Neste texto, abordo a relação entre futebol, mercado e emoção, explorando alguns aspectos do modo como a conversão dos clubes brasileiros em Sociedades Anônimas do Futebol vem sendo vivenciadas pelos torcedores, com ênfase para os casos de Botafogo e Vasco. Embora as SAFs possam ser apontadas como um vetor de modernização e comoditização do futebol brasileiro, essa mudança é vivenciada pelos torcedores sob a lógica de seu engajamento afetivo pelos clubes, suscitando tensões, desconfianças e esperanças ligadas à difícil articulação entre emoção e mercado no universo do futebol.
Como sabemos, o futebol surgiu como uma modalidade esportiva na Inglaterra, no século XIX, consistindo inicialmente numa atividade elitista e amadora. Enquanto signo de distinção social, ele deveria ser praticado exclusivamente por “amor ao esporte”, impedindo-se qualquer tipo de ganho pecuniário por parte de atletas e dirigentes. Rapidamente, no entanto, a prática do futebol se expandiu e se popularizou, alcançando as classes trabalhadoras. Com o grande sucesso de público e o aumento da competitividade entre as equipes, logo os clubes passaram a vender ingressos para as partidas, admitindo-se também, gradativamente, a profissionalização dos atletas, que passariam a receber salários para se dedicarem exclusivamente à prática esportiva (Cruz, 2010; Proni, 2000).
Tais iniciativas indicam um estreitamento da relação entre futebol e mercado, ainda no século XIX, em contraste com a lógica do amadorismo que vigorava inicialmente, e que se buscaria salvaguardar nas relações de dirigentes e torcedores com os clubes, sob a forma de uma devoção sem qualquer tipo de retorno material. Dentro dessa lógica, na maioria dos países onde o futebol se popularizou, os clubes se constituíram como associações sem fins lucrativos – e mesmo na Inglaterra, onde eles se estruturaram como empresas limitadas, estipulou-se uma série de medidas que visavam minimizar a circulação de dinheiro e, assim, impedir a total suplantação do amadorismo esportivo pela lógica do capital (Cruz, 2010; King, 1995; Proni, 2000; Santos, 2023).
Com o passar do tempo, no entanto, as pressões por maiores gastos envolvendo a contratação de atletas, o pagamento de salários mais generosos etc., bem como o crescente interesse de empresários na exploração comercial do futebol, foi levando à derrubada das barreiras mencionadas. Na década de 1970, temos um ponto de inflexão nessa história com a chegada de João Havelange à presidência da FIFA, escancarando o universo do futebol à lógica do mercado (Cruz, 2010; King, 1995; Proni, 2000; Santos, 2023).
Nesse sentido, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por reformas jurídico-administrativas, levando à conversão dos clubes europeus em empresas e/ou à adoção de princípios corporativos na gestão esportiva. No fim do século XX, tivemos ainda o advento da arenização dos antigos estádios, convertidos em espaços elitizados de controle e consumo, supostamente mais seguros e confortáveis, de modo a se tornarem mais compatíveis com a comercialização do futebol como um espetáculo midiático – tendo em vista o peso cada vez maior da venda de direitos de transmissão como fomentadora da chamada “nova economia do futebol” (Cruz, 2010; King, 1995; Proni, 2000).
No caso do futebol brasileiro, a estruturação dos clubes como associações civis sem fins lucrativos vigorou de modo exclusivo até a década de 1990, quando surgiram os primeiros dispositivos jurídicos visando implementar reformas “modernizantes” inspiradas na legislação europeia. Nesse sentido, temos a promulgação das leis Zico (1993) e Pelé (1998), que culminaram no fim da chamada “lei do passe”, além da permissão para que os clubes se convertessem em empresas (Cruz, 2010; Proni, 2000; Santos, 2023).
Apesar da aposta na empresarização dos clubes como solução para seus problemas financeiros, o novo modelo não prosperou, não tendo sido adotado por nenhuma agremiação da elite do futebol nacional. Em compensação, a nova configuração jurídica possibilitou a atuação de empresários na gestão das carreiras de atletas e impulsionou as parcerias dos clubes com grandes empresas, adotando-se inclusive um sistema de cogestão em alguns casos[1] (Proni, 2000; Santos, 2023).
Em vista da continuada crise econômica do futebol brasileiro e da impossibilidade jurídica de conversão compulsória dos clubes em empresas (considerada anticonstitucional), diversas medidas foram adotadas, desde as leis Zico e Pelé, a fim de ajudar os clubes a se reorganizarem e sanarem suas dívidas, sobretudo as de natureza fiscal e trabalhista. Dentre elas, destacamos a Lei das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs), promulgada em 2021. Trata-se de um novo modelo de “clube-empresa”, adaptado a particularidades e demandas específicas dos clubes brasileiros, com inspiração nos modelos adotados sobretudo em países ibéricos (Santos, 2023).
Com a nova legislação, além da fundação de novos clubes já dentro do novo formato, também é possível a conversão total de antigas associações civis em SAFs, ou ainda, a separação apenas de seus departamentos de futebol para que sejam adquiridos e administrados (integral ou parcialmente) por investidores, que passam a ter o controle de todos os ativos ligados à atividade futebolística (atletas, estádios, centros de treinamento etc.). Como contrapartida, os novos proprietários devem destinar parte dos ganhos das SAFs para o pagamento de dívidas das associações de origem, sendo vedada a modificação dos símbolos tradicionais dos clubes (escudo, bandeira, cores, hino etc.)[2].
Esse foi o modelo adotado por Botafogo e Vasco, cujos departamentos de futebol foram adquiridos por empresas de investidores americanos: o Botafogo negociou 90% de seus ativos futebolísticos com a Eagle Football Holding, pertencente a John Textor[3], enquanto o Vasco vendeu 70% para a 777 Partners, liderada por Josh Wander[4]. Ambas as empresas trabalham com um sistema de multi-club ownership, ou seja, possuem diversos clubes em diferentes partes do mundo, formando assim uma rede para facilitar a circulação de atletas, visando principalmente à captação de jovens talentos nos países em desenvolvimento para negociá-los de modo mais vantajoso no mercado europeu[5].

De modo geral, a adoção do novo modelo foi celebrada por dirigentes, jornalistas e torcedores, que enxergaram na SAF uma tábua de salvação diante do quadro de superendividamento e do risco de insolvência dos clubes, situação que poderia levá-los a uma perda ainda mais drástica em termos de competitividade e até mesmo ao fechamento de suas portas. Nesse sentido, é muito significativa a música entoada por torcedores do Vasco em comemoração à venda da SAF do clube:
“Urubu otário… A 777 tem dinheiro pra caralho!”[6]
A música faz referência ao Flamengo, arquirrival do Vasco, que vinha passando por uma das melhores fases de sua história após ter se submetido a um longo período de reestruturação financeira. Com a aquisição da SAF pelo grupo americano, os vascaínos acreditavam que o clube passaria a receber novos investimentos, voltando assim, rapidamente, a competir em alto nível. Quanto a isso, vale mencionar que, às vésperas do último clássico entre os clubes antes de fechar o negócio, o próprio Walsh declarou que aquele seria o último confronto entre as equipes em condição de desigualdade[7].
No caso do Botafogo, chamou muita atenção a recepção festiva de Textor por torcedores do clube no aeroporto, quando de sua chegada para confirmar a aquisição da SAF alvinegra[8]. Também foi emblemática a comemoração do empresário após a primeira vitória do Botafogo, sob seu comando, no estádio Nilton Santos, tremulando a bandeira do clube à beira do gramado, enquanto era ovacionado pela torcida nas arquibancadas[9].
Apesar da empolgação dos torcedores num primeiro momento, o enfrentamento de dificuldades e a demora na conquista dos resultados almejados motivou protestos e desconfiança por parte dos torcedores em algumas ocasiões. No caso do Botafogo, a fase inicial da SAF foi festejada com o retorno do clube à primeira divisão do campeonato brasileiro em 2021 e com sua permanência na divisão de elite no ano seguinte, com um desempenho acima das expectativas para um clube em recuperação. Contudo, a queda de rendimento e o péssimo desempenho da equipe no primeiro semestre de 2023 desencadearam protestos exigindo mais investimentos, além da acusação de que Textor estaria prejudicando o Botafogo ao vender jogadores para outros clubes controlados por sua empresa por valores abaixo do preço de mercado, priorizando seus negócios no futebol europeu – um dos riscos inerentes ao sistema de multi-club ownership.
Em compensação, a excelente campanha do clube no primeiro turno do campeonato brasileiro de 2023 reavivou a idolatria de Textor, que passou até mesmo a frequentar as arquibancadas ao lado dos torcedores em algumas partidas[10].
No caso do Vasco, a insatisfação dos torcedores com os executivos da 777 tem sido ainda maior, em vista das dificuldades que continuam sendo enfrentadas pelo clube, mesmo após a negociação do departamento de futebol. Em 2022, primeiro ano da SAF, o clube disputava a segunda divisão do campeonato brasileiro e só conseguiu o acesso para a Série A nas últimas rodadas da competição. Em 2023, a permanência do clube na luta contra o rebaixamento levou os torcedores não só a clamarem pela contratação de reforços, como também motivou questionamentos a respeito da saúde financeira da empresa americana e quanto à idoneidade de seus proprietários. Alguns torcedores chegaram inclusive a “acusar” Luiz Mello, CEO da SAF do Vasco, de ser um torcedor infiltrado do Flamengo que estaria propositalmente sabotando o clube cruzmaltino. O executivo chegou a ser ameaçado de morte e acabou sendo removido do cargo por conta das polêmicas suscitadas[11].

Nesse contexto, merece destaque a declaração de Carlos Osório, vice-presidente do Vasco (isto é, da associação civil original, que detém 30% de participação na SAF) em reunião do conselho administrativo do clube:
Na nossa avaliação, existe, sim, um distanciamento que está se notando entre o Vasco e os vascaínos. Nós estamos vendo que o grupo de profissionais que hoje temos na Vasco da Gama SAF não tem o conhecimento, não tem a ligação, não tem a empatia necessária para a comercialização e a monetização da paixão. Né?
O negócio futebol se monetiza através da paixão. Através de mais associados, através do consumo de produtos licenciados, através da presença do torcedor no estádio… é isso que faz essa roda girar. E a nossa preocupação tem duas vertentes; uma, econômico-financeira: nós precisamos que a Vasco da Gama SAF performe em termos de aumento de receita […].
A outra questão é o distanciamento com a nossa torcida e com os nossos torcedores. […] Nós sabemos que vivemos vinte anos de muitas dificuldades, e quem carregou o Vasco nas costas durante esse período foi o torcedor do Vasco. Foi o torcedor do Vasco que empurrou o Vasco de volta pra primeira divisão no ano passado, e é o torcedor do Vasco que precisa estar motivado, engajado, esperançoso para que a gente faça e complete esse ciclo.
Os itens bilheteria, receitas de patrocínio comercial, plano de sócio-torcedor e receitas conexas do marketing, na nossa opinião, estão performando aquém do necessário. […] E nós entendemos, sim, que é necessário mais profissionais identificados com o Vasco da Gama e que conheçam a nossa torcida, na gestão e na administração dessa área vital pra nós[12].
Nesta declaração, o dirigente vascaíno aponta a monetização da paixão dos torcedores como um elemento fundamental para a recuperação econômica do clube. Em sua visão, o engajamento dos torcedores precisa se expressar não só através da presença no estádio (compra de ingressos), mas também, pela adesão ao programa de sócios-torcedores e pelo consumo de produtos oficiais. Caberia aos administradores da SAF e, mais precisamente, ao seu departamento de marketing, a tarefa de comercializar a paixão dos torcedores, mas para isso seria preciso contratar profissionais que tenham uma relação de identidade com o Vasco e conheçam sua torcida – ou seja, que estejam imbuídos da mesma lógica amadora que historicamente vem fundamentando a administração dos clubes brasileiros em sua constituição como associações civis.
Como podemos observar nos exemplos mencionados acima, a conversão de clubes como Botafogo e Vasco em empresas (SAFs) vem ensejando novas dinâmicas na relação entre emoção e mercado no contexto do futebol brasileiro. A chegada de novos investidores é celebrada com esperança em tempos melhores, mas a persistência das dificuldades e dos resultados esportivos negativos despertam um sentimento de desconfiança em relação a administradores estrangeiros, que não possuem qualquer tipo de ligação afetiva ou identitária com o clube. Trata-se, portanto, de uma relação eivada por tensões e ambivalências, que oscila na medida em que é fortemente condicionada pela performance das equipes no campo de jogo.
Referências bibliográficas
CRUZ, Antonio H. Oswaldo. A virada econômica do futebol: Observações a partir do Brasil, Argentina e uma Copa do Mundo. 2010. 228 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
KING, Anthony. The Premier League and the new consumption of football. 1995. 363f. (Tese de Doutorado) – Institute of Social Research, Salford University, Manchester, 1995.
PRONI, Marcelo. A Metamorfose do Futebol. Campinas: Unicamp, 2000.
SANTOS, Irlan Simões. A produção do clube: Poder, Negócio e Comunidade no Futebol. Rio de Janeiro: Mórula, 2023.
Notas
[1] Santos (2023) destaca as parcerias entre Palmeiras e Parmalat, na década de 1990, e entre Fluminense e Unimed, na década de 2000, como exemplos desse modelo de cogestão.
[2] Para mais informações, acessar: https://ge.globo.com/negocios-do-esporte/noticia/2022/09/02/o-que-e-saf-entenda-o-formato-de-clube-empresa-que-mudou-o-futebol-brasileiro.ghtml
[3] Para mais informações, acessar: https://ge.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2022/03/03/botafogo-oficializa-venda-da-saf-e-recebera-mais-r-100-milhoes-de-john-textor-nos-proximos-dias.ghtml
[4] Para mais informações, acessar: https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/noticia/2022/08/07/com-aprovacao-dos-socios-vasco-vende-70percent-da-saf-para-777-partners.ghtml
[5] O funcionamento desse modelo é detalhado por Santos (2023).
[6] Transcrição realizada por nós a partir de vídeo que circulou nas redes sociais em páginas de torcedores dedicadas ao Vasco.
[7] Conforme matéria publicada no UOL: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2022/03/18/socio-da-777-ultima-vez-que-vasco-tera-desvantagem-financeira-contra-fla.htm
[8] Conforme matéria publicada no GE: https://ge.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/com-presenca-da-torcida-john-textor-chega-ao-rio-para-assinar-compra-da-saf-do-botafogo.ghtml
[9] Conforme matéria publicada no GE: https://ge.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2022/05/15/textor-pega-bandeira-do-botafogo-e-comemora-vitoria-contra-fortaleza-com-a-torcida.ghtml
[10] Conforme matéria publicada no portal Terra: https://www.terra.com.br/esportes/botafogo/john-textor-ve-jogo-do-botafogo-nas-arquibancadas-e-muito-melhor-assim,05e868f9ecc4400580d0fc508f1491bfb4mg95p1.html
[11] Conforme matéria publicada no GE: https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/noticia/2023/07/25/777-demite-luiz-mello-ceo-da-vasco-saf.ghtml
[12] Transcrição realizada por nós a partir de vídeo que circulou nas redes sociais em páginas de torcedores dedicadas ao Vasco.