando a capacidade estrutural dos esportes de fortalecer sua identidade enquanto povo distinto com suas próprias tradições.
Esse movimento necessita da criação de modalidades esportivas a partir de práticas tradicionais. O conceito de “esportivização” é encontrado na literatura dos estudos sociais do esporte, geralmente assumindo o sentido de racionalização de práticas lúdicas que passam a se tornar esportes no contexto de emergência da modernidade (Elias e Dunning, 1992; Bourdieu, 2019; 2014). Por isso, é preciso cautela para utilizar o conceito quando o objeto são práticas tradicionais indígenas que são adaptadas para se tornarem modalidades em eventos esportivos indígenas. Estas práticas estão inseridas em contextos culturais mais amplos, de modo que é preciso compreendê-los para poder interpretar os sentidos que a esportivização ganha. O caso da corrida com toras realizada nos Jogos Indígenas Pataxó pode jogar luz sobre como esse processo de ressignificação das práticas sociais para se tornarem modalidades esportivas acontece.
O caso da corrida de toras Pataxó
A corrida de toras é uma atividade comum a muitas etnias indígenas brasileiras, sobretudo do tronco linguístico Macro-Jê. Sua presença entre esses povos foi notada pela etnologia americanista desde seus primórdios. Curt Nimuendajú – como foi o caso em muitos outros objetos – foi o primeiro a realizar registros etnográficos de tais atividades. Quando esteve entre os Timbira, povos que ocupam terras na divisa entre os estados do Pará, Tocantins e Maranhão, Nimuendajú (2001) não exitou em chamar a prática de um “esporte” que fazia parte da “educação física” nativa.
A corrida com toras também foi objeto de análise de David Maybury-Lewis (1984) em sua clássica monografia sobre os Xavante. O etnólogo britânico também argumentou que a prática possuía entre os Xavante funções ligadas aos ritos de passagem, oferecendo uma descrição mais ampla sobre a relação entre cultura e corrida com toras. Tratam-se de eventos essencialmente coletivos, que envolvem toda a aldeia, seja como participante ou espectador. As corridas se dão em forma de revezamento, em que cada corredor precisa percorrer uma certa distância até passar a tora para um companheiro. A formação das duas equipes atende à estrutura social Xavante, em que a aldeia é dividida em duas metades. A tese de Maybury-Lewis é de que a corrida de toras não possui uma dimensão competitiva, mas apenas ritual, de modo que as corridas de toras são feitas quantas vezes forem necessárias para produzir um empate entre as duas equipes. Este argumento é questionado frontalmente por Fernando Vianna (2008) em sua dissertação de mestrado, em que, além de estudar os Xavante, também atuou como treinador de futebol da equipe de uma aldeia. Durante a etnografia, Vianna observou diversas corridas de toras e não observou entre seus interlocutores a ausência do aspecto competitivo nas corridas.
A partir das corridas de toras, Vianna formula uma proposta de pesquisa (que ele mesmo aponta como experimental), de investigar o universo mais amplo de atividades físicas dos povos originários das Américas. Nas palavras do autor
é bem possível que a corrida de toras seja uma expressão particular de algo muito mais geral, ainda pouco explorado pela etnologia. A sugestão é sobre a pertinência de se reunirem esforços investigativos sobre o que eu chamaria de “esportividade ameríndia” (Vianna, 2008, p. 226)
Interpreto que a ideia de “esportividade” formulada pelo autor está ligada a proposta de pesquisar as práticas nativas que se enquadram no que, em tradução, poderíamos denominar “esportes”, mas buscando o significado que os nativos dão a essas práticas, sem enquadrá-las em esquemas conceituais preestabelecidos. Além disso, é preciso atentar que essas práticas estão inseridas em culturas em que a corporalidade é pensada de forma consideravelmente distinta da concepção de corporalidade da tradição ocidental moderna.
No que tange a corrida de toras dos JIP, é preciso observar que os Pataxó afirmam que a prática está diretamente ligada aos ritos de casamento. A descrição feita por Karkaju Pataxó, em trabalho acadêmico dedicado aos Jogos, situa exatamente qual é essa conexão.
A corrida com tora representa as histórias contadas pelos mais velhos sobre o casamento Pataxó. Atualmente há um esforço para que este costume volte a ser realizado nas aldeias Pataxó. (…) A Corrida com Tora representa de forma simbólica a tradição de carregar uma pedra ou tora de madeira com o peso equivalente ao da noiva diante da comunidade como forma de demonstrar que estar apto para sustentar uma família. (…) A tora foi inserida nos Jogos Indígenas Pataxó também por influência dos Jogos dos Povos Indígenas que têm essa modalidade praticada por várias etnias (Lopes Filho, 2017, p. 38).
Portanto, a corrida com toras praticadas nos JIP é um híbrido entre uma prática ligada aos ritos de casamento Pataxó, em que o homem deveria carregar uma pedra ou tronco de madeira com o peso equivalente ao da noiva, e as corridas com tora dos povos Jê, observadas nos Jogos nacionais e adaptadas.
A esportivização da prática para se tornar uma modalidade em eventos esportivos indígenas passa pela sua hibridização com características do esporte moderno. Busca-se uma uniformização das características da corrida, como peso das toras, o formato, o percurso a ser percorrido, o número de corredores, a forma de revezamento. Nos JIP, a modalidade é praticada de forma singular em relação a outras corridas com toras de outros povos indígenas. São apenas dois corredores por equipe no revezamento. Há uma linha de largada em que os corredores de cada equipe devem ser perfilados. Deve-se cruzar um percurso de cem metros em linha reta e passar a tora para sua dupla, que corre de volta para a linha de onde foi feita a largada, totalizando apenas duzentos metros de percurso. Vence a dupla que terminar primeiro, sem deixar a tora cair, o que ocasiona a desclassificação imediata. Além disso, deve-se cruzar totalmente a linha com a tora empunhada para que a corrida seja validada. Nos JIP, as mulheres também participam. A única diferença é o peso menor da tora que carregam.
Durante meu trabalho de campo nos Jogos Indígenas Pataxó de Coroa Vermelha 2024, pude observar de perto a disputa da modalidade. É visível que o manejo da tora é complexo devido ao seu peso. A tora masculina pesa em torno de 60kg e tem 80 centímetros de comprimento e 50 de diâmetro. A feminina tem as mesmas dimensões, mas pesa apenas 40kg. A tora é feita com madeira de buriti, sendo totalmente lixada para evitar machucar a pele e com cordas amarradas nas extremidades para facilitar o manuseio. Como a modalidade já está presente nos Jogos há muitas edições, é perceptível que existem técnicas corporais (Mauss, 2017) específicas para realizá-la. A tora precisa ser empunhada acima dos ombros, mas a forma de fazer isso fica a cargo de cada corredor. É preciso encontrar uma posição que permita estabilidade e que não comprometa a agilidade para realizar a prova. Na maioria dos casos, um companheiro de equipe ajuda a posicionar a tora em um dos ombros do corredor, que abraça a tora de baixo para cima utilizando o outro braço apenas para estabilizar a tora caso seja necessário e, principalmente, para passá-la para sua dupla. Esse momento da passagem da tora é o mais tenso, pois o primeiro corredor precisa dosar sua velocidade para frear quando chegar ao companheiro e passar a tora de forma rápida. Isso demanda um grande entrosamento da dupla, o que nem sempre acontece e acarreta na queda da tora e desclassificação. As duplas mais entrosadas conseguem inclusive fazer a passagem da tora em movimento, criando uma grande vantagem contra a dupla rival.
Toda prova da modalidade é acompanhada da presença de um árbitro, responsável em fazer com que as regras sejam cumpridas. É ele que dá o sinal para a largada e confere se a tora estava sobre os ombros do corredor até que ele tenha cruzado totalmente a linha de chegada.
A corridas de tora é considerada uma das principais atrações dos JIP, mobilizando a torcida das equipes de cada aldeia e dos espectadores. Cria-se uma atmosfera competitiva e claramente os corredores dão o seu máximo para vencer a prova para suas equipes. Mas não há qualquer preocupação com a premiação do vencedor. Não há nem mesmo um sistema de classificação. Cada equipe enfrenta apenas uma outra, escolhida por sorteio, de modo que não há um campeão geral da modalidade nos Jogos, apenas vencedores de cada confronto.
Considerações finais
Em síntese, entendo que a corrida de toras observada durante meu breve trabalho de campo nos Jogos Indígenas Pataxó pode ser lida à luz da ideia de “esportivização” de uma prática tradicional. Seu contexto “original” era o rito de casamento, mas com a invenção dos Jogos, tornou-se modalidade esportiva, modificando-se para atender a algumas características estruturais do esportes, como a isonomia entre os participantes e a necessidade de regras fixas aplicadas por um árbitro neutro. Mas esse processo de esportivização é feito “à moda Pataxó”, levando em consideração o universo mais amplo de sua cultura.
Referências Bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. “Como podemos ser desportistas?”. In: Questões de Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2019.
BOURDIEU, Pierre. Programa para uma sociologia do esporte. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.
DA MATTA, Roberto. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.
ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.
GUEDES, Simoni Lahud. O futebol brasileiro: instituição zero. Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro, PPGAS, UFRJ, 1977.
LOPES FILHO, Eujacio Batista. Jogos Indígenas Pataxó: a identidade cultural Pataxó por meio do esporte. Belo Horizonte: UFMG, 2017.
NIMUENDAJÚ, Curt. A corrida de toras dos Timbira. Mana, 7 (2): 151-194, Rio de Janeiro, 2001.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
MAYBURY-LEWIS, David. A sociedade xavante. São Paulo: Francisco Alves, 1984.
VIANNA, Fernando. Boleiros do cerrado: Índios Xavantes e o futebol. São Paulo: Annablume; FAPESP; ISA, 2008.