Paulo André, fundador do movimento e um de seus principais articuladores, avalia o Bom Senso mais de uma década depois.
O Bom Senso F.C., criado em 2013 por jogadores de grandes clubes de futebol do Brasil, marcou um momento histórico no cenário esportivo. O estopim foi a divulgação do calendário do futebol brasileiro de 2014 pela CBF, que, devido à Copa do Mundo, previa um tempo curto para a pré-temporada e férias dos jogadores. 75 atletas de clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro assinaram o primeiro manifesto, publicado em nota oficial no perfil do Facebook do movimento¹.
Com o lema “Bom Senso Futebol Clube, por um futebol melhor para quem joga, para quem torce, para quem transmite, para quem patrocina. Por um futebol melhor para todos”, o grupo reuniu-se pela primeira vez no escritório do publicitário Washington Olivetto, em 30 de setembro de 2013, quando definiu cinco pautas: 1) calendário do futebol nacional; 2) férias dos atletas; 3) período adequado de pré-temporada; 4) fair play financeiro; 5) participação nos conselhos técnicos das entidades que regem o futebol. Posteriormente, as reivindicações iriam se centrar nos pontos 1 e 4.

Em outubro de 2013, durante a 30ª rodada do Campeonato Brasileiro, manifestações dos atletas chamaram a atenção dos torcedores e da imprensa esportiva. Jogadores deram abraços coletivos antes do início das partidas numa demonstração de união³.

Em 13 de novembro, novos protestos marcaram a 34ª rodada do Brasileirão. Faixas com os dizeres “Amigos da CBF: e o Bom Senso?” e “Por um futebol melhor para todos” foram vistas pelos gramados de norte a sul do país. Os atletas cruzaram os braços durante o primeiro minuto do jogo. Outras ações em campo ocorreram em partidas das 36ª e 37ª rodadas, ainda em 2013, com jogadores sentados ou tocando a bola de lado.



O grupo atuou de forma intensiva em 2014, pronunciando-se majoritariamente por meio de notas oficiais divulgadas nas redes sociais e promovendo campanhas como #DemocracianaCBFjá #CBFfichalimpa #vetaDilma #OcupaCBF #JuntosPelaPrimeiraLiga #LiberaFaixa #DiretasJáCBF. Nesse período, conseguiu reuniões com a CBF, com a presidente Dilma, com dirigentes de clubes, deputados e senadores; participou de audiências no Senado e no Congresso Nacional; realizou seminários e debates; produziu dois minidocumentários e duas petições online – “Aprovem a MP 671” (change.org)?, que coletou 76.255 assinaturas, e o “Manifesto por uma nova CBF” (avaaz.org)?, encerrada com 6.404 assinaturas.
Em 2015, o movimento obteve sua principal vitória: a publicação da Lei 13.155/15?, que instituiu o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro – o Profut. Também atuou para a aprovação da Apfut – Autoridade Pública de Governança de Futebol?, órgão ligado ao Ministério do Esporte responsável pela fiscalização do cumprimento das obrigações do Profut.
Apesar das conquistas, o grupo começou a mostrar sinais de desgaste. Matéria publicada em 09 de julho de 2016 na Folha de S. Paulo? anunciou o fim do Bom Senso, pelo menos aquele que tinha os jogadores na linha de frente. Quatro dias depois, o grupo soltou uma nota rebatendo a publicação, afirmando que “seguia seu trabalho pela modernização, transparência e democratização do futebol brasileiro”.¹?
Em janeiro de 2017, em entrevista ao jornal gaúcho GZH¹¹, o diretor-executivo Enrico Ambrogini confirmou o término do movimento.
Mais de uma década após o início, Paulo André, fundador do Bom Senso F.C. e um de seus principais articuladores, atualmente diretor global de futebol do Grupo R9, dono do Real Valladolid e do Cruzeiro¹², concedeu entrevista exclusiva ao Blog do Leme, via videochamada, realizada em 17 de abril de 2024. Confira:
A primeira aparição pública do Bom Senso ocorreu em 30 de setembro de 2013, após reunião no escritório da WMcCann, agência do publicitário Washington Olivetto, em São Paulo. Podemos considerar esse o início do movimento? Quem organizou o encontro?
Eu acho que como um marco inicial, sim. Antes disso, o movimento se dá por meio de conversas telefônicas, a partir de uma rodada. Na verdade, num pós-jogo de Inter contra Coritiba. Juan e Alex começam a conversar, e a gente já vinha esquentando esse assunto. Quando a gente percebe que tem mais gente com os mesmos sentimentos, começa a juntar os pontos. E eu acho que, sim, esse encontro no Washington foi o marco de início. Eu é que tinha relação com o Washington, então provavelmente fui eu que organizei. Consegui convidar todo mundo ali que tinha disponibilidade de vir. E a gente se reuniu numa sala lá. Tem uma foto dessa também com a maior parte de quem esteve presente. Mas pelo menos uns 15, 20 jogadores de grande renome.
O que motivou o surgimento do Bom Senso? Quais eram os objetivos lá no início, naquele momento em que vocês começaram a conversar?
Cara… o sentimento era uma percepção, uma sensação generalizada de que aquele calendário… a gente devia estar jogando há 20 semanas de quarta e domingo. Não me lembro dos números exatos, mas era uma rotina extenuante e uma qualidade de espetáculo pobre. O movimento foi genuíno, partiu dos jogadores mais experientes que viam um total descaso dos dirigentes com o futebol brasileiro. Nós, que havíamos passado algum tempo na Europa, vimos o que o mundo estava fazendo, vimos a velocidade com que eles evoluíam e, ao voltarmos ao Brasil, percebemos como a gente estava ficando para trás. O Bom Senso foi um movimento pró futebol brasileiro, nunca foi uma luta de classes. Fato é que o país vivia em polvorosa, era setembro de 2013, manifestações populares pelas ruas de todo o país, insatisfação generalizada. Talvez esse viés político tenha reforçado ainda mais a oposição ao movimento. Dirigentes extremistas nos atacavam dizendo que nós, os milionários, queríamos ainda mais benefícios. Veja que curioso, nós levantamos apenas duas bandeiras no Bom Senso: (1) calendário e (2) fairplay financeiro. Um calendário mais justo e equilibrado para todos e um controle regulatório que impedisse que os clubes competissem quebrados financeiramente e, consequentemente, que fossem sustentáveis e pagassem suas contas em dia. A pauta é super atual. Esse ano há Copa América enquanto se jogará nove jogos do Brasileirão, isso não pode ser real.
Quem eram os líderes do Bom Senso?
Líderes nunca houve, assim… declarados. Tinham atletas mais engajados que acabaram ficando mais expostos ou dando mais a cara. Acho que, de fato, eu e o Alex fomos os grandes padrinhos do movimento. Mas… na ida à CBF, por exemplo, me lembro de um time que a gente levou lá para falar com o José Maria Marín e o Marco Paulo Del Nero, foi Juninho Pernambucano, Cris, Seedorf, Dida, eu, Alex, Gilberto Silva. Ou seja, era uma seleção. Todos os caras que tinham voltado da Europa e que tinham tamanho suficiente para tentar fazer um movimento sem medo de uma retaliação.
Quem mais fazia parte além dos jogadores? Havia outras categorias?
Ao longo do processo, sim. A gente abraçou o futebol feminino, por exemplo. Então, me lembro de reuniões com as meninas que hoje são os destaques da gestão do futebol feminino. A Aline, a própria Mayara Bodin, que esteve agora como supervisora da Seleção, e mais gente. Foi um braço que se abriu ali por necessidade. A gente chegou até a ampliar a escuta, até por falta, talvez, de conhecimento ou de foco em uma causa específica. Teve muita adesão do beach, do futebol de praia. A gente começou a entender que era fundamental ter gente das outras classes, de Série B, de Série C, Série D, campeonatos estaduais. Então, naquele primeiro momento, naquele primeiro mês, a gente conseguiu cumprir a assinatura de praticamente todos os times de Série A e B, de todos os jogadores, para demonstrar apoio legal, se é que se pode dizer. E a gente manteve essa exposição para algumas cabeças que não tinham medo dessa retaliação.
Eram basicamente abaixo-assinados? E a comunicação toda via WhatsApp?
Era, em geral, era WhatsApp. Tinha um grupo e eu praticamente centralizei bastante disso para fazer andar. Até os protestos no campo e tal, a gente organizou aqui para conseguir produzir as faixas, para conseguir mandar as faixas para os hotéis dos times na época, para que eles pegassem e conseguissem abrir antes do jogo. Mas tinha negociação com os dirigentes dos clubes tentando explicar um pouco e pedir permissão para poder fazer o protesto. Tiveram, me lembro, grandes discussões, assim, faltando uma hora para começar o jogo, o pessoal no vestiário trocando mensagem. E, por exemplo, num dia lá os juízes estavam preparados para a manifestação e disseram que se a gente fizesse, sentasse no chão ou ficasse tocando a bola, ia dar cartão amarelo para todo mundo. Aí teve um monte de questionamento. Rogério Ceni, por exemplo, que também era um dos integrantes, ligou e falou “cara, não posso fazer isso com o São Paulo… não posso tomar cartão amarelo porque vai prejudicar o time na colocação do campeonato”. E aí ficava uma discussão gigantesca no pré-jogo para ver como é que a gente agia, como é que a gente se ajudava nessas questões.
Já que você falou dessa manifestação, eu lembro que o Bom Senso já nasceu com logo, slogan, banner, Facebook, depois elaborou site, vídeos dos jogadores integrantes do movimento. Havia uma consciência profissional de comunicação no início do Bom Senso? Quem propôs essas estratégias? Quem elaborou esses materiais?
Bom, acho que, num primeiro momento, pelo contrário. Tinha uma vontade genuína e tinha uma galera reunida com muita exposição midiática. Então, a gente estava completamente despreparado para comunicar em uma pessoa, ou na voz do movimento, ou institucionalmente. Então, essa primeira reunião já sai quebrada. Hoje, analisando, começo a ver todas as falhas do processo, mas essa reunião sai quebrada porque a gente alinha que vai escrever uma nota para a imprensa, para que ninguém desse a cara ali, para que ninguém tivesse que falar e controlar um pouco melhor a narrativa. O Rogério Ceni sai pela garagem, jornalistas estavam lá e pegam ele, e ele acaba dando a entrevista. E aí vai meio que, não na contramão, mas vai do jeito dele e vai um pouco contrário do que a gente tinha combinado. Então, o movimento começa assim. E acho que, resumindo depois, ainda naquele ano de 13, tudo foi feito meio que na loucura, na vontade de se comunicar. O nome quem dá é o próprio Washington Olivetto. Ele acorda num domingo de manhã, me manda e fala: “Descobri o nome do movimento. Tem que ser o Bom Senso Futebol Clube”. Ele tinha levantado três nomes e depois ficou com esse e falou: “É isso aqui. Tá pronto! Não tem outra coisa para fazer”. Então, eles mesmos criam o logo e nos dão de presente pela causa, pela conexão que eu tinha com ele na época.
O slogan também foi criação do Washington?
Foi, foi a empresa dele. Foi a turma dele lá que criou. Mas o nome eu me lembro que foi ele que batizou. E depois, a partir daí, as artes, as frases “Cadê o bom senso?”, essas coisas… aí eram criações nossas, sem um cunho profissional. A gente até teve uma comunicação mais bélica do que deveria ter, que também acabou provocando mais problemas do que soluções.
Além do Washington, o Juca Kfouri foi um apoiador do Bom Senso. Ambos são figuras emblemáticas da Democracia Corinthiana. Você vê alguma correlação entre a Democracia e o Bom Senso?
Bom, primeiro que, sem dúvida, o Juca foi um dos grandes apoiadores ali do movimento, ou seja, encorajadores. Inclusive nessa relação com o Washington. Eu conheço o Washington a partir do Juca. Então tem toda essa conexão… e acho que os dois com essa essência social viram no Bom Senso a possibilidade de voltar a avançar, de fazer o país avançar socialmente por meio de uma mobilização de uma categoria ou qualquer coisa do tipo. Com relação às particularidades dos dois movimentos, acho que principalmente por partir de jogadores. Acho que essa é a maior ligação. Porque um estava voltado para uma questão muito mais ampla, que era o país, que era a democracia, que era uma libertação de quase vinte anos de terror e de opressão. E, no nosso caso, era uma coisa mais específica pró futebol.
Como se dava a comunicação entre os integrantes do Bom Senso? De onde partiam as formulações? Como vocês tomavam as decisões?
Forçosamente o WhatsApp. E o celular, quando era muito específico. Mas o WhatsApp era muito forte, os grupos e essas trocas. Aí, quando a gente começou a profissionalizar, pegamos três pessoas. O Ricardo, que vinha de um movimento social que era o voto distrital, o Enrico, que hoje é CEO do Figueirense, o Pedro Daniel, que hoje é o líder da Ernest Young. Ou seja, a gente pegou um monte de gente jovem engajada e começamos a fazer um roadshow. Esses caras começaram a viajar o país todo, de clube por clube, explicando o movimento, começando a filmar com as declarações, fazendo algo mais organizado. Para a gente poder ter esse material e poder tentar organizar, de fato, a nossa demanda, que acabou sendo, aí sim, acredito que bem comunicada, mas já mal interpretada pelo começo não muito bem posicionado. A partir dali ficou claro que a gente tinha só duas demandas, duas bandeiras, que a gente não se comunicaria mais sobre todos os problemas e mazelas do futebol brasileiro. E a gente teria um porta-voz ou pelo menos um meio de comunicação mais oficial para que não fossem todos os atletas perguntados sobre isso todo pós-jogo. Cada um tinha um jeito de explicar, um jeito de falar, um nível de conhecimento sobre o tema. E aquilo foi um grande complicador.
E tinha mais de um grupo de WhatsApp?
Com certeza tinha. Tinham alguns. Devia ter pelo menos uns quatro ou cinco. Ou seja, um dos principais líderes, um mais abertão, com todos os capitães. Depois entre os construtores ali, o próprio Rodolfo [Mohr] que estava na comunicação, o Rafa Antoniucci também estava na comunicação. Na época era lá do Inter e do D’Alessandro veio ajudar a gente. O Ricardo Borges, o Enrico. Depois tinha ramificações dentro disso para a operacionalização das questões.
Aproveitando que você citou o Enrico e o Ricardo, como eles chegaram até o Bom Senso? Quem trouxe? Lá para 2016 vocês, atletas, disseram que sairiam de cena e eles tocariam, mas isso durou muito pouco. Logo o Bom Senso foi encerrado.
O Ricardo vem naquele período de 2013, com a população saindo à rua e tal. Do meu lado, eu queria entender um pouco mais quais eram as consequências daquele momento para o país. A gente faz uma reunião apolítica na casa de um grande amigo em que a gente leva movimentos sociais. O Ricardo era líder de um deles, que era esse do voto distrital. E alguns políticos, deputados, até senador, estiveram naquele jantar, naquele dia. E celebridades, pessoas renomadas, psicanalistas, foi de tudo. E a ideia era fazer um debate, uma conversa para entender para onde ia e quais eram as soluções propostas, como é que cada ente via isso. Naquele dia, conheci o Ricardo, ele foi convidado a apresentar o que eles defendiam para essa turma toda, para esses políticos e galera. E, pouco tempo depois, nasce o Bom Senso. Então, me lembrei dele. Chamei ele para ajudar, expliquei “estamos em atividade e a gente não tem tempo para ficar formulando as coisas, para criar, para engajar, para correr”. Ele fala “eu topo, mas vou levar um amigo meu que também é engajado com a questão do futebol, entende muito, estudou um monte de coisa”. E aí aparece o Enrico. E aí os dois ficam ali meio que como estagiários do Bom Senso, ajudando a operacionalizar as coisas. Ou seja, precisa mandar a faixa para o Dida lá em Criciúma porque o Inter joga lá. Eles que acabaram ajudando nesse processo, mandam fabricar, mandam entregar, mandam isso, mandam aquilo. Eles entram como apoio, como ajuda. A gente vê que o negócio cresceu e que a gente não vai conseguir operacionalizar. Aí eles já vêm, a gente faz um bunker ali, a gente usa esse escritório desse amigo meu que deu a casa lá também para aquela reunião e eles começam a trabalhar de lá.
Você pode dizer quem é o amigo?
O Airtom Clerman. Aí eles começam a trabalhar lá no escritório e ele vira o maior engajado do projeto inteiro porque ele compra o barulho e começa a querer nos defender e nos ajudar. Depois ele lança um livro. Nessa biografia dele, acho que tem dois grandes contos que ele cita o Bom Senso. Desde o ponto de vista dele. Ele tem uma frase final que é uma conversa dele comigo, que ele fala “Paulo, vocês estão entrando numa guerra sem soldado, não tem a menor chance de vocês vencerem”. Ele faleceu faz dois anos mais ou menos, mas seria muito legal dar algum crédito para ele porque ele foi incrível no processo.
O slogan “por um futebol melhor para quem joga, para quem torce, para quem transmite, para quem patrocina; por um futebol melhor para todos” trazia um posicionamento diplomático em relação aos atores do futebol. Posteriormente, vocês subiram o tom, e as críticas tornaram-se mais ácidas, especialmente em relação à CBF e Federações. O que ocasionou essa mudança?
Primeiro, queríamos deixar claro que era um movimento pró futebol e que a melhoria de toda a indústria: um, era necessária; dois, seria benéfica porque o bolo ficaria maior e as fatias a cada stakeholder consequentemente também. Abrimos diálogo com a “federação” de árbitros, com a Abex (associação de executivos), visitamos os patrocinadores, visitamos a Globo no RJ, ou seja, tentamos fazer a nossa parte para colocar todos na mesma página e convencê-los de que aquele movimento pró futebol seria benéfico a todos. Depois, entendemos que a intenção da CBF era ganhar tempo para enfraquecer o movimento e não precisar agir. Tanto eles, CBF e Federações, quanto a maioria dos presidentes de clubes levaram o movimento para uma luta de classes que extremava a discussão e a pauta do calendário (diminuição ou extinção do estadual) foi um prato cheio para o populismo e para gerar inimizades internas e pressão externa ao movimento.
Hoje, mais de uma década depois, você acredita que possa haver essa confluência de interesses e expectativas ou ela é ingênua?
Sigo acreditando na urgência de ambas as demandas para o desenvolvimento do futebol brasileiro. Não vejo abertura política dos entes responsáveis para o avanço dessas discussões. A Liga seria ou será a única solução possível.
Pensando em atores e forças políticas, o impeachment da presidente Dilma contribuiu para o enfraquecimento do movimento?
Não, de forma alguma. A lei do Bom Senso [Profut], da qual fomos protagonistas inclusive pelo espaço dado pelo governo Dilma, já havia sido aprovada. Trabalhamos muito em Brasília fazendo advocacy e investindo na construção de regulamentações que pudessem proteger os clubes de gestões temerárias e bancarrota. Mas a versão final da lei ficou insuficiente, o refinanciamento das dívidas (que era a grande necessidade dos clubes) foi dado e as contrapartidas foram brandas e consequentemente não foram cumpridas ou não impactaram da forma como se imaginou.
Agora, pensando na cobertura da mídia e na relação do Bom Senso com os jornalistas, você diria que houve apoio por parte da imprensa esportiva?
Acho que houve um ciclo padrão de grande exposição e notoriedade, apoio inicial pelo ineditismo, discussões superficiais sem nenhum sentido de avanço, criação de heróis e vilões, sangue e fim.
Em 09 de julho de 2016, uma matéria publicada na Folha anunciou o fim do Bom Senso, pelo menos o Bom Senso com os jogadores na linha de frente. Quais fatores levaram ao fim?
Bom, o movimento se arrasta. Desde 2013, tem o período de 2014 em que eu estou na China, e aí aquela estrutura mais organizada, com o Ricardo, Enrico, uma estrutura de escritório se faz necessária. São eles que vão de fato à Brasília, se encontram com os deputados, com os senadores, com os presidentes de clubes, com os players do mercado, e começam a manter a chama acesa, enquanto os jogadores passam a só aparecer, a só dar a cara de fato, em momentos importantes em que necessita dessa exposição deles. Ou seja, um encontro com a Dilma, uma reunião com os patrocinadores, e assim por diante. Em 2015, quando eu volto da China, eu já entendo que aquele movimento, ou aquela iniciativa, ela é fadada ao fracasso. Nós não temos oxigênio para seguir. Os recursos vão minguando também dessa estrutura. E com a aprovação da lei do Bom Senso ali, a sensação que a gente tem é de dever cumprido. Dentro das possibilidades e dentro das dificuldades, a gente pelo menos conseguiu deixar um marco, ou deixar registrado que aquela insurgência fez sentido. Então, o ano de 2016 já é bem complicado. A gente já não tem essa expectativa. A gente começa a querer mudar toda a estrutura. Ou seja, já era um movimento mais de advocacy de fato do que dos jogadores em si. E aí esse dia é fatídico, porque eu saio com mais alguém para tomar um café com a Camila Mattoso, que era uma jornalista da Folha. Depois disso, ela publica “o bom senso nunca mais será como foi. Aquele Bom Senso já não existe mais”. E ela dá essa manchete aí nesse formato. Que o Bom Senso acabou e depois no subtítulo ela explica o que é o acabar, que nunca mais vai ser igual era antes e vai ser outra coisa. Mas essa manchete termina de matar aquele movimento que realmente já não tinha mais força para prosseguir.
Fazendo um balanço, quais os sucessos ou insucessos? Há algo que você faria diferente ou do qual se arrepende? O Bom Senso deixa algum legado?
Como sucesso, a Lei do Bom Senso, a ampliação da discussão sobre a estruturação do futebol brasileiro. O sinal de alerta que foi deixado fica como um marco. Fato é que em 2013 antecipamos o tsunami que estava por vir. As prisões dos dirigentes, o 7 x 1, a quebra dos clubes – Botafogo, Vasco, Cruzeiro etc., a necessidade da criação da lei das SAFs, a falta de qualidade do jogo praticado no Brasil, a escassez de novos talentos. Os insucessos, evidentemente, são essas dificuldades no avanço dessas relações políticas, do jogo de poderes, das Federações, da própria CBF, no sentido do entendimento do potencial crescimento versus zona de poder versus zona de conforto. Nesses últimos dez anos, os avanços são pequenos, mas tenho muito orgulho de ter feito parte. Eu acho que todos nós que participamos temos orgulho. Alguns saíram mais machucados que outros, mas o movimento foi genuíno. Então não há como negar essa força da paixão, da juventude, da ideologia, tentando mudar o mundo, tentando redirecionar a rota para um caminho que parecia mais viável, mais inteligente. Então as relações, a força dessas pessoas unidas, tudo isso fica como legado, como exemplo para os que vêm depois da gente e que podem também se reunir e tentar, à sua forma e já com os aprendizados desse ato, desse movimento, fazerem melhor que a gente. Acho que a grande lição para mim, pessoa física, é a comunicação. Faltou uma amplitude maior da visão para poder entender quais eram as pegadinhas e quais eram as oportunidades. Hoje, sem dúvida, faria de algumas maneiras diferentes, sim. Mas com o conhecimento que a gente tinha na época, com a limitação, seria impossível ter feito diferente. Nós fizemos o nosso limite. Como se arrepender de alguma coisa que você faz com toda a sua potência? Fica a coragem como a grande vitória desse movimento.
Pensando nos próximos dez anos, o Bom Senso será esquecido? É interesse dos jogadores que lideraram o movimento manter viva a memória do Bom Senso?
Confesso que a gente nunca se reuniu para falar sobre isso. Acho que tem um grupo aberto aqui até hoje, um ou dois grupos, que estão inativos, ninguém usa, ninguém responde, mas ninguém sai também. Talvez essa história volte mais forte lá na frente. O passado é mais bonito, o saudosismo sempre acaba levantando essa lebre, essa ação. Na época eu me lembro de ter escrito um roteiro para uma série em que o mentor do Bom Senso era assassinato e os principais membros se reuniam para celebrar a passagem desse líder. Ali eles percebiam que tinha um esquema tático numa lousa. Nessa lousa eles começaram a entender que o líder tinha deixado para eles o caminho para implodir o sistema por dentro e, entre aspas, tomar o poder e fazer as coisas direito. E nisso cada um daqueles entes tinha que assumir posições importantes dentro do futebol brasileiro. Foi meio que uma premonição, porque a gente está aí, cada um na sua posição, tem gente na Federação Paulista, tem gente na CBF, tem gente como treinador de time grande, tem gente como diretor de clube grande, tem futebol feminino nas posições importantes. Ou seja, se tivéssemos realmente arquitetado isso num plano de dez anos, talvez a gente agora já estivesse capaz de fazer esse movimento. Mas não foi assim que foi, isso era mais mundo fictício.
Agora como gestor, mudou a sua relação com a imprensa e os jornalistas? Se sim, de que forma?
A minha relação mudou bastante desde então. Acho que foi uma exposição super demasiada por uma pessoa que de alguma forma é discreta e não gosta de aparecer. Porque aquilo gerava uma exposição e uma crítica sem profundidade muito ruim para mim. Além daquele tempo pós-Bom Senso, fiquei mais quase cinco anos sem me expor e sem nenhuma vontade de me expor. Agora, em 2024, que eu comecei a entender ou pelo menos me deu vontade de voltar a falar alguma coisa, entendendo esse distanciamento de que não é o lugar para colocar as ideias, não é o lugar para ficar levantando polêmica, não é o lugar para bater em ninguém. Apenas assim como a imprensa, em geral, nos usa como meio de clique, a gente tem que, de alguma forma, utilizá-los também para propagar o que a gente acha que faz sentido. Então essa relação agora está um pouco melhor, mas eu continuo não acreditando nesse veículo como meio de discussão. Eu gosto de discutir coisas e entrar num nível de profundidade que a grande mídia não está disposta, não dá clique, não interessa. Então não faz nenhum sentido. Na minha posição, se eu for participar de discussões que tenham a ver com mudança do calendário, fair play, melhora do futebol brasileiro como um todo, não serão via imprensa, serão dentro de uma sala, desde que a reunião faça sentido e tenha poder de realmente mudar alguma coisa. Se não, eu vou deixar passar. Não vou entrar em brigas que eu não consigo ganhar. Como gestor do Cruzeiro, no fundo, eu acabei desenhando junto ao proprietário, que é o Ronaldo, desde a minha ida ao Valladolid, uma posição em que eu não tivesse que falar com a imprensa, ou seja, que a minha função não me obrigasse, ou pelo contrário, inclusive me permitisse nunca falar com a imprensa. E foi assim desde que eu comecei a trabalhar com o Ronaldo. Eu nunca dei entrevista em Valladolid e nunca tinha dado no Cruzeiro até mês passado. Então foram três anos em silêncio e um dos meus ‘nãos’ com ele: “eu não dou entrevista”. Ele respeitou isso e para mim foi libertador.
Como gestor, você tem conseguido operar mudanças que convergem com as bandeiras levantadas pelo Bom Senso?
Desde o Athlético Paranaense, Cruzeiro e Valladolid, dentro desses três clubes pós-carreira que eu tive a oportunidade de trabalhar, tudo o que eu tentei fazer nessa área da gestão e nessa área de trazer pessoas para um projeto que tem propósito, que tem ideia, que tem clareza, era respeitar o orçamento, fazer as coisas dentro de uma lógica financeira e esportiva, olhar para o ser humano no centro. Então acho que tem a ver com a proposta lá atrás de fair play financeiro, de melhoria do futebol nacional, de valores, de construir gente melhor para tomar melhores decisões, mesmo que essas pessoas possam o tempo todo estarem transitando em outros clubes. E acho que tenho tido sucesso nisso, esse é o meu prazer hoje e tenho orgulho do que a gente tem construído nesses últimos cinco, seis anos com as pessoas e com os legados esportivos e o descobrimento dos talentos em todas as áreas do futebol.
Para finalizar, você ainda acredita no futebol como patrimônio cultural e ferramenta de transformação social?
Eu não tenho dúvida. É a maior potência do mundo como meio de educação, como ferramenta social e é extremamente mal explorado dentro de um plano macro. Acho que nos micros, nas escolinhas, nos colégios, nos campos de várzea, se tem muitos valores, muita educação envolvida, mas é muito empírico, não tem um plano nacional, não tem gente por trás potencializando essa ferramenta maravilhosa, isso é uma potência gigantesca e infelizmente a gente não usa a full potential, mas sem dúvida nenhuma, não só futebol, o esporte como um todo, o futebol como o maior chamariz dentre os esportes.
O Paulo André sonhador ainda existe?
Existe, existe muito, continua aqui, o coração está inteiro do mesmo jeito e eu tenho tido muito mais prazer em praticar no micro do que em lutar pelo macro. Porque no micro eu tenho autonomia total e consigo, então me dá orgulho, me dá prazer, mas eu perdi um pouco a fome do macro, de olhar para o todo, para esse plano nacional, para a mudança da legislação, da CBF, de convencer um monte de gente, ou seja, se eu hoje tenho a condição de estar em uma posição de poder em que eu posso fazer desse mini mundo um mundo especial, eu ponho toda a minha energia nisso e quem sabe dando certo esses mini mundos, as pessoas olhem e falem “a gente precisa seguir aquele maluco lá porque ele criou alguma coisa que a gente não consegue superar” e a partir disso talvez venha a mudança, então é um outro jeito de sonhar, mas o sonho está aqui.
¹ Nota Oficial | Facebook oficial do Bom Senso F.C.
² Atletas definem pontos de debate com a CBF | Facebook oficial do Bom Senso F.C.
³ Rodada histórica no Brasileirão! | Facebook oficial do Bom Senso F.C.
? Bom Senso FC fará nova manifestação na rodada | Facebook oficial do Bom Sneso F.C.
? Aprovem a MP 671: agora é a hora de mudar o futebol brasileiro. | Change.org
? Manifesto por uma Nova CBF | AVAAZ.org
? LEI Nº 13.155, DE 4 DE AGOSTO DE 2015 | planalto.gov.br
? Movimento Bom Senso chega ao fim depois de três anos | Folha de S. Paulo
¹? Segue o jogo: Bom Senso FC continua em campo | Facebook oficial do Bom Senso F.C.
¹¹ Os fatores que levaram ao fim o Bom Senso F.C. | GZH
¹² Após a entrevista, em 29 de abril de 2024, Ronaldo anunciou a venda do Cruzeiro para o empresário Pedro Lourenço.